dizem-me que se aperta o cerco aos fumadores. que pelas estatísticas são os que ainda não trabalham mais os que já trabalham e que estão na casa dos trinta e mais os que já deixaram de trabalhar. (os que ficaram pelo caminho ou na ponta final da linha de montagem).
ouvi o telejornalista de serviço (fez-me lembrar o porta-voz do tribunal do santo ofício que condenou à fogueira o tetravô do meu tetravô, cristão-novo). o inquisidor-mor malha nas mulheres portugas que estão a estragar as estatísticas sanitárias. diz o papagaio: os portugas ainda podem orgulhar-se, ao menos, valha-nos deus!, de serem os menos fumadores da eurolândia. repete o papagaio: não fumar está na moda. é fixe. os portugas que não fumam ou deixaram de fumar estão na moda. são fixes. eu, fumador, de maço e meio, pecador me confesso: não quero estar na moda. não quero ser fixe.
cerco, é isso. os tempos são bons para apertar o cerco. aos fumantes. aos novos párias sociais. aos novos inimigos da ordem pública. o pretexto pode ser a nova peste branca. os direitos dos não fumadores. o fumo passivo. a nova ética do trabalho. a produtividade do trabalho e a competitividade das empresas. a identidade da nação. os superiores desígnios do estado. a poluição tabágica que, além dos pulmões dos colarinhos azuis e do resto do corpinho da gente, dá cabo da pintura dos tectos e das paredes, do sistema de ar condicionado, dos equipamentos, dos circuitos dos computadores, das mother boards, dos chips, das placas gráficas, dos neurónios dos colarinhos brancos e dourados, dos estofos do carro do patrão. o tabaco que mata meio milhão de eurolandeses por ano. morrem que nem tordos, diz o sanitário de serviço. doze mil, falando só de portugas. e o mulherio a dar cabo da estatística, diz o telepapagaio.
não vi, todavia, as empresas portuguesas seguirem o exemplo das suas congéneres multinacionais que operam cá no burgo como a ibm ou a siemens. não vi os senhores gestores engravatados lá da minha tasca virem à televisão dizer com orgulho: somos mais uma smoke free company. eles não têm lata para o fazer. porque antes disso teriam que dar o exemplo. e mostrar que também dão exemplos de boas práticas noutras matérias como a proteção ambiental, a proteção da saúde e segurança dos trabalhadores, a consulta e a participação do zé portuga, a garantia do trabalho decente, o sentido de responsabilidade social da empresa.
a propósito: alguém sabe explicar-me o que é isso de trabalho decente, vida decente, salário decente, condições de trabalho decentes, cuidados de saúde de decentes, ambiente decente, educação decente, habitação decente ?
hoje é dia mundial do não fumador. uma vez por ano todos os anos. só não o foi na minha freguesia. nem no tasco que eu frequento. nem na fábrica onde trabalho. nem no meu bairro (social) onde não há trabalho decente para a gente nem dinheiro para o tabaco que engana a fome, e a apagada e vil tristeza do nosso quotidiano, a falta de dinheiro para oferecer uma rosa à patroa que agora vai fazer 45 anos.
hoje foi um dia trivial. como os outros. hoje o estado arrecadou mais de 600 mil euros de imposto sobre o vício de fumar. 33 portugas morreram de doenças relacionadas com o tabagismo. não vi nem ouvi o ministro da saúde preocupar-se com os que trabucam e fumam. com os pobres que fumam e que vão morrer. tal como os outros que não fumam, nunca fumaram ou deixaram de fumar. "um dia todos vamos morrer". conheço essa teoria, a da dissonância cognitiva, diz-me o médico do trabalho lá da fábrica e que até é um gajo porreiro porque fuma e sabe que faz à saúde. a gente precisa sempre de um bom alibi para adiar a morte, meu caro zé portuga. a doença. a dor. a subida ao céu. a descida aos infernos. o trânsito no purgatório. amen. padre nosso. avé-maria.
minto: o senhor da ministro da saúde também o é da saúde pública. da saúde da gente. acaba de anunciar a sua (dele e do governo) intenção de aumentar o número de consultas hospitalares de desabituação tabágica (publico, 17.11.2003). eu aplaudo. mas quantas (consultas) não disse. nem onde nem com que meios. há montes de portugas a pedir ajuda. não há técnicos para as encomendas. e os que há são voluntários. psicólogos à procura de espaço de trabalho no mundo das batas brancas. há listas de espera de dois anos (!) para este tipo de consulta (por exemplo, no hospital egas moniz). a propósito: diz-se desabituação ou cessação tabágica ? cessação, dizem os puristas. que fumar é uma doença.
o que é que um gajo como eu, fumador compulsivo, de maço e meio que a guita não dá para mais, faz em dois anos ? dá em doido ? morre de cancro ? em dois anos um portuga fumante como eu acendeu pelo menos 21900 vezes o isqueiro. fumou pelo menos 21900 cigarros (fora o cravanço). ficou exposto a 4 mil produtos químicos x 22 mil cigarros. ou serão 5 mil ? mais mil menos mil , tanto faz. por conseguinte, um gajo está arrumado ao fim de dois anos na lista de espera e a continuar a fumar. eu queria deixar de fumar. talvez alguém me possa ajudar. lá em casa todos fumam. e as mulheres (a patroa e as duas filhas) mais do que os homens (só eu, que o puto ainda é pequenitates).
eu fico, por isso, sensibilizado com a sensibilidade do senhor ministro que se preocupa com a gente. os que fumam e trabalham como eu, classe operária, malandra, tunante e fumante como eu, embora em vias de extinção enquanto classe mal comportada. e se calhar também com os que não fumam mas apanham com o fumo dos que fumam.
no dia mundial do não fumador, eu escrevo neste blogue-fora-nada: fumo, logo existo. imaginem se não fumasse: estava tramado. ninguém se preocupava comigo. neste dia tenho a certeza que alguém se preocupou comigo. médicos, enfermeiros, psicólogos, padres, polícias, jornalistas, amigos, cangalheirpos, coveiros. hohe houve gente que se preocupou comigo. e isso tocou-me, deixou-me sensibilizado. talvez eu ainda vá a tempo de me inscrever numa consulta de desabituação (perdão, cessação) antitabágica em 2005. mesmo com meio pulmão a sorrir à vida.