21 fevereiro 2006

Guiné 63/74 - DLXXII Abrir os cadeados da nossa memória (João Tunes)

Post nº 572 (DLXXII)


Guiné > Região de Tombali (Catió) > Rio Cumbijã > Junho de 1970 © João Tunes (2005)

Guiné > Região de Tombali (Catió) > Rio Cumbijã > Maio de 1970 © João Tunes (2005)


Ai, camarada Luís, que a sabes toda. Quanta manha sábia nessa tua forma discreta e estética como nos abres nos nossos tabus armazenados na memória, sabendo que o tempo e a idade nos tornaram aptos à grande e completa catarse. E é disso que mais precisamos, malta nos sessenta ou à volta dela, a preparar uma suave (e demorada) paz na preparação da viagem para a cova.

Porque o pior na memória da guerra são esses malditos cadeados com que fechámos aquilo que não nos queremos lembrar. Umas vezes os sons (cabrão do Nino, são os sons das morteiradas dele em Catió, em Cacine, em Gadamael e em Guileje, os que ainda hoje me lixam os cornos, me fodem a cabeça quando oiço o som seco da porta do frigorífico a fechar-se, num eco repetido que ameaça ser-me perpétuo), outras imagens (de tanta nobreza camarada e de tanta miséria da dimensão humana dos limites da resistência de pessoas não feitas para a guerra, e então não me sai da cabeça a imagem do meu camarada e amigo alferes das viaturas, engenheiro mecânico já formado, e que, quando as morteiradas começavam a assobiar, sem ter função nem ponto de abrigo, se encafuava junto ao cão do quartel na sua pequena casota, reduzindo-se a uma igual condição de cão com medo), incluindo, pelo meio, o espanto de encontrar vocação guerreira insuspeita quando, a caminho de Jolmete, encontrei, na prevenção de eventual emboscada, um meu camarada, bom camarada, da luta antifascista e anticolonial e agora ele ali fardado de furriel dos comandos a proteger do ... PAIGC, mijando-nos os dois a rir, quando o abraço esmoreceu, daquela cena de reencontro depois do tanto que havíamos partilhado, no Porto, de fugas da polícia de choque e fintas aos pides que não queriam que abríssemos o bico contra o escroque do Salazar, e agora os dois ali, na mata entre Pelundo e Jolmete, um na tropa macaca e outro na elite dos comandos, às ordens do mesmo cabrão velho e teimoso que estava a foder a história de todo um povo, o nosso, mostrando o pueril absurdo da nossa vontade de fazer a contra-história, sacando o país dos pântanos do fascismo e do colonialismo.

Já falámos do sexo, começando a romper o tabu das incontornáveis história da nossa líbido na guerra. Mais haverá muito ainda para contar e podemos contá-las todas, sem rodeios, como velhos que falam do passado das suas grandes tesões. Agora vens com essa dos copos. E os copos eram outra âncora e que âncora. E quanto a copos só te digo, vos digo, que foi pelos copos que cometi a minha maior cobardia na aversão à guerra, aquela guerra. Lembro-me bem e mantem-se como mancha maior de prova da minha inaptidão para ser guerreiro. E, por isso, é um ferro em brasa que me aquece a memória.

Lá para Julho de 69, o meu batalhão foi encaminhado de Bissau para o Pelundo, espalhando ainda companhias em Có e em Jolmete. Fizémos o trajecto na descoberta do mato. Quando albergámos em Có, na passagem e largando uma das companhias, periquitos e veteranos misturados, deu-me uma imensa depressão pela descoberta de que tinha entrado no miolo da guerra, agora é que elas iam morder, não havia ou podia haver retorno, os camaradas veteranos, hospitaleiros e alegres por serem rendidos, deram-nos festa de recepção com fados e copos. E eu, a pensar em Lisboa, a merda de Lisboa não me saindo da ideia, e pensava e repensava na mulher (estava casadinho de fresco), baldei-me da Guiné em pensamento e emborquei um copo de penalty cheio de whisky solo até às bordas, assim de seguida e de um único gole. Caí de borco e em coma, em processo de desidratação súbita, valendo-me que o camarada médico, meu amigo e compincha, estava menos bêbado que eu e rápido me acudiu.

Não sei como, no espaço de uma hora, pôs-me conforme o RDM e apresentável como Oficial e já pronto a disparar. Como disse, foi a minha maior cobardia na guerra, daí para a frente sempre soube dosear o uso das munições, nunca parando de disparar. Hoje, felizmente, continuo a apreciar disparos mas já só lá vou espaçado e sempre com um pouco de água lisa.

Abraços para todos os estimados tertulianos. Para ti, Luís, o meu sempre repetido obrigado.

João Tunes


(i) Ex-Alf Mil Transmissõe > Pelundo (1969/70) e Catió (1970/71) (Recusa-se a identificar os dois batalhões por onde andou: vd. pots de 25 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXI: Pelundo: Nº do batalhão ? Não sei, não me lembro (João Tunes)

(ii) Blogador-mor, cavaleiro andante, solidário, transmontano e dinamarquês, benfiquista dos quatro costados...

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