20 outubro 2003

(Ex)citações de cada dia - II: Verdade e terror

O tabaco e o fascismo sanitário

O procedimento das autoridades francesas ligadas à saúde pública e à segurança social terá sido eticamente correcto ? Será legítimo pôr uma população inteira em estado de choque por uma "boa causa" ? Os fins justificam os meios ?

Refiro-me à notícia, vinda no Publico de 26/6/2002, sobre um anúncio que acabava de ser exibido nas sete principais cadeias da TV francesas. Eis alguns excertos:

"Numa altura em que é cada vez mais difícil distinguir a informação da publicidade, os telespectadores gauleses viram surgir, no intervalo dos noticiários ou entre programas do horário nobre, um fundo negro sobre o qual ia aparecendo escrito um aviso. Uma voz-off acompanhava o aparecimento das palavras: "Foram detectados vestígios de ácido cianídrico, mercúrio, acetona e amoníaco num produto de grande consumo".

Ainda segundo o Público, "o anúncio remetia depois para um número de telefone gratuito, através dos qual os telespectadores poderiam obter mais informações sobre o assunto, nomeadamente sobre o produto em causa (...)".

Lançado de forma "alarmista e surpreendente", o anúncio, de cinco segundos, provocou uma onda de pânico: "as pessoas temiam que se tratasse de um alimento envenenado ou de um produto de higiene".

Ainda a notícia do Público, houve o maior secretismo no lançamento da campanha de tal modo que os próprios órgãos de comunicação social foram apanhados desprevenidos. Como resultado, o número de telefone gratuito, “preparado para atender 50 mil chamadas por hora, bloqueou e permaneceu inacessível durante a noite de domingo. Mesmo depois de uma segunda parte do anúncio ter sido exibida, explicando que o produto 'contaminado' eram os cigarros, muitas pessoas continuavam agarradas ao telefone".

Com um custo estimado de 4 milhões e meio de euros, a campanha publicitária estava programada para decorrer até 7 de Julho de 2002, tendo sido patrocinada pelo Instituto Nacional de Prevenção e Educação para a Saúde (INPES), em parceria com a Segurança Social francesa (a quem compete pagar os encargos com os cuidados de saúde, os medicamenos, as despesas médicas, a hospitalização, etc.).

Segundo a agência publicitária que criou o polémico anúncio (a Euro RSCG BETC), era preciso dramatizar a situação, com o argumento de que os epidemiologistas e demais especialistas da saúde pública estavam desesperados porque ninguém... lhes dava ouvidos!

Um responsável do INPES disse à imprensa que era preferível assustar os franceses a ter que “lidar anualmente com 60 mil mortes causadas pelo tabaco”, uma verdadeira hecatombe!...

As reacções que se seguiram foram as mais diversas: (i) uns felicitaram o "genial golpe mediático", enquanto (ii) outros se mostraram revoltados contra "contra a hipocrisia do Estado", o tal que com uma mão paga este tipo de anúncios e com a outra arrecada quantias astronómicas provenientes das elevadas taxas fiscais impostas ao consumo de tabaco.

Num fórum criado na Internet para debater a campanha podiam-se ler ainda outros argumentos: "Ok, fumar está errado", admitia um cibernauta. "Mas beber está errado, conduzir como um tarado está errado, drogar-se está errado, manter relações diplomáticas com ditadores está errado. Em vez de gastarem o meu dinheiro em campanhas inúteis mais valia aplicá-lo na investigação científica. Isso sim, seria verdadeiramente útil".

Alguns participantes temiam pela eficácia de futuras advertências, lembrando a história do pastor e do lobo: "À força de gritarem que vem lá o lobo, as pessoas não irão acreditar quando este tipo de anúncios se referir a um produto nocivo, consumido involuntariamente".

Segundo estimativas da Direcção-Gerald e Saúde morrem em Portugal cerca de 11 mil pessoas todos os anos, na sequência do consumo de tabaco: sete vezes mais do que os acidentes de automóvel e mais num só ano do que em 13 anos de guerra colonial.

Entre nós a questão que se pode levantar é a seguinte: Uma campanha deste tipo poderá ser eficaz ? Vai contribuir efectivamente para a redução da hecatombe provocada pelo tabagismo ? Será também susceptível de pôr os portugueses em estado de choque ? E sobretudo, no país dos brandos costumes, irá provocar polémica ?

Manifestei, na altura, a minha opinião, a quente: "Tenho desde já muitas reservas em relação este estilo de campanhas. A causa (a prevenção da doença e a promoção da saúde) é boa, mas os meios são perversos. Não duvido da sua eficácia (momentânea...), mas temo o precedente. Isto não é educação para a saúde, isto não é serviço público, isto é puro terror, é condenar a vítima, é desresponsabilizar o sistema (O Estado, o Governo, os serviços de saúde, a indústria tabaqueira, a ciência, a sociedade de consumo, a publicidade ...). Isto é um exemplo de "fascismo sanitário" ou pode pode ser um ensaio de "fascismo sanitário"... Não me dizem toda a verdade, mas depois acusam-me: “Agora tu sabes”... (Maintenant vous le savez...). Como quem diz: “Só a ti compete decidir: o tabaco ou a vida" (1).
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Post scriptum - Eu não fumo

(1) Fóruns do Publico.pt > Cidadania - Verdade e Terror: O Caso da Campanha Antitabágica em França (26.6.2002). Vd. também (Ex)citações de cada dia (Letras U-Z)

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