23 novembro 2005

Guiné 63/74 - CCCVI: Antologia (26): A geração do stresse pós-traumático de guerra

Post nº 306 (CCCVI)


© A. Marques Lopes (2005)



Dois jovens portugueses, "passando férias" em Banjara, algures na Zona Leste da Guiné, por volta de 1967 (enquanto os seus colegas americanos se batiam pela liberdade e morriam no Vietname, como tordos...).

Na altura estes tugas estavam alegremente a capinar o terreno e deitar abaixo árvores para montarem a tenda... Como se vê, naquela época ainda não havia qualquer sensibilidade ecológivca...

[ Banjara, destacamento da CART 1690, sediada em Geba, e de que o nosso A. Marques Lopes foi alferes miliciano atirador... Banjara ficava na estrada Bissau-Mansabá-Bafatá. Mais a norte, ou melhor, a nordeste, ficava Cantacunda, o sítio da Guiné onde o PAIGC, de um só vez, apanhou 11 militares portugueses, à mão, e matou outro...] (1)

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Por sugestão do nosso amigo e camarada Jorge Santos (ex-fuzileiro, autor da página sobre A Guerra Colonial e membro da nossa tertúlia), aqui fica um belíssimo, comovente e frontal testemunho de um oficial médico da Marinha - como presumo que seja o autor destas histórias da botica, escritas na Revista da Armada, sob o pseudónimo Doc - que um dia encontrou, na urgência de um hospital, um ex-combatente da Guiné, das tropas especiais, com visíveis problemas de stresse pós-traumático de guerra, e que o soube ouvir, apoiar e encaminhar, mesmo sendo ainda um jovem interno do internato complementar da sua especialdade (não diz qual...).

Curiosamente, reparo agora que nunca falámos aqui, nesta tertúlia, desse problema que se chama stresse pós-traumático de guerra (2). L.G.
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Histórias da botica (14): o combatente. Revista da Armada. 348, (Dezembro de 2001).
(Com a devida vénia e os nossos agradecimentos à esta excelente publicação da nossa Marinha e ao autor do texto. Subtítulos da minha responsabiliddae. L.G. ).


Há não muito tempo, numa Urgência de um grande hospital da capital alguém gritava:

- Olhe que eu já matei por Portugal!! – era um homem de meia idade, desgrenhado e de barba por fazer. Aproximei-me dos gritos. No caminho um enfermeiro saía irritado afirmando: mais um doido. É o terceiro hoje!

De perto o homem, apesar da agitação, tinha um ar digno. Era alto, com um ar sólido de quem é capaz de mover montanhas, a barba, já grisalha, assentava sob uma tez morena, de homem do campo. Olhava directamente nos olhos da sua interlocutora: uma médica, por quem eu não tinha muito apreço – no geral, conflituosa e pouco estimada por todos os outros naquela equipa de urgência. Era até conhecida, entre os mais novos, pela peçonhenta, uma vez que da sua pele emanava um brilho pouco natural, certamente graças aos muitos cremes de beleza, com que besuntava a face.

Tratava-se de uma discussão por papéis, em que a peçonhenta argumentava de maneira agressiva, afirmando que a “ficha” do paciente não existia. Este defendia-se dizendo que não sabia nada de “fichas”, esperava haviam já 3 horas e queria ser atendido. Então, com a humildade própria de um simples interno, avancei e disse, a tão ilustre clínica, que ia atender o senhor. Que se acalmasse, que outros doentes com “fichas” no devido lugar esperavam por ela.


Um ex-operacional das tropas especiais


Fui movido pela curiosidade, antevendo a história que tal homem produziria. Queria saber afinal quem ele matou e porquê? Conversámos, então, num corredor movimentado, onde todos passavam demasiado apressados para nos ouvir.

Queixava-se de insónias, há já uma semana que não conciliava o sono...

Tinha combatido nas tropas especiais da guerra de África, na Guiné. Já fora casado mas a mulher deixara-o. Os seus dois filhos viviam com a mulher, que lhes dizia que o pai não prestava. Desde o final da guerra, tinha tido vários empregos, mas não os conservara. Vivia de biscates e morava numa caravana, velha, num parque de campismo dos subúrbios.

- Mas agora não dorme exactamente porquê? – perguntei eu, tentando ser objectivo.

Não dormia porque era como se tudo fosse real. Ainda sentia os cheiros de África, a humidade no tarrafo, o capim na face, o camuflado colado ao corpo, o peso, frio, da metralhadora nas mãos... Mas o pior, o pior, era a sensação de medo...

A emboscada e o sangue do António, que ainda sentia nas mãos, o amigo que segurara nas mãos, até ao último estertor. Era véspera de Natal, tinham ido tomar banho a um riacho próximo, quando foram atacados...O António era o primeiro da fila – percebe, doutor – os turras apontaram a quem vinha à frente...

Tudo lhe voltava, num ciclo infindável de medo, agressividade e sofrimento...

Achava que não tinha tido do país, por quem arriscou a vida, qualquer reconhecimento. Afinal, quando voltou não lhe tinham reservado o trabalho, para o qual "era preciso ter o serviço militar cumprido", outro, um revolucionário exilado em Paris na época colonial, tinha ocupado o lugar...

Casou, mas divorciou-se, pouco tempo depois. Não conseguia explicar à mulher a ansiedade da espera, os gritos da refrega, nem o sangue do amigo morto, que lhe salpicara a cara. Se tinha pesadelos? Não, tinha poucos pesadelos, porque dormia pouco...Eram mesmo os dias que o enervavam...


Na Guiné, longe do Vietname...


Tudo isto, achava ele, não interessava a ninguém no país actual, E não compreendia nada...não compreendia um país em que as ruas se enchem de dejectos de cães e senhoras com nome de cão, como Lalá e Bibi, artificiais e secas, preenchem os serões de televisão. Não percebia, ainda, porquê pouco se falava do António, nem de todos os que partiram por servirem, a custo da própria vida, uma causa que lhes havia sido imposta...Não compreendia, finalmente, porquê, no nosso país se obliterava como se de um segundo se tratasse, uma guerra que marcou gerações...Pelo menos no Vietname há filmes, as pessoas revêm o seu sofrimento, parece haver reconhecimento – dizia com dor no olhar.

Lembrei-me, recentemente, deste Combatente. Nestas férias de Verão vi que na parada de um antigo quartel, onde existe uma placa com os nomes dos mortos em acção, nos vários conflitos em que o regimento participara, tinham construído um lago de aspecto nada condizente com o lugar, nem com o respeito merecido por aqueles que já partiram e cuja memória dignifica o lugar.

Pareceu-me um sacrilégio. Seria como construir um lago de patos sobre os monges sepultados, num qualquer átrio de igreja...Pareceu-me ainda pior, porque esse quartel, agora transformado em parque turístico, é gerido por militares...

Na verdade, acredito, que poucos países revelaram, pelo menos na época actual, tanto desrespeito pelos seus veteranos de guerra. E estou certo, que o Combatente tem razão. No nosso país, nem mesmo aos políticos – a grande maioria [tem]apresentado, de forma implícita ou explícita, pouca simpatia pelos militares - interessam os sofrimentos de um grupo de homens tristes, marcados pelo dor e pela desgraça.

Eu nunca combati. Nunca estive na Guiné. Não posso compreender, na sua totalidade, o sofrimento deste homem, nem de outros como ele...Impressionou-me a história de um homem destroçado, ainda a combater pela vida, tantos anos após o fim da guerra. Pareceu-me um preço patriótico demasiado elevado, num país em que cada vez mais os valores da nação se vergam ao dinheiro, ao voto fácil, à falsidade e à negociata barata.

Sei, que quando penso no Combatente, e na história da sua vida, tenho pena, muita pena de toda uma geração apanhada numa guerra – agora considerada politicamente incorrecta – que os continua a fazer sofrer com tanta intensidade. Tenho pena, também, de pertencer a um país que não distingue entre o poder e os homens simples, quase sempre joguetes inocentes...

E talvez eu seja indigno sequer de falar deste assunto, já que para mim "os turras" e a guerra de África, são apenas vozes e notícias, dispersas, de infância. Fica aqui, pelo menos aqui, este pequeno contributo para que tal injustiça seja reconhecida.

O Combatente, sei de fonte segura, frequenta há pouco tempo uma consulta de psicopterapia, com outros da sua geração que também perderam a juventude na guerra. Nunca recuperará a família, o emprego, mas talvez recupere o respeito dos filhos – um objectivo meritório.

Tem que deixar morrer os sons da batalha dentro de si e aceitar que há outro dia. Tem que perdoar. Só assim poderá fechar, acredito sinceramente, o abismo profundo que lhe dilacera a vida.

Fala-se agora mais nestes assuntos, do que na época em que ouvi o Combatente, no silêncio daquele corredor barulhento... Também houve um filme ou outro, sobre esta forma tão dolorosa de sofrer...Talvez as coisas melhorem finalmente.

Eu desejo, do fundo da alma - para ele e para todos como ele - que atinjam a benção do esquecimento e tenham a força para criar um novo princípio...Do pouco que tenho, ofereço aquilo que mais me custou a conquistar e mais prezo na vida: ofereço-lhes o meu respeito...

Bem hajam pelo sacrifício!!

Doc

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de A. Marques Lopes, de 18 de Maio de 2005 > de Guiné 63/74 - XXI: "O ataque e assalto do IN ao destacamento de Cantacunda (1968)

(2) O stresse, como figura, jurídica é recente na legislação portuguesa: a primeira referência conhecida é a que consta na Lei nº 46/99, de 16 de Junho de 1999, respeitante ao “apoio às vítimas de stresse pós-traumático de guerra”.

O conceito de “deficiente das Forças Armadas” passava, então, a ser alargado ao cidadão português, militar ou ex-militar, que fosse “portador de perturbação psicológica crónica resultante da exposição a factores traumáticos de stresse durante a vida militar”, quer no teatro de guerra, quer no desempenho de missões humanitárias e de paz ou de acções de cooperação técnico-militar no estrangeiro.

Ao Estado competia criar uma "rede nacional de apoio" às vítimas de stresse pós-traumático de guerra, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde e do Sistema de Saúde Militar, em articulação com as organizações não governamentais (ONG).

A essa rede incumbe "a informação, identificação e encaminhamento dos casos e a necessária prestação de serviços de apoio médico, psicológico e social". Essa rede foi entretanto criada, pelo D.L. nº 50/2000, de 7 de Abril. Por sua vez, a Portaria nº 647/2001, de 28 de Junho, veio estabelecer os termos do respectivo financiamento.

Luís Graça

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