Crianças internadas no Hospital Maria Pia / Josina Machel. Luanda, Maianga. 29 de Setembro de 2004.
© Luís Graça (2004)
1. Post do Paulo Salgado (que está em vias de voltar á Guiné, por um ano como cooperante):
Fico perfeitamente siderado pela capacidade de alguns camaradas, pelo entusiasmo que colocam nas cartas, no envio e na organização das fotos, e, sobretudo, pelo empenhamento em recordar o passado, mas sempre pensando que o futuro ainda está connosco, que podem contar connosco para "contar" e "narrar" estórias que farão história, feita de pedaços de cada um: noites indormidas; fome de comida e de amor; sede de água e de carinho; também das obusadas, dos canhões...
Meus caros camaradas, o que passámos ajuda-nos a explicar alguns factos que se vivem hoje e a compreender o futuro, o futuro do nossos filhos e netos. As guerras não conduzem a nada...
Tal como havia os marinheiros que bordejavam a costa no tempo das conquistas e descobertas, sofrendo muito, também nós apanhámos as doenças, a miséria - e vimos como o arame farpado cortava seres como nós...
Também quero deixar uma palavra amiga e respeitadora ao Leopoldo [Amado], ao Mussá [Biai], (nosso amigos, tertulianos], ao [Fernando] Casimiro [mais conhecido por Didinho] e outros guineenses que querem o bem da sua terra, da "nossa" terra.
Mas quero deixar uma palavra especial - perdoai-me se olvido algum de vós com merecimento que será tão grande - ao Luís Graça, um intelectual de mão cheia, que nos ajuda, a todos, a reunir os pedaços que temos dentro de nós. (Bolas, isto é quase um louvor, carago - eu vivo aqui, em Gaia, carago!). Obrigado pelo companheirismo aqui vertido graças à tecnologia, que só tinha igual nos aerogramas: carago, chegavam em três tempos...
Nota: O tempo foge-me. Queria digitalizar as centenas de fotos que tenho... Algumas vinham para cá e a minha namorada, hoje minha mulher e companheira de novas "lutas" em África, mandava revelar a cores e que reenviava... ai, o amor vertido nas cartas e nos aerogramas... aquele amor que nos alimentava, que nos fazia sobreviver
Queria enviar panfletos que o PAIGC deixava na estrada, queria contar-vos episódios verdadeiros...mas o tempo escasseia-me. Ainda vou tentar, antes de ir na TAP até Bissau, no próximo dia 30 do corrente.
Mantenhas para todos.
2. Comentário do Luís Graça (Alguns excertos da nossa mais recente correspondência, privada, minha e do Paulo):
Paulo: Não temos mais "ordem de serviço" desde que perdemos a guerra, desfizemos o Império, desmontámos a tenda, fizémos o espólio, entregámos a G3 e o camuflado, rumámos a casa e passámos à peluda... Pelo que já não há mais lugar a louvores, como o teu (à minha singela pessoa) nem muito menos piçadas ou, pior ainda, porradas, como aquela que o João Tunes apanhou no Pelundo por desobedecer á ordem do filho da mãe do tenente coronel que lhe mandou dar uma chapada a um dos seus cabos de transmissões... Desculpa a desbunda, mas vim da Guiné desbocado... E eu garanto-te que antes de ir para lá era um djubi bem comportado: na minha morança e no meu chão, era proibido dizer palavrões...
Louvores, apanhei um na tropa, nem sei como, ou sei: dava jeito ao meu capitão, em vésperas de ser promovido a major e de regressar a casa, mostrar-se grato e reconhecido aos seus rapazes, incluindo este "gajo porreiro", que era eu, que se dava bem com os "guinéus", e que era o seu "pião de nicas" (substituindo todos os camaradas furriéis, com baixa, lerpados, cacimbados, em férias em Lisboa, desenfiados em Bissau), embora alcunhado de Soviético...
Bem, o louvor não me envergonha por aí além... Pelo menos, hoje me dia. Não o escondi também não o emoldurei. Nunca me serviu para nada. Mas um dia destes fui à velha caderneta militar, copiei-o e escarrapachei-o no meu currículo... Quanto ao teu elogio, agradeço-o mas não o mereço...porque grandes somos todos nós, tertulianos...
Escreveu-me o Paulo o seguinte (e eu quero partilhar isto com o resto da tertúlia, porque a gente também tem que saber o que se passa hoje naquela terra, desde à saúde à economia):
"Irei estar em Bissau durante um ano - é muito! Para quem já conta 59 anos, não é brincadeira.
"Comigo irão o Eng.º João Faria (reformado), o Administrador Hospitalar Vítor Seabra (que já andou pela Guiné como cooperante e está também reformado) e a minha mulher, Conceição Salgado, economista, e que foi apanhada pela água do Pidjiguiti" [Adoerei esta expressão, Paulo!... Que ternura!].
(...) "Na verdade, parto no fim do mês e esperam-nos, à equipa que vai, de quatro elementos, um sistema de saúde paupérrimo em todos os aspectos, espartilhado por vícios antigos e adquiridos, vilipendiado pela falta de planificação e de coordenação (eu já vi isto em qualquer lado!), um hospital civil onde imperam a miséria, o conformismo, o amadorismo, uma população analfabeta, carente, ainda que saiba da corrupção que grassa (onde é que eu já vi isto?). Também a chuva, o calor, a viscosidade de alguns... É certo que há o povo sempre na busca e na esperança, as paisagens e os passeios"...
"Preciso, também, de sentir que posso contar com amigos daqui e que fazem uma leitura realista da saúde. Lá como cá, a saúde é mal tratada - e quem sofre é o povo.
"O meu mail de lá, a partir de 30 de Setembro será (...)".
(...) "Não me vou esquecer da outra componente: a catártica, embora eu já tenha feito a catarse no Olossato, e por várias vezes...lá onde os putos agora homens me pedem: leva-me contigo, Salgado!"...
E eu (e julgo que todos nós), só lhe posso desejar "boa saúde e bom trabalho":
"Quanto a ti, meu caro, louvo-te a coragem e a generosidade: um ano de Guiné, nas actuais circunstâncias (um país do quarto mundo, o dos “buracos negros do capitalismo informacional”, para usar uma expressão do sociólogo Manuel Castells), é de herói… Só posso desejar-te o melhor possível, para ti, para a tua mulher e para o resto da equipa. Se eu te puder ser útil, a ti e aos nossos guinéus, em alguma coisa das minhas áreas de competência, põe e dispõe. Aquele abraço. Luís".
Se puderes, vai dando notícias para o outro endereço.
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