17 dezembro 2005

Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)

Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. © Mário Dias,

Da esquerda para a direita: (i) sold João Firmino Martins Correia; (ii) 1ºcabo Marcelino da Mata; (iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; (iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; (v) fur Mário F. Roseira Dias; (vi) sold Joaquim Trindade Cavaco(Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).


Texto da autoria do Mário Dias, sargento comando (Brá, 1963/66):

OPERAÇÃO TRIDENTE > Guiné > Ilha do Como > De 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964

III (e última) Parte



7. As abelhas

Dia 23 de Fevereiro novamente embarcados numa LDM com o Pelotão de de Paraquedistas e 8º Destacamento de Fuzileiros, rumo a Curcô onde pernoitámos.

No dia seguinte, com mais um grupo de combate da CCAV 488, iniciámos uma batida à mata. Por duas vezes tivemos contacto com um numeroso grupo de guerrilheiros que dispunham de um morteiro 82 e 1 metralhadora pesada 12,7mm. As NT causaram 7 mortos confirmados, sendo 3 caboverdeanos, armados com pistola-metralhadora, dois deles fardados de caqui. Nesta acção, o Pel Paraquedistas teve 1 morto, 1 ferido grave e 1 ferido ligeiro. Uma rajada de PPSH inutilizou a arma do comandante dos páras, que ficou ferido na cabeça.

Quando me recordo, à distância dos anos, do que aconteceu a seguir, dá-me vontade de rir da cena caricata que devemos ter feito.

Eu conto: tendo nós conseguido sempre levar a melhor nos contactos com o IN, eis que um enorme enxame de abelhas se abateu sobre nós. Toda a gente a sacudir-se, ferroadas de criar bicho, correria desenfreada. Quem diria… pequenos insectos conseguiram aquilo que o IN nunca foi capaz: pôr-nos em fuga. Com o pessoal todo picado, já havia muitos olhos tumefactos, nada poderíamos fazer a não ser o regresso a Curcô. Ganharam as abelhas.

Na orla da mata perto de Curcô, ainda descobrimos uma plataforma construída sobre palafitas, com cerca de 1,80m de altura, e que servia como posto de vigia sobre aquela localidade. Deixámo-la ficar armadilhada. Não sei se a armadilha chegou ou não a ser activada. Hoje, faço votos para que não.

8. Acentuam-se os indícios de fraqueza do IN

Que bem dormia eu quando, naquela madrugada do dia 27 de Fevereiro, “às 4 da matina” me acordaram:
- Porra… são lá horas de acordar um pacato cidadão embrenhado em sonhos tão deliciosos!...
- Vamos embora! - Mais uma vez a mata espera por nós. E fomos.

Sol já a brilhar, movimentos suspeitos no tarrafe. Avançámos cautelosamente para averiguar. Apenas algumas pegadas de 2 ou 3 pessoas que devem ter fugido com a nossa aproximação.
Nesse dia, juntamente com o Pel Paraq e 1 grupo de combate de elementos das CCCAV 487 e 489 foi destruída a tabanca de Catabão Segundo onde fizemos um prisioneiro e apreendemos 2 binóculos, 1 cantil, 1 espimgarda G3 com 4 carregadores, e 3 granadas de mão. Mais uma acção em que o IN não deu sinais de vida.

Voltemos então para a praia.

Decididamente não me concedem o prazer de me entregar nos braços de Morfeu tranquilamente.
- Eh pá, ainda só são cinco horas.
- Deixa-te de tretas e vamos embora. Temos que explorar uma informação importante dada pelo prisioneiro que capturámos no dia 27.
- É isso? É para já.
Enfiar camuflado, botas, pegar no equipamento e armamento. Está tudo em ordem? Claro que está. A arma de um comando está sempre junto dele e pronta a funcionar ao segundo.

Progressão silenciosa, escondidos, calma, devagar, parar e escutar com frequência. Sem surpresa é impossível um golpe de mão bem sucedido.

Acampamento atingido e assaltado às 9 horas, praticamente sem resistência (o IN fugiu). Era constituído por cerca de 50 casas de mato com uma centena de camas de madeira e de ferro. Viva o luxo!...até havia mosquiteiros, colchões, lençóis, colchas e outras “mordomias”. Espalhados por diversos locais, máquina de escrever, máquinas de costura, roupa já confeccionada e peças de tecido, muitos livros de instrução primária em português, muita correspondência, e os habituais utensílios de uso doméstico. O acampamento estava rodeado por alguns abrigos e tinha postos de observação nas árvores.

Incendiadas as casas de mato começou o habitual estoiro de munições e granadas que ali se encontravam escondidas escapadas à nossa observação.

Nas proximidades estava um cemitério com 30 sepulturas recentes.

Desta acção, realizada no dia 1 de Março, trouxemos para a base (rica praia!): 1 cunhete com 800 cartuchos 7,9; 80 cartuchos 7,62; muitas munições de diversos calibres; 1 granada de mão incendiária; 1 cantil USA; catanas.

Aos poucos, a forte resistência inicial do PAIGC vai caindo por terra. Mostram já sinais evidentes da falta de agressividade, que é parte da doutrina da guerrilha: “ataca quando o IN está fraco; esconde-te se ele é mais forte”.

Mensagem de Nino aos seus guerrilheiros em poder de um prisioneiro por nós capturado:

“Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio… As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças…camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas… do vosso camarada, Marga - Nino “,

Emboscadas do grupo de comandos na mata de S. Nicolau, na noite de 5 de Março até à tarde do dia seguinte, mais uma vez os guerrilheiros não compareceram.


9. As vacas e o arroz

Um agrupamento constituído pelo grupo de comandos, 8º Dest.Fuz, e um grupo de combate da CCAV 489, iniciaram, por volta das 8 da manhã de 12 de Março, uma acção sobre Catunco Papel e Catunco Balanta a fim de cercar e bater todas a zona destruindo tudo quanto possa constituir abrigo ou abastecimento para o IN e que não seja possível recuperar pelas NT.

Cercada a tabanca de Catundo Papel e de seguida Catunco Balanta, foram as casas revistadas e destruídas, tarefa que demorou quase 5 horas. Foram recuperadas 5 toneladas de arroz; capturado um elemento IN e apreendidas 2 granadas de mão, livros escolares em português, cadernos, fotografias, facturas, recibos de imposto indígena, e um envelope endereçado a BIAQUE DEHETHÉ, sendo remetente MUSSA SAMBU de Conakry.

Terminamos este dia com a acção que mais me custou durante toda a permanência no Como. Têm que ser abatidas cerca de uma centena de vacas que por ali andavam na bolanha bucolicamente pastando. Não havia forma de podermos transportá-las connosco. Começado o tiro ao alvo, iam caindo sem remédio. Pobres bichos. E que desperdício. Enquanto fazia pontaria ia ironicamente pensando naquela carne que por ali ia ficar para os jagudis enquanto nós tínhamos andado 23 dias a ração de combate.

- Que desperdício!... - E pensava:
- Olha aquele lombo como ficava bom num espeto a rodar, bem temperado com sal, limão e malagueta!...(pum) e aquela, que belo fígado deve ter para uma saborosas iscas !...pum… e pum… e mais pum até chorar de raiva.

Coisas da guerra … sempre impiedosa.

Concluída a mortandade, ainda alguns esquartejaram pernas e extraíram lombos para uma refeição extra. Deve ter sido fruto desta acção, a oferta pelos fuzileiros de carne de vaca à CCAV 489 a que se refere o Joaquim Ganhão na sua ”Cónica do soldado 328” (1).

10. Últimas operações.

Às 03H30 do dia 16 de Março, chegados a Curcô, aguardamos a aurora pondo-nos a caminho com a CCAV 489 (-). A missão era bater a mata até Cassca e daí virar a Sul até Cauane, eliminando ou aprisionando qualquer elemento IN e detectar e destruir tudo quanto possa oferecer abrigo ou recursos para o IN. Resistência ?...mais uma vez, nada.

Foi encontrado um acampamento com 15 casas de mato. Uma delas bem grande que nos pareceu ser destinada a reuniões onde estava um molho de panfletos de acção psicológica das NT, recentemente lançados na ilha pelos nossos aviões. Numa outra barraca, um caderno de cópias de INÁCIO BATALÉ, datado de 12 de Novembro de 1963. Nas imediações foram descobertos e destruídos 3 depósitos de arroz, estimando-se serem cerca de 15 toneladas.

Progredindo para Sul, dentro da mata da região de Cauane, e a cerca de 600 metros da tabanca, detectou-se um grupo de 7 elementos armados de espingarda e de pistola-metralhadora. Fogo…pum. Dois tiros chegaram e caiu um. Mais dois tiros e caiu outro armado de PPSH e de farda camuflada. Mais um tiro e outro ferido que fugiu aos gritos.

Os sobrantes puseram-se em fuga. O inimigo não parecia o mesmo das primeiras semanas da batalha do Como. Estava de facto enfraquecido e fugia ao contacto.

Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, Ten Cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23H30 do dia 20 de Março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.

Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02H30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas.

Siga a tropa. Para a frente é que é o caminho. Já próximo da orla da mata de Cachil, ao “romper da bela aurora”, detectados 3 elementos IN um armado de PPSH e os outros dois de espingarda. Meia dúzia de tiros foram suficientes para fugirem. Um deles, ferido, deixou para trás a espingarda Mauser 7,9mm e 5 cartuchos da mesma. Tinha sangue na coronha.
Mais tarde, outro grupo de 5 elementos, avistados um pouco à distância, foram alvejados e fugiram sem responder ao nosso fogo. Levaram dois feridos.

Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros.

Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como.

Por brincadeira dizíamos que tínhamos ido “fechar as portas da guerra”.
Foram também os últimos banhos.

No dia 22 de Março, o grupo de comandos regressou a Bissau, aproveitando a boleia da Dornier e alguns hélis que em diversas vagas nos transportaram. O Grupo de Comandos não teve baixas, nem feridos, nem nenhum elemento evacuado por doença, fazendo juz ao nosso lema: “Audaces fortuna juvat” (2)

Para as restantes tropas foram mais dois dias de trabalho a “desmontar o arraial.” Creio que foi o que menos lhes custou.


BAIXAS DE AMBOS OS LADOS

Das NT:

8 Mortos
15 Feridos


Do IN:

76 Mortos (confirmados)
29 Feridos
9 Prisioneiros


CONCLUSÕES

De tudo quanto descrevi, e que corresponde à realidade por mim vivida durante a Operação Tridente, podemos verificar que nem sempre, ou quase nunca, a história é escrita com isenção. Na verdade, tem-se especulado muito sobre o que realmente se passou no Como. Derrota para as tropas portuguesas, dizem uns, grande vitória, contrapõem outros.

Para mim, nem uma coisa nem outra, porque na guerra, em qualquer guerra, não há vencedores: todos são vencidos pela existência da própria guerra.

Porém, analisando a Operação Tridente no âmbito estritamente militar, facilmente se chega à conclusão que:

- O PAIGC dominava a Ilha do Como em 1963;

- Nas primeiras duas semanas opôs feroz resistência às NT, a quem causou baixas, não
permitindo a nossa progressão pela mata onde estava fortemente instalado;

- Graças à nossa persistência no combate, favorecida pela superioridade de meios que
na altura ainda tínhamos, fomos aos poucos dominando a situação;

- A partir da 3ª semana já conseguíamos entrar e progredir na mata;

- Sensivelmente na 5ª semana, já nos movimentávamos facilmente por toda a ilha e os
guerrilheiros opunham esporádica e fraca resistência;

- Começou a notar-se, a partir da 7ª semana, uma completa desagregação da
capacidade de combate dos guerrilheiros: basta ler a mensagem do Nino dirigida ao
seu pessoal e transcrita nesta crónica;

- No final da operação o PAIGC já não dominava a ilha;

A teoria defendida por alguns, sobretudo pelo PAIGC (mas essa não é de admirar) que as tropas portuguesas se viram forçadas a abandonar a ilha, não é verdadeira:

1) As tropas retiraram por ter terminado a operação e não se justificar a sua continuação uma vez alcançado o objectivo: o domínio da ilha pelas NT;

2) A ilha não foi abandonada pois ficou instalada em Cachil (na tal “fortaleza” de troncos de palmeira) uma companhia para patrulhar e não deixar que o IN se reorganizasse naquela região;

3) Se mais tarde se veio a verificar o recrudescer da actividade no local, isso deve-se ao facto de a Companhia que lá ficou se ter refugiado na “fortaleza”, nunca de lá saindo a não ser para ir para Catió quando era substituída por outra (Mas isso, é outra história);

Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e,

Sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados.



COMO É BOM VIVER EM PAZ!...

Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. Da esquerda para a direita [vd. foto no início deste pot]:

Sold João Firmino Martins Correia;
1ºcabo Marcelino da Mata;
1º cabo Fernando Celestino Raimundo;
Fur mil António M. Vassalo Miranda;
Fur Mário F.Roseira Dias;
Sold Joaquim Trindade Cavaco.

(Os postos referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos.)

Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanta e o Joaquim. O Jamanta será mais tarde, em 1975, fuzilado no Cumeré, juntamente com outros comandos africanos.

© Virgínio Briote (2005)




Não posso deixar aqui de referir e prestar homenagem a alguns extraordinários elementos deste grupo, já falecidos:

- Fur mil Artur Pereira Pires, morto alguns meses depois na explosão de uma mina anti carro, nas proximidades de Madina do Boé;

- 1º Cabo Abdulai Queta Jamanca, fuzilado, juntamente com muitos outros ex-comandos africanos após a independência, por ordem de Luís Cabral;

- Por causa do natural e inexorável girar da roda da vida: Alf Maurício Leonel de Sousa Saraiva e Alf mil Justino Coelho Godinho.

PAZ ÀS SUAS ALMAS!

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