19 outubro 2005

Guiné 63/74 - CCXLVI: A propósito da Lança Afiada e do mítico Corubal

1. Ao inserir no nosso blogue a primeira parte do relatório sobre a "grande operação de limpeza" que foi Op Lança Afiada (8 a 19 de Março de 1969, na região compreendida pelo triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, e que na estrutura político-militar do PAIGC correspondia ao Sector 2, com sede em Mina)(1), pedi aos tertulianos para fazer comentários," sobretudo aqueles de vocês que conheceram estes sítios ou que levaram porrada nestes sítios (o Guimarães e malta do Xitole, o Humberto, o Levezinho e o Fernandes da CCAÇ 12, a malta de Mansambo, a malta do Xime, etc.)". E acrescentava: "Todos estes nomes, da Ponta do Inglês a Satecuta, sempre inspiraram respeitinho à rapaziada"...

Pois aqui vai o primeiro comentário, o do David Guimarães (ex-furriel miliciano da CART 2716, Xitole, 1970/72).


2. Comentário do David Guimarães:

Ai, ai, que estou faltoso - sou efectivamente muito distraído !... Mas estou a ler... Quero continuar a ler este documento, é capaz de ser muito importante. Pelo menos tem uma coisa importante: fala das terras por onde andámos...

A Ponta do Inglês e Satecuta ficavam ambos muito juntas, sendo que a Ponta do Inglês pertencia à áera de intervenção do Xime enquanto que Satecuta pertencia à área de intervenção do Xitole... A Mata do Fiofioli como que começava numa e terminava na outra zona.

Em 1970, Mansambo foi um aquartelamento invejado por todos... É que foi uma autêntica colónia de férias... Sem querer de qualquer forma tecer algum comentário crítico aos meus camaradas e amigos de lá - CART 2714 (1970/72), que pertencia ao nosso batalhão (BART 2917, Bambadinca, 1970/72) -, as grandes operações que eles tinham era fazerem guardas às colunas de reabastecimento que vinham de Bambadinda para o Xitole e Saltinho, com regresso a casa...

A certa altura quis a sina (o Comandante) que um pelotão por mês - creio -, fosse intregar a companhia do Xime... Um militar era assim, descansadinho a beber uma cerveja e, de repente, lá caía ele na rifa, numa dessas, ir passear até ao Xime.Mas que rica excursão!

Pelo que vi no documento aí escrito, Satecuta foi destruído em certa data. Pois é, só que eles, o pessoal do PAIGC, sabiam fazer casas melhor que nós e bem mais rápido... Em 1970 Satecuta parecia uma cidade!

Quanto a Seco Braima, ali bem perto da foz do Rio Poulon, como dizem não era propriamente um aquartelamento do PAIGC, mas uma tabanca com campos de cultivo. Era como que um acampamento adiantado de Satecuta, com uma pequena força de guarda aos camponeses que aí trabalhavam...

Romantismos de guerra: o documento não refere o nosso destacamento da Ponte dos Fulas... Ainda hoje pergunto porque é que eles nunca nos atacaram... Ainda bem que o não fizeram. E fizeram muito bem... A nossa área de intervenção também ia, por outro lado, até à Tabanca de Tangali, estrada Xitole-Saltinho, até à ponte Carmona, a tal ponte interrompida, que ainda hoje o é, na antiga Estrada Xitole - Aldeia Formosa (Qebo)...

As zona piores efectivamente eram as zonas de margem direita do Corubal como nesse documento se diz e que vai até à sua foz, n o Rio Geba.

Creio que se fala aí no Batalhão que eu fui substituir - tu confirmarás (2). Essa operação de destruição de Satecuta, a 1ª foi possivelmente no teu tempo... Também nós fizemos no Xitole uma operação aí, em que destruímaos um acampamento. Depois v voltamos lá noutra ocasião. Só que dessa vez, eles não nos deixaram entrar, fomos recebidos a ferro e fogo. Essa senti eu bem na pele, que grande fogachada! (Contarei mais tarde).

Eu não qero monopolizar o blogue com os meus escritos. Quero tudo a contento e assim todos escrevem e não se dá injeções pontuais. Como na guerra, hoje o ataque é na Aldeia Formosa, folgamos nós, os do Xitole... E era verdade, ou íam a um lado ou íam a outro...

Aim Luís tanta coisa que ainda há por contar... Essa operação de retirada de (e desastre em) Madina do Boé deu-se já no teu tempo e antes três ou seis meses de eu ir para lá (3)...


3. Um segundo comentário do Guimarães:

Sabes, Luís, apesar de ser tudo in memoriam, acho que deveremos usar o maior rigor na informação. Os documentos feitos na altura pela nossa tropa e pelos nossos chefes sempre foram empolados a nosso favor, o que era natural...

Ainda existem valentes que olham para a guerra que tivemos sem perceberem que ninguém nela ganhou. E e que nós sim - se não a acabássemos depressa, iríamos perder e era mau... pela força das armas. Refiro só à Guiné, era o que conheciamos e tu que andaste já no meu tempo sabias bem que o território já era quase na totalidade dos guerilheiros do PAIGC... Pois nós, mal saímos do arame farpado, íamos armados até aos dentes. E teria que ser assim... Eles no entanto até viviam muito próximo e mesmo dentro de nossos aquartelamentos...

Notam-s por vezes imprecisões em termos usados e armas que tínhamos e outras que eram deles, do IN da altura. Por exemplo, o morteiro ligeiro que eles usavam não era o 61 mm mas sim o 62.

Não nos interessa contar coisas por contar ou porque nos disseram. Como já te disse e continuo a pensar, vamos falar das nossas experiências, essas são as verdades de cada um e serão verdadeiras porque sentidas... Vamos dizer que muitas vezes tivemos "manga de cu pequenino" e não vamos dizer eu fiz, e fiz aquilo e fiz aqueloutro... Porque decerto nem será verdade tudo isso. E ter medo não é vergonha, converter o medo em valentia, isso sim (episódio de Veloso nos Lusíadas, não vamos ser como ele).

Conto-te uma história engraçada: quando eu fui de férias vim com o Furriel Vagomestre da minha companhia, o Marques... Bem, estávamos no café Bento - a famosa 5ª REP, que tu conhecias - , e a certa altura eu comecei a ouvir ele a dizer:
- Bem, quando nós fomos a Satecuta, fizemos e aconteceu e não sei que mais!- Enfim, informava lá uns camaradas que nem sequer eram nossos conhecidos... Um deles era o Branqnuinho, creio que estava em Fá Mandinga... Eu que também não tinha ido a Satecuta, estava já com cerveja na cabeça, virei-me para o Marques, diante daquele gente toda e disse:
- Foda-se, Marques, foste aonde? - E virei para os outros: Este caralho até é Vagomestre.

Efectivamente foi a cerveja que não me deixou estar calado, mas não me arrependi... Mentir não fazia jeito, muito mais armar em herói. Peripécias ao lado da guerra, como vês... Sei que, se estivesse sem cerveja, na cabeça era capaz de ficar calado. Creio que isso é o tal pecado e esse é de omissão.

Também não vamos dramatizar e morrer com os nossos camaradas mortos. Não, vamos recordá-los. E como recordar é viver, a minha intenção, romântica talvez, é ressuscitá-los para cada um de nós, porque eles fazem parte do nosso/teu Blogue.. E digo que fazem parte porque afinal toda a gente os esqueceu, nas nós não, e isso é importante...

Há que então ler os documentos atentamente... Um abraço, Luís, e obrigado pelas palavras sempre animadoras que me dás. Eu continuo, bêbado, a ler a nossa guerra. Digo nossa, sim, porque afinal nós éramos os representantes do poder, mesmo que voluntários à força...

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

(2) BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70)

(3) O desastre foi em Cheche, na travessia do Rio Corubal, ja depois da retirada de Madina do Boé. Foi em 6 de Fevereiro de 1969. Vd. post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé

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