13 julho 2005

Blogantologia(s) - XXVIII: A Naifa e os novos sons subterrâneos

Ponham os olhos (e os ouvidos) neste grupo musical português, A Naifa, e o seu primeiro álbum "Sons subterrâneos", produzidos a partir da exploração de novas formas musicais e poéticas associadas à canção popular de Lisboa.

Aqui ficam as letras de algumas das canções, escritas por poetas da nova geração (Adília Lopes & Companhia). Para mim a melhor letra (e música) é a 4 (Música, poema de José Luís Peixoto). Podiam ser filhos e filhas do Cesário Verde, ou do Álvaro de Camps ou do Alexandre O'Neil. Felizmente que não estão no Parque dos Poetas do Isaltino.

2. Skipping
Poema: Rui Pires Cabral

Na estrada mal alcatroada
do subúrbio
onde havia fábricas e o dia
era um tormento

Quando a luz veio
nos postigos e o teu corpo
não me serviu de resgate

Tudo perdido em favor
das grandes rodas
da angústia no autocarro


3. Queixas de um utente
Poema: José Miguel Slva

Pago os meus impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.

Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.

Deus é a nossa mulher a dias~
Poema: Adília Lopes

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa


4. Música
Poema: José Luís Peixoto

Como um raio a rasgar a vida, como uma flor
a florir desmedida, como uma cidade secreta
a levantar-se do chão, como água, como pão

Como um instante único na vida, como uma flor
a florir desmedida, como uma pétala dessa flor
a levantar-se do chão, como água, como pão,

Assim nasceste no meu olhar, assim te vi,
flor a florir desmedida, instante único
a levantar-se do chão, a rasgar a vida,

Assim nasceste no meu olhar, assim te amei,
vida, água, pão, raio a rasgar uma cidade secreta
a levantar-se do chão, flor a florir desmedida


8. Bairro velho
Poema: Tiago Gomes

No bairro por trás da avenida nova
com as ruelas sombreadas das traseiras
onde na praça tudo é mais barato cordial
as peixeiras com olhos de boga
gritam para vender o seu peixe

As finíssimas senhoras das avenidas dão por mim
quando passo

11. Poema com domícilia
Poema: Carlos Luís Bessa

Esta apólice, o vizinho de cima
a puxar o autoclismo
a bater na mulher e nos filhos

A água da torneira com cheiro a lexivia
sempre a pingar
o televisor com uma avaria

Talvez o canteiro das flores
sujas e maltratadas
estas zangas por tudo e por nada


Questão da noite
Poema: Nuno Moura

Questão da noite
do programa que acontece
em Portugal, neste fim de século,
navegar é preciso ?
resposta:
se morar no Barreiro, sim


PS - No sitio do grupo, constituído por Luís Varatojo (guitarra), João Aguardela (Baixo), Vasco Vaz (bateria) e Maria Antónia Mendes (voz, e que voz!) podem aceder a a uma amostra das suas criações musicais, através de registos de som e vídeos.

Recomendo que comprem o CD. Vai fazer história. Eu ainda não comprei mas vou já para a bicha. É o tom e o som deste tempo, desta cidade, desta saudade, deste spleen, desta morabeza, desta tristeza quente e afável que nos alimenta e que nos mata, e que é tão nossa que não dá para exportar (nem para explicar)...

O grupo, além de compor e cantar, tamnbém bloga... Vejam o sítio > A NAIFA
Um dia tão bonito e eu não fornico
.

Sem comentários: