20 setembro 2005

Guiné 63/74 - CXCIX: Gato escaldado de água lisa não tem medo...

© Luís Moreira (2005).

O artista, o bravo alferes sapador, escalando o depósito de água de Bambadinca, um dos pontos mais altos da Guiné, a seguir às colinas do Boé (Bambadinca + o depósito de água, entenda-se)...

E neste ponto pode-se perguntar-se ao blogador: "Onde acaba, camarada, o simples desfrutar da paisagem de reminiscências bíblicas e começa o puro voyeurismo?"...

Enfim, este podia ser um ponto de partida para a discussão sobre eventuais condutas menos éticas dos tugas (armados de G3, de máquina fotográfica, de teclado de computador), ontem ou hoje...

Foto de 1970, gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf. Mil. Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).

1. O João Tunes quer tirar uma "licença sabática" relativamente a esta blogaria, de modo a poder dedicar-se mais ao seu blogue de estimação, a Agua Lisa (3) (um título que que só podia ser criado por um poeta ou por um engenheiro químico, como ele). Água Lisa, leia-se: aguardente de cana, cachaça (e, por extensão, água de Lisboa, como diriam os nossos queridos nharros a quem o Profeta proibiu de tocar na dita água-lisa).

Ele acha, de resto, que teve demasiado exposto às luzes da ribalta deste blogue, mesmo que por uns escassos dias. Mais: quer dar espaço, protagonismo, aos demais tertulianos... Respeito a sua decisão de voltar para a plateia. Ele não quer ser prima dona (nem a gente tem guita para lhe pagar o cachet).

É bonito da parte dele, fica-lhe bem. Em contrapartida, eu tenho pena de perder - espero que só por uns tempos - um plumitivo de grande talento. Espero ainda que ele não tenho ficado magoado connosco, que às vezes somos uns gajos desbocados e grosseiros (cá para mim, ele, comparado connosco, até chega a parecer um bem comportado menino de coro, isto depois de ler o post que ele escreveu a contar a música celestial que tocou para as senhoras, assexuadas, discípulas da Cilinha Supico Pinto, no dia do embarque para Guiné...).

Quanto ao pedido da sabática, está automaticamente deferido, já que ninguém manda nesta merda e há muito que passámos todos à peluda...

Bajuda balanta nos banhos públicos de Nhabijões... O conceito de intimidade e o conflito público/privado têm de ser vistos de uma perspectiva antropológica mas também ética...


© Luís Moreira(2005). Foto de 1970, tirada em Nabijões, e gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf. Mil. Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).


A nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné (combatentes só de um lado, estamos à espera da rapaziada do outro...) já o aceitou, de braços abertos e coração ao alto, sem quaisquer praxes, rituais de iniciação ou pedido de patacão para a gasosa (como se diz em Angola ao pagamento, em géneros ou espécie, de pequenos favores aos pequeníssimos homens e mulheres da grande burocracia totalitária). O João Tunes é e sempre foi cá dos nossos... A prova talvez mais bonita, singela, sincera, comovente é a do nosso minhoto Sousa de Castro (o tertuliano mais antigo, logo nº 1) que diz:

"É, pá, não há dúvida que o Tunes é de facto um escritor nato, com estes textos bem elaborados e que toda a gente mais ou menos percebe. Bem, eu com a minha 4ª classe e comunhão solene gostaria de ser capaz de pôr no papel (ou nos e-mails) muitas coisas daquilo que me vai na alma, relacionadas com a tropa na Guiné. Por mim não vejo inconveniente em [ele] gozar as ditas férias sabáticas e desfrutar da nossa leitura e das nossas imagens. Cumprimentos, Sousa de Castro".

Também o Afonso Sousa me dizia há dias (por sinal, no dia 11 de Setembro de 2005): " O João Tunes é uma aquisição imperdível ! Isto só prova que o blogue já está a despertar a atenção de alguns vultos".

Depois disto, o que é que eu, blogador, posso dizer mais? Que ele, João Tunes, nosso ex-tenente, tem todo o direito de, à laia dos nossos vizinhos bérberes do Norte de África (que emprenharam boa parte das tetravós das nossas tetravós), fazer as incursões que quiser pelo território deste blogue (que começou por ser meu e hoje é nosso, de mouros e de morcões) e obrigar-nos a desembainhar a espada e a defender a honra da nossa dama... Entenda-se: falo em linguagem metafórica, não quero abrir aqui uma guerra norte/sul... nem muito menos levar outra piçada.

A verdade é que ninguém de nós tem a pedalada dele (nem talvez a disponibilidade, a motivação e o talento para blogar), mas este encontro feliz (e, afinal, breve), promete muito mais... Por isso, até amanhã, camarada! L.G.


2. Texto de "despedida breve" do João Tunes, que vai de sabática....

Só posso ficar comovidamente agradecido pelo carinho camarada com que fui recebido e apaparicado na tertúlia que era vossa e agora é nossa. Dir-se-á que, assim, até apetece ser periquito...

Já ganhei, em pouco tempo, riquezas várias que vos agradeço - papos com gente inteligente, de maneiras e com boa memória e melhor sentido ético, ter recuperado - adquirindo-a - a comunicação com um camarada (o Levezinho de quem eu disse só ter conhecido de nome mas, vendo as fotos de arquivo, rapidamente o seu rosto actualizou os registos da minha memória visual) que, sem termos trocado fala, co-habitámos não só o "cruzeiro do Niassa" como 30 anos profissionais nas águas da mesma empresa (e esse foi um outro navio e que navio!), ler os vossos escritos e actualizar os olhos com as vossas excelentes imagens.

Como sou rápido a disparar no teclado, o que será virtude e defeito, tenho emailado em fartura e depois constato que as minhas escrevinhadelas ao correr do teclado têm tido visibilidade de notoriedade no nobre e sempre leal vosso (nosso) blogue.

Nada tenho contra o procedimento pois desde sempre habito bem a responsabilidade de uso da liberdade, assumindo em público (e responder por elas) qualquer posição que tomo em círculo restrito ou mesmo privado (tirando os aspectos íntimos da minha vida privada). Talvez por ter começado cedo demais a apanhar no coco por opções (muitas vezes bem pueris) como o facto de ter ido parar à prisão de Caxias em 1965 por defender essa coisa tão extraordinariamente "subversiva" que era o direito dos estudantes a terem Associações de Estudantes.

O que é certo é que perdi cedo o sentido da bravata "contada aqui só para nós" e só admito que os gritos de revolta (ou de rebeldia), até os estados de alma, sejam para se ouvirem ou para se engolirem para dentro. Poderei não ser um valente (e não o sou, pelos menos a full-time nunca fui, não sou e estou demasiado velho para o vir a ser) mas os actos de semi-valentia (semi-cobardia) são-me menos considerados que os de cobardia ou de renúncia. Portanto, não tenho réstea de crítica ao facto de as conversas em e-mail terem passado para o domínio público. Assim, o que se segue não é um reparo.

A questão é outra e por duas razões:

a) Um texto faz-se diferentemente quando nos dirigimos a uma sector mais restrito (onde contamos com uma cumplicidade benevolente e o uso partilhado de um certo código léxico que é uma forma de linguagem tribal e o léxico castrense impunha-a fortemente) ou escrevermos para o domínio público (como é um blogue). Não porque se digam coisas diferentes mas porque se dizem de maneira diferente. Por exemplo, usei e abusei de alguma tentativa de humor estilo basófia que os militares entendem entre si porque usam e abusam dele, sabem dar-lhe o desconto, descodificando-o no sentido que ela, a basófia, tem uma vontade maior de aproximação comunicacional que de desejo de enaltecimento ou de levantar galões ou estatuto (o que, assim entendido, entraria no reino do ridículo).

Asssim, é natural que um e-mail para amigos e/ou camaradas não tenha o mesmo conteúdo expressivo que um post para um blogue. E constato, com desgosto meu, que os meus e-mails, recheados de uma basófia que se pretendeu apenas como técnica de envolvimento, despiste e aproximação (ao estilo de um clássico golpe de mão), quando publicados no blogue adquirem o tom insuportável da vaidade exibicionista se não de uma arrogância do armar aos cucos na vitimização (como se cada um dos outros não tivesse passado tanto ou pior que eu).

b) A quantidade de textos meus no vosso/nosso blogue, ultimamente publicados, confere-me um protagonismo que eu sinceramente não desejo nem aceito. Tenho o meu próprio blogue, em que terei o maior prazer nas vossas visitas, críticas, sugestões e comentários. Esse é e continuará a ser (enquanto dele não me fartar) o meu espelho narcísico de escrita e de descarga de humores e memórias. Está assinado, tem o meu nome, é "só meu", ali planto as minhas vaidades, heresias e sentenças, ali espeto as minhas lançadas contra os moínhos de vento que descortino no horizonte, sejam eles reais ou imaginários.

O vosso/nosso blogue deve voltar a ser o que era - um espaço de conviviabilidade na memória e na estima, um lugar de catarse colectiva, um ponto de encontro, um espaço plural, sem outra prevalência que a do seu coordenador por força do seu mister de gerir a casa e dar-lhe rumo (e que sorte temos contado com o Luis Graça com disponibilidade para tal função). Assim, o vosso/blogue não deve transformar-se num Água Lisa (4) e deve voltar a ser o que foi e deve continuar a ser - um espaço de muitos em igualdade de estatuto de intervenção, contributo e relevo. Ou seja, um espaço de estima colectiva e não um palco de vaidade para um, dois ou três.

Assim, peço-vos que me permitam umas férias sabáticas, recuperem a vossa dinâmica inicial para eu recuperar o à vontade de partilhar convosco a fruição deste bonito projecto colectivo. Mas, por favor, concedam-me uns tempos de plateia, devolvendo-me o prazer de vos ler e desfrutar das vossas imagens.

Abraços para todos.

João Tunes

PS - Valendo-me da sabedoria dos gatos relativamente à água, informo que este mail já foi pensado para lhe ser dado qualquer uso. Façam dele, portanto, a utilização e difusão que bem entenderem.

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