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18 dezembro 2005
Guiné 63/74 - CCCLXXXVI: ´'Bom festa pa tudo dgenti' ou o Natal de Bissau de 52 (Mário Dias)
Guiné-Bissau > Bissau > 2001: A catedral de Bissau símbolo do catolicismo, num país em que as religiões (o Islão e o cristianismo) disputam almas e território.
© David J. Guimarães (2005)
1. Mensagem de L.G.:
Grande Mário ! És aquela máquina (não era assim que se dizia entre a rapaziada dos comandos ?). Devo dizer-te que apreciei muito o teu relato (inédito) sobre a Op Tridente, os teus longos dias na Ilha do Como. Vejo que a idade se tornou um homem sábio e ponderado.
Fico à espera da tua crítica aos escritos fantasiosos e propagandísticos que por aí circulam, de um lado (NT) e doutro (PAIGC). Dá-lhe neles!... A verdade (dos factos) acima de tudo.
2. Resposta do Mário:
Obrigado, Luis, pelas tuas palavras. É verdade que a idade nos torna mais sábios pois, como dizia a minha avó, "o diabo sabe muito não é por ser esperto; é por ser velho".
Quanto à minha prometida crítica aos relatos fantasiosos sobre a Guerra do Ultramar que por aí circulam, vou deixa-los para o início do próximo ano que já não está longe.
Não quero estragar com críticas, que terão forçosamente de ser muito contundentes e polémicas, esta época natalícia de paz e amor. ( embora, para mim, Natal seja todo o ano).
Entretanto, aqui vai, não propriamente uma estória, mas o que poderemos chamar uma crónica ou memória de como era celebradao o Natal pelos rapazes (nunca vi raparigas a participar) de Bissau.
Caros camaradas de tertúlia:
Tintim, tintim, tintim,… “Bom festa pa tudo dgenti. Prança Deus bó iangaça tudo quê que bó misti”
Traduzo, ou não é preciso? Então lá vai: Boas-festas para todos. Queira Deus que alcanceis tudo quanto desejais.
Mário Dias
3. O NATAL EM BISSAU, NOS TEMPOS “DO ANTIGAMENTE”
Tinha 15 anos no tempo já distante de 1952. Ia passar o meu primeiro Natal em Bissau e nem calculava, nesses meus verdes anos, quão verdadeiro é o ditado popular: “cada terra com seu uso; cada roca com seu fuso”.
Em casa de meus pais, reunida a família para celebrar a consoada, comecei a escutar na rua sons e cantigas que me eram de todo estranhas, bem diferentes das que, em Portugal, celebravam o Natal. Curioso, vim à varanda e deparei com um cenário que me encantou de tal forma que ainda hoje dele me recordo com muita saudade.
Toda a rua onde morava (ia dar à avenida principal, perto do cinema da UDIB) era um mar de luzinhas e de sincopados sons. Não resisti e fui ver. Não queria perder o espectáculo para mim novo e bem longe do que poderia imaginar pudesse existir.
Grupos de 3 ou 4 crianças, transportavam pequenas casas feitas com armações de finas tiras de cana ou material semelhante revestidas com papel de seda de várias cores. Com um coto de vela aceso no seu interior, resplandeciam como se de vitrais se tratasse. E como havia algumas tão bem construídas e belas!... A catedral de Bissau, a casa do governador, o edifício da Administração Civil, ou simples casas saídas da fértil fantasia do seu construtor.
Também havia quem desse asas à criatividade e aparecesse com navios, aviões e de quanto a imaginação fosse capaz.
Iam parando em cada casa, ora à porta quando situada ao rés do passeio, ora penetrando nos pequenos jardins das mais recuadas, e um deles, portador de uma garrafa vazia e de um pequeno ponteiro de ferro batia o ritmo: tintim, tintim. tintim…
Então, ao compasso que o “tocador de garrafa” ordenava, todos rompiam nesta cantilena: ( por sinal bem afinados)
S. José, sagrada nha Maria,
e quando foi, quando foi para Belém,
a resgatar o Menino de Jesus,
lá ao pé, lá ao pé da santa cruz.
(refrão)
Adoro mistério sobrinho da minha alma (1)
sobrinho da minha alma louva o Senhor.
Coração Santo todo ruminado
Todo vez em quando sempre a chorar
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar,
ai, ai, ai de vez em quando sempre a chorar. (2)
O Angelino, Angelino já morreu,
e não queria confessar senão do Papa,
e nem do Papa nem do Bispo confessou
para nos dar boas-festas boa sorte. (3)
(repetiam o refrão)
Terminada a cantilena, dirigindo-se aos donos da casa, soltavam o inevitável “partim festa” (dê-nos as festas), querendo com isso pedir dinheiro ou algo que lhes fosse útil. Um deles estendia a mão para o donativo que sempre surgia e enquanto iam a caminho de outra casa algum perguntava:
- Kanto qui dá-bo? (quanto te deu)
- Dôs peso e meio.
- Esse i bom branco.
Desta maneira corriam todas as ruas de Bissau, visitando as casas ou abordando quem passava nas ruas:
- Partim festa.
- Kanto que dá-bo?
- Só cinco patacon (20 centavos)
- Bé… rijo mon (bolas…que avarento)
Intercalados, outros grupos diferentes surgiam. Eram os rapazes do “Kinkon”. Traziam também uma garrafa para marcar o ritmo, (tintim, tintim, tintim,) mas o “chamariz” apelativo ao “partim festa” era outro. Um boneco recortado em papelão, com braços e pernas articuladas por um engenhoso sistema de cordéis e montado numa vara, era transportado por um dos miúdos que o fazia movimentar ao ritmo da batida na garrafa “tintim, tintim, tintim”.
O portador do boneco atirava:
- Kinkon, kinkon.
Respondiam os outros em coro:
- Rabada di kon.
De novo o líder:
- Kinkon, Kinkon.
Resposta do coro:
- Nariz di Kon.
E sempre alternando, líder e coro iam acrescentando à cega-rega diversas partes do corpo:
Kinkon, kinkon,
Cabeça di Kon.
Kinkin, kinkon,
Orelha di Kon.
Por vezes, os mais ousados lançavam alusões a partes anatómicas menos próprias. Alguns dos companheiros riam-se, outros não gostavam e protestavam:
-Abó ka t’a burgonho (tu não tens vergonha).
Mantinham a cantilena o tempo necessário a que alguém viesse oferecer as desejadas “festas” e seguiam para outro lado.
Por ali me quedava embevecido, admirando estas encantadoras cenas tão inesperadas e atraentes.
E por ter ficado de tal forma apaixonado com tão extraordinária tradição, todos os anos, mal se aproximava o Natal, não continha em mim a ânsia da sua rápida chegada, para mais uma vez ver as crianças de Bissau, vindas do Chão Papel, Alto do Crim, Cupilon, Gã Beafada, Santa Luzia e outros bairros, inundarem as ruas com as suas casinhas luminosas ou com os “kinkons” articulados e garrafas para marcar o ritmo:
…tintim, tintim… São José, sagrada nha Maria…
…tintim, tintim… Kinkon, kinkon,… rabada di kon…
Certamente que muitos dos que passaram por Bissau assistiram a esta tradição e dela se devem recordar. Quanto a mim, já passaram mais de 50 anos e ela continua tão viva na minha memória que, quando chega o Natal, dou por mim a cantarolar aquela lenga-lenga e nos meus ouvidos ecoa o “tintim, tintim”. Involuntariamente sinto-me transportado ao passado e perante mim desfila, com toda nitidez e riqueza de pormenores, o encanto de cores e de sons que os rapazes de Bissau me proporcionavam.
Falando há tempos com um amigo que lá esteve recentemente, por ele fui informado que esse costume se perdeu e que as actuais gerações nem o conhecem. Se assim for, é pena. Nenhum povo deve esquecer e, menos ainda, menosprezar as sua tradições.
Caros amigos guineenses: Vamos restaurar esta tão bela tradição?
Torna-se talvez conveniente explicar o significado da cantiga que, como devem ter reparado, não é crioulo. É pretensamente cantada em português, com versos de cânticos religiosos que os rapazes, na sua ingenuidade deturparam.
_________
(1) “Adoro o mistério sobrinho da minha alma…” corresponde a: “Adoro o mistério sublime da minha alma…”
(2) “Coração santo todo ruminado, todo vez em quando, sempre a chorar” é do cântico “coração santo, tu reinarás, o nosso encanto, sempre serás”.
(3) Quanto a esta alusão ao tal Angelino, nunca consegui saber do que se trataria.
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