23 fevereiro 2006

Guiné 63/74 - DLXXVI: O meu capitão, o capitão Corvacho da CART 1613 (1966/68) (Zé Neto)

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Regresso ao quartel de uma operação, com o Cap Corvalho à frente, seguido pelo Costa da Bazuca. © José Neto (2005)


Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho


Nota prévia: O texto que segue é, apenas e só, destinado à difusão no Blogue-fora-nada. O autor.

Creio que é esta a primeira vez que alguém traz ao blogue uma figura concreta dum comandante da campanha da Guiné. Não se trata dum vulgar panegírico, que seria natural nas palavras do seu primeiro-sargento, mas sim duma homenagem devida ao Homem que transformou e comandou a CART 1613/BART 1896, desde 25 de Dezembro de 1966 até duas semanas depois de 9 de Setembro de 1968.

Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.

Na nossa primeira noite de Natal, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João, um soldado nosso matou, a tiros de G3, o comandante da companhia.

No dia 25 de Dezembro vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia.

Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM e dum sistema de detecção de velocidade discutível.

O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BEng [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária.

Estas conclusões não foram do agrado do comandante. Atirou o processo para as mãos do Capitão e ordenou-lhe que reformulasse os autos porque me queria punir.

O Corvacho voltou a pôr o processo em cima da secretária do comandante e disse-lhe que a única solução era ele nomear um oficial (teria de ser o 2º comandante) para lhe instaurar, a ele Capitão, outro processo, este por desobediência, porque se negava, terminantemente, a alterar uma vírgula que fosse no que ali estava escrito.

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Retrato de família... © José Neto (2005)


Este gesto valeu-lhe a inscrição na lista dos coirões mal-amados do comandante, onde já figuravam, desde fins de Maio, a 2ª Companmhia de Instrução do RAP 2 (mais tarde CART 1613) no seu todo, o seu falecido comandante e este vosso modesto escriba.

O primeiro acto de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:
- Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.

Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.
Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o sector da alimentação com os desvarios que o Furriel vaguemestre tinha apontado na reunião.

Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no sector administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.

Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Um secretaria improvisada no mato... © José Neto (2005)

Em princípios de Janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do comando-chefe, era outra.

Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.

Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a “minha tropa” foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:
- O nosso comandante / é o capitão Corvacho.

Com a voz embargada pela comoção o Capitão Corvacho disse-lhes:
- Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.

Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3.

Seguiu-se um período de cerca de quatro meses de “vai e volta”. A companhia, aquartelada em Brá, era mandada para os mais diferentes pontos do território, andava por lá dez, quinze dias, e voltava estoirada, mas com um sentimento de dever cumprido cuja expressão máxima era o uso, em qualquer dos uniformes, do Lenço Verde que nos tinha calhado em sorte ainda em Viana do Castelo (todas as companhias do batalhão tinham o seu, de cores diferentes).

Foi numa dessas operações, na área de Pelundo/Jolmete, zona de responsabilidade dum Batalhão de Cavalaria sediado em Teixeira Pinto, que a CART 1613 mais se notabilizou, tendo o comandante do BCAV atribuído ao Cap Corvacho um extenso louvor que deu origem à condecoração com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª Classe.

Ironicamente, saliento que o "meu Capitão” tinha a postura característica do anti-herói que o cinema nos impinge e afinal a Pátria consagrou-o como Herói.

E para adensar a narrativa acrescento que o Cap Corvacho estava, nessa altura, em litígio com as chefias militares, porque no dia em que completou oito anos de serviço como oficial, requereu, ao abrigo do EOE (Estatuto do Oficial do Exército), a sua passagem ao escalão de Complemento (milicianos) desligando-se assim da actividade militar.

Com “torneados e floreados” foi-lhe indeferida a pretensão. Só eu e poucos graduados tínhamos conhecimento desta faceta.

Este revés provocou-lhe uma imensa raiva interior, mas em nada buliu na sua condição de militar e o pessoal continuou a seguir o seu capitão até às profundezas do inferno se tal fosse necessário e a cantar, quase como hino, “Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo/E não deixam nada - a canção Os Vampiros do Zeca Afonso, proibida no Chiado e arredores, mas difundida em alto som em Guilege, onde “morámos e combatemos” cerca de um ano.

Podia terminar aqui a minha narrativa.

Porém, falta esclarecer o motivo porque, no princípio, eu escrevo os limites temporais do seu comando entre 25 de Dezembro de 1966 e 9 de Setembro de 1968 e mais duas semanas.

O dia 9 de Setembro de 1968 foi o do embarque de regresso da CART 1613. Nessa altura nós ainda andávamos às voltas com a liquidação das três cargas de materiais à nossa responsabilidade. Uma deixada em Colibuia para entregar a quem aparecesse; outra entregue aos nossos substitutos de Guilege, cheia de “falta isto, falta aquilo”; e a última a de Buba e destacamentos de Nhala e Chamarra. Até das Mauser entregues à população em auto defesa éramos responsáveis sem nunca as termos visto.

Perante a situação de eu ir ficar sozinho com 124 (cento e vinte e quatro) autos de ruína, extravio, etc. em curso, e alguns a elaborar, pois o reles 1º sargento das cargas, na Bolola, tinha o prazer sádico de ir descobrir mais uma ficha que não estava a zero e chapar-ma na cara, em face disto, dizia, o Capitão Corvacho resolver adoecer e faltar ao embarque.

Usando a sua influência junto dos seus conhecidos (por sorte o chefe do Serviço de Material tinha sido seu condiscípulo na Academia Militar) em dez ou onze dias coleccionamos os carimbos, vistos e despachos para, posteriormente, ficar tudo a zero, com algum ressabiamento do “reles da Bolola”.

Duas semanas depois o Niassa voltou e levou o “meu Capitão”.

Eu fiquei até meados de Outubro, dependente do fecho de contas do CA (Conselho Administrativo) do BART 1896 nas quais a minha (conta da CART 1613) estava incluída.

Este, embora descrito a traços largos e descoloridos, foi o Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho, ainda hoje o meu Capitão. O seu envolvimento no 25 de Abril de 1974 e período subsequente (1), considerado, por muitos, algo controverso, para mim foi absolutamente coerente, não obstante o meu modo de ver possa não coincidir com o meu modo de ser.

Nos dias que correm o meu Capitão emprega a sua enorme coragem na luta contra uma doença grave.

No passado dia 4 de Junho de 2005, amparado pelo nosso grande amigo Dr. Joaquim de Oliveira Martins, o ex-Alferes Médico do Batalhão que preferia estar connosco em Guilege em vez da ainda calma Buba, não deixou de ir almoçar a Braga com os seus homens. Vi muitos ex-soldados a disfarçar os soluços ao verem a dificuldade de locomoção do Homem que, nos seus imaginários, era o primeiro a avançar lá longe nas matas da Guiné.

José Afonso da Silva Neto

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Nota de L.G.:

(1) Foi brigadeiro graduado em 1975, tendo estado à frente da região Militar do Norte.

10 comentários:

Raimundo Narciso disse...

Gostei muito de ler esta memória. Ela confirma a excelente opinião que tenho de Corvacho, que conheci e com quem conversei muita vez depois do 25 de Abril, nas décadas de 70 e 80 mas de quem deixei de ter notícias há mmuitos anos. Foi com tristeza que li que não se encontra bem de saúde. Se me puder facultar algum contacto dele ou da família ficar-lhe-ia agradecido.

Anónimo disse...

Embora conhecesse o relato aqui descrito, contado na primeira pessoa, não posso deixar de ficar emocionado com a forma como é retratado o meu pai.
Cumpre-me informar a todos os seus camaradas de que, mais uma vez com muita coragem, continua a sua luta contra a doença.
Estou contactável pelo e-mail e_corvacho@netcabo.pt
Eurico C. Corvacho

Anónimo disse...

fui condutor do coronel Corvacho na 1ª comissao em Angola na C.P.M 150 era alferes e fui eu com um outro soldado (hoje presidente da camara de Alenquer),que lhe oferecemos os galoes de tenente porque sabiamos que ia ser promovido no dia seguinte lidei com ele 27 meses e nunca mais o irei esquecer estes fabulosos meses que passei (foi um previlegio)com ele,ate a pouco tenho almoçado com ele regularmente ,mas como o deixei de ver fui a casa dele saber se estava melhor ,mas segundo me informaram a Srª.sua esposa meteu-o num Lar de Idosos, pois ja nao tinha paciencia para lidar com ele tal a dependencia a que chegou um homem bom humano , bom nao quero fazer mau juizo de ninguem, mas creio que a 1ª esposa que bem conheci nao faria tal com pena o deixei de ver, e ate ajuda-lo cheguei a ir ao colegio militar, aonde foi pagar uma viagem do filho mais novo.

Anónimo disse...

Em nome do meu Avô, que se encontra neste momento numa cama de um hospital a lutar pela doença que tem(amarrado, pois a suposta familia foi de férias), agradeço a homenagem.
Catarina Corvacho

Americo Carvalho disse...

Finalmente e graças ao seu filho mais velho visitei o meu Coronel em Oeiras no IASFA aonde está tipo armazenado este Homem extraordinario que é um (para mim)Heroi de Abril e sinceramente nunca me passou pela cabeça que teria de ve-lo amarrado a uma cama no verdadeiro sentido amarrado pelos pulsos que até para beber agua e com garrafas junto a ele tem que pedir para lha darem pois ele não pode autonomamente bebe-la por estar preso aos beirais (guardas laterais da cama ) eu nao sei se será necessario tal mas enfim, foi um dia que fiquei triste por tal e pedia a todos que com ele conviveram para lhe dar um pouco de calor Humano com a sua presença a sua morada é IASFA cama 108 em Oeiras junto á antiga Fundição de Oeiras,sem mais agradecia do coração que fizessem uma visita a este Homem que eu conheci e me ficou no coração.

Anónimo disse...

Em Virtude do Obito do nosso Coronel Corvacho Cujo corpo estará a velar hoje 22de dezembro de 2011 a partir das 18 horas na Basilica da Estrela sendo o Funeral a 23 de Dezembro

BARRAGON-BARREIRO disse...

O SER HUMANO QUANDO CAI NA MISERIA E NA MERDA,E ABANDONADO PELA FAMILIA E PELOS AMIGOS,PENSEM NISTO MENTES DECREPITAS,ESTUPIDAS E IGNORANTES,VIVER A VEGETAR AMARRADO A UMA CAMA,A FAZEREM-LHE TUDO E MAIS ALGUMA COISA,ELE ENQUANTO SER HUMANO LUTOU POR TODOS NÓS PELA LIBERDADE DO NOSSO POVO,CONTRA A DITADURA FASCISTA E SALAZARISTA,UM HOMEM COM H GRANDE,UM HOMEM DE ABRIL,UM CAPITÃO DE ABRIL,UM MILITAR DO CONSELHO DA REVOLUÇÃO,MORREU ESQUECIDO,ABANDONADO NUMA CAMA DE UM QUALQUER LAR DE IDOSOS,ONDE OS MORTOS-VIVOS VEGETAM.
ASSIM FALOU O MAQUINISTA DO BARREIRO,BARRAGON.

BARRAGON-BARREIRO disse...

DESCANSA EM PAZ PORQUE MERECESTE E TENS TODO O NOSSO RESPEITO PELO QUE SOFRESTE,CAPITÃO DE ABRIL,EURICO DE DEUS CORVACHO,FOSTE ABANDONADO PELA TUA(FAMILIA) NUM LAR PRISÃO DE MORTOS-VIVOS,ONDE VEGETASTE,ATADO A UMA CAMA,A TUA SUPOSTA(FAMILIA) NÃO MERECE AS MINHAS CONDOLÊNCIAS.

Anónimo disse...

Não o conheci. Mas como fui militar antes e depois de Abril, não tenho o prazer de recordar qualquer oficial que se cruzara comigo.
Todos foram heróis e democratas nessa data, mas raros os humildes que respeitaram os soldados

AMÉRICO CARVALHO disse...

nCREIO TER SIDO DOS UNICOS COMANDADOS PELO CORONEL QUE O VISITARAM EM VIDA EM OEIRAS E LHE PRESTARAM HOMENAGEM NA BASILICA DA ESTRELA ,AÍ HOUVE UMA COISA QUE NÃO ENTENDI DURANTE A NOITE FOI FECHADO ONDE ESTAVA A URNA E DE MANHÃ VIERAM UNS MILITARES DA PM E SUBSTITUIRAM A BANDEIRA NACIONAL QUE ESTAVA EM CIMA DA URNA FIQUEI CONFUSO MAS FOI PARA O ALTO DE S. JOÃO COM A BANDEIRA POSTA PELA PM O CURIOSO É QUE O NOSSO CORONEL NÃO ERA DE CAVALARIA ERA DE ARTILHARIA E COLEGA DE CURSO DE OTELO SARAIVA DE CARVALHO EM 62 ESTACIONADO EM KIENDE PERTO DE S. SALVADOR DO CONGO ONDE O VISITOU COMIGO PAZ Á SUA BOA ALMA