01 outubro 2005

Guiné 63/74 - CCXXVIII: Estórias do Xitole: Tangali e o quico do furriel Fevereiro

...... 58, 59 ... 70, 71...89, 90... 98... 99... 100! Cem canhoadas em 10 minutos no ataque ao aquartelamento do Xitole.

© David Guimarães (2005)


Texto do David Guimarães (ex-Fur Mil Guimarães, CART 2716, Xitole, 1970/72):

1. Era costume nós irmos fazer protecção nocturna à tabancas. Era também uma forma de acção psico... Um dia lá fui eu e o Fevereiro a comandar uma secção do 3º grupo de combate. Tangali era o nome da tabanca, a última que estava à guarda do Xitole. Ficava na estrada Xitole-Saltinho (os da CCAÇ 12 muitas vezes passaram por ela).

Bem, saímos pelo fim da pista do Xitole, com dois Unimogs 411 e lá fomos. Era mesmo chato, ir dormir para a tabanca e logo para aquela:
- Pôça, eles até eram todos de lá! - pensei eu, pouco ou nada confiante na lealdade da população local para com as NT. Na realidade, os de Tangali jogavam para os dois lados, conforme as conveniências... Bem, lá fomos e ao fim de 7 Km lá estávamos nós.... Nisto, diz-me o Fevereiro:
- Porra, Guimarães, perdi o meu quico!
Entretanto, vejo e ouço toda aquela gente alarmada:
- Furriel, furriel, manga de ronco lá para o lado do Xitole!... Muito tiro, muito tiro.
- Transmissões, liga para o quartel, pergunta o que houve, ordeno eu.
- Furriel, ninguém atende, não consigo nada, porra para isto!
- Bem, nós estamos aqui, amanhã veremos o ronco, arrematei eu.

Nessa noite não dormimos tão descansados:
- Porra, ronco e tiros, sei lá, vamos mas é ficar atentos...
A noite nunca mais acabava... De manhã cedo, bem formados e atentos, lá fomos estrada fora, de regresso ao Xitole e entrámos pelo fundo da pista de aviação... Bem, buracos no chão não faltavam. Diz-me o Fevereiro:
- Guimarães, olha ali o meu quico!
- Boa, disse eu, tiveste sorte, ele apareceu. - Ele pega no quico e mesmo no local da nuca estava um furo:
- Já viste - exclama o Fevereiro para mim - se eu tinha a cabeça aqui dentro!...
Bem, lá chegámos ao aquartelamento:
- Tanto buraco!
- É, pá, os gajos apontaram para aqui e até parecia que disparavam em rajada os canhões sem recuo... Vinha daquele lado do Corubal...

Tarefa matutinal: ver os estragos e contar as canhoadas; sim, as marcas bem visíveis e os cotos das granadas bem enterradas no chão como se fossem setas de índios:
- Olha, esta entrou no depósito de géneros... vamos ver! - Depois de bem contados, parece que só se tinham partido 4 garrafões de vinho... Coitados dos garrafões, do mal o menos...
- ... 58, 59 ... 70, 71.... porra e mais aqui ... 89, 90... 98... 99.... e esta também ... 100!!!

O ataque tinha demorado... dez minutos!

- Porra, porra!!!, ainda dizia o Fevereiro, a olhar para o estado lastimoso em que ficou o seu quico.

2. Nessa altura tinha chegado ao Xitole um morteiro de calibre 107 mm. Para dar instrução sobre esse morteiro tinha vindo um primeiro sargento especialista de armas pesadas, ex-cabo e ex-comandante de um posto qualquer da GNR lá na Metrópole.

Experimentou-se o dez sete, assim chamávamos ao morteiro.... Poça, parecia uma arma de artilharia, boa não há dúvida, pelo menos muito barulho fazia....

De manhã, o 1º sargento costumava dar as aulas teóricas sobre o funcionamento da coisa e não é que, por ironia do destino, muitas noites e algumas seguidas éramos atacados sempre de canhão sem recuo.... A certa altura o homem do bar dizia:
- Fui eu, ao bater a porta do frigorifico... - É que que esse barulho punha-nos todos a caminho do abrigo... Tantas vezes ele repetiram aquelas flagelações e o dez sete a funcionar... Logo de manhã, as aulas práticas e, à tarde, a teóricas...

Até que se aproximou o dia da minha licença disciplinar de 30 dias... Sim, aquilo que chamávamos férias.... Bem, mas antes teria que se ir a Satecuta [uma das bases do PAIGC, junto ao Rio Corubal, a oeste do Xitole]... Aquilo parecia uma cidade, já tinha sido visto de avioneta....

Na primeira ida, ficou a companhia de formação e comando e fiquei eu. Não relatarei o que disseram, relatarei apenas o que vi do aquartelanmento... Enfim, sem querer ser herói, percebi quanto um jogardor de futebol sofre quando está na bancada... Era o caso: a certa altura naquele dia, uma avioneta lá londe começou a andar em círculo, por baixo os jagudis na mesma em círculo, ouviam-se tiros e mais tiros, rebentamentos e mais rebentamentos. Um inferno!
- Ai, como estarão eles, coitados, que coisa, dizia eu cá para mim.- A certa altura, inesperadamente a avioneta (uma DO) afasta-se e os tiros terminam. E os jagudis também desaparecem....

Por fim, todos sujos, cagados, os bravos voltam:
- Não, não deu para entrar....

Em cada operação em que havia tiros, que coisa, vínhamos todos enfarruscados....
- Bem, tudo muito bem, mas eles não deixaram, recebemos ordem de retirar pelo Comandante... Ninguém ficou ferido, ao menos isso... Enfim, desta vez ao menos as balas do inimigo nos acertaram.
- Ainda bem, disse eu cá para os meus botões - Agora, Guimarães, vais até à metrópole, num voo TAP e pela agência Costa... E que tal? De avioneta até Bissau, que luxo!!!

Ai, era o meu baptismo de voo. Porreiro, o meu cu já tinha calos do Unimog...
- Mas isto é mesmo bem bom... Adeus Xitole, adeus camaradas, adeus Fevereiro... Até daqui a um mês.

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