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18 dezembro 2005
Guiné 63/74 - CCCLXXXVII: O meu Natal de 1969 em Bambadincazinha (Luís Graça)
Guiné > Bambadinca > 1970 > Tabancas de Bambadincazinha onde estava instalada a Missão do Sono. Estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole.
© Luís Moreira (2005)(ex-alf mil da CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/71; BENG, Bissau, 1971).
Este texto foi um dos primeiros aqui publicados no nosso blogue: 7 de Dezembro de 2004 > Guiné 69/71 - IV: Um Natal Tropical.
Nessa data ainda não havia tertúlia (que se começou a partir de finais de Maio de 2005), pelo que muitos dos nossos amigos e camaradas não o devem ter lido. Nesse texto (que tem de ser lido à luz da época, já que é tirado do meu diário...), relembro o que se passava nas vésperas de Natal e Ano Novo num sector como o de Bambadinca, onde a nossa companhia (CCAÇ 12, independente e de intervenção) tinha sido colocada.
O meu primeiro Natal passado na Guiné - tinha chegado em finais de Maio, eu, o Humberto, o Levezinho, o Fernandes e os restantes camaradas tugas da CCAÇ 2590, mais tarde rebaptizada CCAÇ 12 e integrada na "nova força africana" - terá sido igual ao de tantos outros de camaradas, de milhares de camaradas, emboscados ou enfiados nas suas tocas em aquartelamentos com abrigos subterrâneos, muitos deles (Mansambo ou Guileje, por exemplo). Talvez mais triste por ser o primeiro passado num cenário de guerra, e numa guerra na qual eu procurava ser um "resistente passivo"...
1. Excertos de: História da Companhia de Caçadores 12 (CCAÇ 2590): Guiné 1969/71. Bambadinca: CCAÇ 12. 1971. Cap. II. 19-21.
Bamdabinca, Dezembro de 1969:
(...) a 24, 2 Gr Comb [grupos de combate] da CCAÇ 12, em cooperação com a autoridade administrativa de Bambadinca [onde estava aquartelada a companhia], levam a efeito uma rusga (com cerco) à tabanca de Mero [aldeia balanta, junto ao Rio Geba]. Apesar de alguns indícios suspeitos, não foram detectados elementos IN [inimigo].
Para efeitos de controlo populacional, completou-se e actualizou-se o recenseamento dos habitantes de Mero (Op Acção Guilotina)[nome de código da operação]. Nas duas semanas anteriores, o IN tinha desencadeado várias acções de intimidação contra as populações de Canxicame, Nhabijão Bedinca e Bissaque, a última das quais levada a efeito por um grupo enquadrado por brancos que retirou para a região de Bucol, cambando o RGeba [atravesando o Rio Geba de canoa, para norte].
Por outro lado, prevendo-se a possibilidade o IN atacar os aquartelamentos das NT [nossas tropas] durante a quadra festiva do Natal e Ano Novo, foi reforçado o dispositivo de defesa de Bambadinca. Assim, além da emboscada diária até às 1 a 3 horas da noite, a nível de secção reforçada num raio de 3 a 5 km (segurança próxima), passou a ser destacado 1 Gr Comb para Bambadincazinha (em fase de reordenamento), todas as noites até às 6h da manhã, constituindo uma força de intervenção com a missão de fazer malograr o eventual ataque ao aquartelamento e/ou às tabancas da periferia, actuando pela manobra e pelo fogo sobre as prováveis linhas de infiltração e locais de instalação das bases de fogo do IN, ou no mínimo detê-lo e repeli-lo pelo fogo (1).
A 26 [de Dezembro de 1969], forças da CART 2520 [companhia de artilharia], reforçadas por um 1 Gr Comb da CCAÇ 12 realizam um patrulhamento ofensivo na região do Xime, Madina Colhido, Chacali, Colicumbel e Amedalai, sem detectacterm vestígios do IN (Op Faca Húmida).
A 30, Sua Excia. o Comandante Chefe [General António de Spínola]visita Bambadinca para apresentar cumprimentos de Ano Novo a todos os oficiais, sargentos e praças do CMD e CCS/BCAÇ 2852 [comando e companhia de comando e serviços do Batalhão de Artilharia 2852], e sub-unidades adidas [a CCAÇ 12 incluída].
2. Excertos do Diário de um tuga:
Bambadinca, 24/25 de Dezembro de 1969:
Natal nos trópicos! Não consigo imaginá-lo sem aquela ambiência mágica que me vem do fundo da memória. É que do cristianismo terei apenas captado o sentido encantatório do Natal e a sua antítese, que é o universo maniqueísta da Paixão. Mas decididamente não vou fazer flash-back. Cortei o corão umbilical a frio e da infância resta-me apenas a sensação do salto mortal. Há, porém, certas imagens poéticas, recalcadas no subconsciente ou guardadas no baú da memória, que hoje vêm ao de cima. Por um qualquer automatismo. Ou talvez por ser Natal algures, far from the Vietnam, longe da Guiné, e eu passar esta noite emboscado. O que não tem nada de insólito: é uma actividade de rotina.
Mas é terrivelmnete cruel a solidão deste tempo em que os homens se esperam uns aos outros nas encruzilhadas da morte, os dentes cerrados e as armas aperradas, em contraste com o bando alegre de crianças cabo-verdianas que, não longe daqui, da Missão do Sono (uma estrutura sanitária, agora militarizada, transformada em local de emboscada!), entoam alegres cânticos do Natal crioulo ao som do batuque pagão.
No aquartelamento, de que vejo as luzes ao fundo, ninguém se desejou boas festas porque também ninguém tem sentido de humor. Nem por isso deixou de celebrar-se a Consoada da nossa terra: um pretexto para se comer (o tradicional prato de bacalhau com batatas e grelhos.. desidratados) e sobretudo para se beber (muito).
- Hoji, festa di brancu, noite di Natal, manga di sabe! - lembra-me um dos meus soldados africanos, enquanto ao longe a artilharia do Xime e de Massambo faz fogo de reconhecimento.
E eu fiquei a pensar neste tempo de silêncio, de cobardia e de cumplicidade. Mas também de raiva. Como o Manuel Alegre, eu gostaria de poder dizer neste dia, todos os dias: "Mesmo na noite mais triste / Em tempo de servidão / Há sempre alguém que resiste / Há sempre alguém que diz não".
__________
(1) O Grupo de Combate ficava instalado na famosa Missão do Sono (uma estrutura sanitária, criada no âmbito do Programa de Luta contra a Doença do Sono, e na altura desactivada, presumo que em consequência da guerra). Era um edigfício térreo, de tijolo de adobe, rachas de cibe e telhado de zinco (ou de colmo ?, já não me recordo). A nossa posição era mais do que conhecida pela população e pelos elementos simpatizantes do PAIGC que havia em Bambadincazinha e em Bambadinca. Em caso de ataque ao aquartelamento de Bambadinca (sede de batalhão), eramos um alvo fácil. Uma ou duas roquetadas punham-nos a todos fora de combate.
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