Mãos ao ar: o tabaco ou a vida
Com a minha singela homenagem aos poetas populares, e com a devida vénia ao Zé Correia, de Vila Verde de Ficalho, a "aldeia sem tabaco"... Para muitos homens e mulheres que fumam (ou que já fumaram), o tabaco está associado à sociabilidade, à doçura mediterrânica, ao dolce far niente, ao prazer da vida, ao amor, à amizade, ao companheirismo, à cumplicidade, à guerra e à paz (O primeiro cigarro que fumei terá sido no navio da marinha mercante, fretado pelas Forças Armadas Portuguesas, o velho Niassa, a caminho das matas da Guiné)... Mas como muitas outras coisas boas da vida, o tabaco também faz mal à saúde e mata (a) gente... Estamos a descobri-lo, dolorosamente, relutantemente...
Tabaco, vida, poesia e saúde: esta quádrupla já não combina mais, minha gente... Em breve o nosso Irmão Grande vai decretar a morte da cultura do tabaco e decidir plantar abrolhos nas Berlengas & Farilhões. Fernando Pessoa e Álvaro de Campos já não encontrarão, no regresso a Lisboa, a sua velha e familiar tabacaria nem muito menos o dono da tabacaria a sorrir da estupidez da metafísica que dá stresse, angústia, taquicardia e suores frios e mata (a) gente. Um dia destes a tabacaria, no Centro Cultural de Belém, onde o tabagista pós-moderno compra o jornal, o cigarro e o charuto, vai substituir discretamente a sua tabuleta, que diz "Cultura do tabaco"... O tabaco (e que mais ?) vai passar a ser politicamente incorrecto, socialmente indesejável, culturalmente execrável, sanitariamente proscrito...
Li hoje num grafito, no muro sujo de um hospital, que um dia destes o prazer vai vender-se, liofilizado, em embalagens assépticas, com certificação dos laboratórios de referência...
Morreu a cultura do tabaco ? A vida continua dentro de momentos... Ah! grande O'Neil, tu que te recusaste sempre a ser um "exemplar cretino", apesar da cedilha pendurada ao canto da boca!... Só Campos, esse, continuará a fumar, para contrariar a merda do destino e da metafísica:
"Acendo um cigarro (...)
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto".
PS - Não fumo. Já fumei. O blogger.
1. Não fumo, quero viver
Cigarro é prazer efémero
Que te mata lentamente;
Lembra-te do coração,
Da garganta, do pulmão,
Não queiras ser dependente.
Será que ao fumar não pensas
Que a vida te vai escapando ?
Tens a mania que és forte,
Que só tens medo é da morte
Mas continuas fumando.
Um dia ouvi-te dizer
Que o cigarro é um companheiro,
Então procura outro amigo
Que esse acaba contigo
E acaba com o teu dinheiro.
E até se beijas alguém
Não ficas envergonhado ?
Mesmo num beijo de amor
Será diferente o sabor
Se tu não tiveres fumado.
Se estás a tempo, recua,
Deus só nos deu uma vida.
Mesmo que te dê prazer
Pára p’ra poderes viver
Essa vida bem vivida.
E tu que nunca fumaste
Nunca penses em fazê-lo
Bem alto podes dizer
Sou feliz, quero viver,
Tabaco, nem quero vê-lo.
Zé Correia
Vila Verde de Ficalho, Natal 2002
2. Para uma roda de amigos:
O tabaco da vida
De amor cantando,
sem nele demasiado acreditar,
Dei a volta ao coração (demorei anos):
está só - mas sem nemhuma vontade de parar...
Desiludios ? Paciência, amigos...
Bebamos mais, fumemos, refumenos,
entre as mulheres, o tabaco da vida.
Cmo cedilhas penduradas que felizes seremos,
exemplares cretinos nesta noite comprida...
Alexandre O'Neil (1924-1986)
Poemas com Endereço (1992)
(In: Alexandre O'Neil - Poesias Completas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000. 181)
3. A tabacaria (exercertos)
(...) Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos (1928)
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