23 outubro 2003

(Ex)citações de cada dia - V: O tabaco, a saúde, a vida e a poesia

Mãos ao ar: o tabaco ou a vida



Com a minha singela homenagem aos poetas populares, e com a devida vénia ao Zé Correia, de Vila Verde de Ficalho, a "aldeia sem tabaco"... Para muitos homens e mulheres que fumam (ou que já fumaram), o tabaco está associado à sociabilidade, à doçura mediterrânica, ao dolce far niente, ao prazer da vida, ao amor, à amizade, ao companheirismo, à cumplicidade, à guerra e à paz (O primeiro cigarro que fumei terá sido no navio da marinha mercante, fretado pelas Forças Armadas Portuguesas, o velho Niassa, a caminho das matas da Guiné)... Mas como muitas outras coisas boas da vida, o tabaco também faz mal à saúde e mata (a) gente... Estamos a descobri-lo, dolorosamente, relutantemente...



Tabaco, vida, poesia e saúde: esta quádrupla já não combina mais, minha gente... Em breve o nosso Irmão Grande vai decretar a morte da cultura do tabaco e decidir plantar abrolhos nas Berlengas & Farilhões. Fernando Pessoa e Álvaro de Campos já não encontrarão, no regresso a Lisboa, a sua velha e familiar tabacaria nem muito menos o dono da tabacaria a sorrir da estupidez da metafísica que dá stresse, angústia, taquicardia e suores frios e mata (a) gente. Um dia destes a tabacaria, no Centro Cultural de Belém, onde o tabagista pós-moderno compra o jornal, o cigarro e o charuto, vai substituir discretamente a sua tabuleta, que diz "Cultura do tabaco"... O tabaco (e que mais ?) vai passar a ser politicamente incorrecto, socialmente indesejável, culturalmente execrável, sanitariamente proscrito...



Li hoje num grafito, no muro sujo de um hospital, que um dia destes o prazer vai vender-se, liofilizado, em embalagens assépticas, com certificação dos laboratórios de referência...



Morreu a cultura do tabaco ? A vida continua dentro de momentos... Ah! grande O'Neil, tu que te recusaste sempre a ser um "exemplar cretino", apesar da cedilha pendurada ao canto da boca!... Só Campos, esse, continuará a fumar, para contrariar a merda do destino e da metafísica:



"Acendo um cigarro (...)

E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

Sigo o fumo como uma rota própria,

E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertação de todas as especulações

E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto".



PS - Não fumo. Já fumei. O blogger.



1. Não fumo, quero viver





Cigarro é prazer efémero

Que te mata lentamente;

Lembra-te do coração,

Da garganta, do pulmão,

Não queiras ser dependente.





Será que ao fumar não pensas

Que a vida te vai escapando ?

Tens a mania que és forte,

Que só tens medo é da morte

Mas continuas fumando.



Um dia ouvi-te dizer

Que o cigarro é um companheiro,

Então procura outro amigo

Que esse acaba contigo

E acaba com o teu dinheiro.



E até se beijas alguém

Não ficas envergonhado ?

Mesmo num beijo de amor

Será diferente o sabor

Se tu não tiveres fumado.



Se estás a tempo, recua,

Deus só nos deu uma vida.

Mesmo que te dê prazer

Pára p’ra poderes viver

Essa vida bem vivida.



E tu que nunca fumaste

Nunca penses em fazê-lo

Bem alto podes dizer

Sou feliz, quero viver,

Tabaco, nem quero vê-lo.





Zé Correia

Vila Verde de Ficalho, Natal 2002







2. Para uma roda de amigos:



O tabaco da vida



De amor cantando,

sem nele demasiado acreditar,

Dei a volta ao coração (demorei anos):

está só - mas sem nemhuma vontade de parar...



Desiludios ? Paciência, amigos...

Bebamos mais, fumemos, refumenos,

entre as mulheres, o tabaco da vida.

Cmo cedilhas penduradas que felizes seremos,



exemplares cretinos nesta noite comprida...





Alexandre O'Neil (1924-1986)

Poemas com Endereço (1992)



(In: Alexandre O'Neil - Poesias Completas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000. 181)





3. A tabacaria (exercertos)



(...) Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.

Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.





Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los

E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

Sigo o fumo como uma rota própria,

E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertação de todas as especulações

E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.





Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando.

Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.





(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira

Talvez fosse feliz.)

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).

Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.

(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.



Álvaro de Campos (1928)













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