1. A Nela, já aqui referida em tempos (1), não faz mas devia fazer parte da nossa tertúlia, juntamente com o seu marido: ele foi nosso camarada na época de 1969/70, foi no Niassa em Maio de 1969 - o mesmo é dizer que fomos juntos, ele e o pessoal metropolitano da CCAÇ 2590, a futura CCAÇ 12 - esteve em Ingoré e foi gravemente ferido na explosão de uma mina anticarro... Ela, jovem estudante universitára e então namorada, viveu a guerra à distância, com a morte na alma... Já casada, anos depois, desloca-se à Guiné-Bissau, com a família, para exorcizar os seus fantasmas... Da paixão à cooperação foi um passo... Mais recentemente, descobriu o nosso blogue, que visita regularmente, e mais do que isso mantém o seu próprio blogue: Caminhos por onde andei...
Hoje voltou a escrever-me, dizendo:
"No Blog, vou revivendo e recordando com o meu marido. Continuarei a blogar. Estamos a tentar digitalizar os slides de 69/70, época da luta (nunca chamei turras aos guerrilheiros) e 81/82, época em que estivemos lá como cooperantes.
"No meu blog, as memórias e factos, alguns bem curiosos, irão aparecendo. Continuem com a vossa tertúlia! Passo por lá diariamente. Os meus cumprimentos. Manuela Gonçalves".
No Dia Internacional da Mulher, a Nela, companheira de um camarada nosso (cujo nome e unidade desconhecemos, mas que terá viajado connosco no memso barco, na mesma altura), merece o devido destaque.
Com a sua licença, tomo a liberdade de reproduzir aqui dois dos seus posts em que ela evoca esse doloroso tempo em que elo de comunicação entre os homens que faziam a guerra na Guiné e as mulheres (mães, namoradas, madrinhas de guerra...) que ficavam na retaguarda, se fazia através do frágil e suspeito aerograma...
2. Blogue da Nela [Manuela Gonçalves] > Caminhos por onde andei > 7 de Janeiro de 2006 > Guiné-Bissau (1)
Esta noite, ao navegar pelos blogs que visito habitualmente, fui parar, através de hiperligações de posts, ao Blogue Fora-Nada, que reúne documentos e memórias de ex-combatentes da Guiné-Bissau.
Não fui combatente na Guiné, mas esses caminhos foram percorridos por mim de modo e tempo diferentes... Tornaram-se mesmo decisivos na minha vida de jovem estudante universitária rebelde, namorada de um alferes miliciano que para ali fora enviado para a guerra, mais tarde meu companheiro de vida (já lá vão 35 anos) e de mulher e mãe, que considerou importante ir para Bissau, como cooperante!
A Guiné dos aerogramas despertara um desejo imenso de conhecer a Guiné das bolanhas, das tabancas, dos mosquitos, dos rios e pântanos e das gentes que ali viviam, dos flupes, dos mandingas, dos papéis, de Amílcar Cabral, dos guerrilheiros do PAIGC...
Nunca tinha aceite a Guerra Colonial, mas uma vez que ela tinha entrado nas nossas vidas abruptamente e deixado incapacidades físicas ao maridão, senti uma vontade imensa de viajar para aquele pequeno país e conhecê-lo bem!
Era como que uma necessidade intrínseca de compreender bem uma etapa importante da vida vivida pelo companheiro de route!
Bissau, Bafatá, Mansoa, São Domingos, Ingoré eram locais que precisávamos (re)visitar.
E fomos lá! Também os nossos filhos nos acompanharam, crianças ainda, viram e pisaram as picadas que , anos antes, o pai cruzara, sempre alerta! Agora podíamos circular livremente, apesar do mau estado das estradas, mas em paz e liberdade!
Gostei da Guiné-Bissau! Voltar lá foi um modo de exorcizar fantasmas de guerra que habitavam a nossa casa!
Hei-de voltar ao tema!
Nela [Manuela Gonçalves]
Terça-feira, 7 de Março de 2006 > Guiné-Bissau (2)
Andei a rever fotos antigas. Com elas caminhei por memórias bem aninhadas em mim, por vidas vividas, por estradas perdidas, por espaços guardiães das minhas / nossas vivências. Nossas, cá da casa, mas sobretudo minhas e do companheiro de tantos anos.
Foi em 1969, Maio, que ele foi para a Guiné. A bordo do Niassa e integrado numa companhia que fora formada em Estremoz. Rendição individual, quando nada fazia prever que ainda fosse até à Guerra. A faculdade ficou para trás, os sonhos adiados por uns anos.
Da Guiné, chegavam aerogramas que eu lia e tentava decifrar. Sim, naquela época, era preciso decifrar as palavras, como aquelas em que me dizia que tinha dado um passeio até ao Senegal. Eu sabia que tal significava que tinham feito uma incursão em terras senegalesas e fiquei receando que fosse feito prisioneiro. Pouco tempo antes, um grupo de oficiais tinha desertado e procurado asilo na Suécia.
Na faculdade, eu continuava o curso e a apoiar as lutas estudantis contra a guerra colonial. E escrevia cartas, cartas, aerogramas. Sempre muito cautelosa, sabia-se lá quem poderia ler as nossas palavras.
Recebia aerogramas aos pares. Um dia não recebi. O silêncio continuou por duas longas semanas. Não fazia ideia do que poderia ter acontecido. Passaram diversos cenários pela minha mente, todos deduzidos pelas conversas que tínhamos tido, pelas utopias que partilhávamos, pelas palavras que não eram escritas. Teria sido apanhado no Senegal? Teria ido ele para o Senegal? Estaria morto? Ferido? Os jornais falavam da captura de um major cubano.
Que se passava? Um aerograma de um amigo, Alferes Baptista, no Q.G. em Bissau, deu – me a notícia: uma mina tinha rebentado com o Unimog, quando ele e o seu pelotão 60 seguiam numa patrulha. Ele estava no HMP em Bissau, em coma. Era dia 13 de Novembro de 1969, 10:30 da manhã.
Restava-me esperar que o trouxessem para Lisboa e falar diariamente com um médico, amigo de uma tia, que prestava serviço no Hospital em Bissau. E de longe fui acompanhando o seu estado! Mais tarde um lacónico aerograma dele, muito parco em palavras, cheio de silêncios, confirmava-a.
Apesar de toda a dor e angústia sentidas, uma grande alegria: ele estava vivo. Os sonhos continuavam adiados, mas não jogados fora. Uma nova etapa nas nossas vidas havia começado!
Nela [Manuela Gonçalves]
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Nota de L.G.
(1) Vd. pots de 9 de Janeiro de 2006 > Guine 63/74 - CDXXXV: O que os outros (blogues) dizem de nós (1): Caminhos por onde andei
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