21 março 2006

Guiné 63/74 - DCXLVII: Estórias do Zé Teixeira (4): o lugar do morto

Luís: Saúde, paz e felicidade.

Já pensavas em te veres livre de mim, mas estás enganado, eh ! eh! eh!

Aí vão mais duas estórias para a malta digerir: (i) Às vezes é preciso ter sorte; (ii)abelhas, inimigas de guerra.

Um abraço
Zé Teixeira


Às vezes é preciso ter sorte.


A coluna arrancou de Buba, de madrugada.

Dois pelotões tinham partido antes, a bater a zona por onde o IN costumava aparecer.
Dois pelotões seguiam pela mata, um de cada lado, à frente da coluna para refrear os ânimos dos nossos amigos.

Eu ia com o pelotão dos picadores à frente da coluna. Por segurança, seguia atrás da primeira viatura, no trilho do seu rodado, pois o seguro morreu de velho e eu não queria morrer tão novo.

Dá-se uma avaria numa viatura da rectaguarda e a coluna retém a sua marcha. Os picadores seguiram em frente e este vosso amigo sentou-se no sítio do rodado da viatura.

Dada ordem de recomeço de marcha, os picadores já iam a quilómetros. Estando o caminho livre, as viaturas aceleraram a marcha. A primeira viatura (o arrebenta-minas) ia carregada de bebidas e sacos de areia à frente e … africanos em cima. Até os assentos eram sacos de areia, o que concerteza não é novidade para os camaradas bloguistas.

Para não desatar a correr como fizeram os camaradas da segurança à coluna, sentei-me no lugar do morto, na dita rebenta-minas, mas de repente tive um rebate de consciência:
- Então tu que, servindo-te da tua categoria de enfermeiro, nunca deixas ir um colega na primeira viatura e agora colocas-te lá tu, todo refastelado! - E saltei, pondo-me à frente da viatura em marcha de corrida, para não ser atropelado.

Passados uns segundos apenas, dá-se um grande estrondo e sou projectado para o chão. Sinto algo a cair-me nas costas e pensei:
- Já estou ! É desta que vou de vez ! - Espero reacções de dor e nada. Passo a mão pelas costas e trago lama e terra.
- Alto lá, parece que escapei !

Então começam a chover pretos à minha frente. Três dos que vinha em cima da viatura. Os outros, e eram vários, também foram ao ar, mas estavam bem. Felizmente só um se feriu com alguma gravidade e um outro apareceu com um olho ao dependuro (2).

A mina rebentou do lado de onde eu tinha saltado uns momentos antes e o condutor foi ao ar e regressou ao lugar de onde saiu pela impulsão, sem qualquer ferimento.

Fiquei apavorado, sem saber o que fazer. Tinha feridos para tratar, tremia por todos os lados e a bolsa de enfermeiro tinha ficado na viatura. As minas podiam estar lá e estavam mesmo. Lá fui à viatura buscar a bolsa e entretanto apareceu outro enfermeiro.

Lavei muito bem a zona ocular do gajo, que estava cheia de lama, coloquei-lhe o olho no sítio e mandei-o para Buba para ser evacuado.

Tudo resolvido, o capitão dá ordem de marcha e . . . pum ! uma anti-pessoal rebenta debaixo de um pneu de um atrelado, também este carregado de bebidas. Tinha sido colocada na berma, fora da linha de actuação dos picadores. O atrelado ao desviar-se do buraco feito pela anti-carro foi descobri-la a cerca um metro do sítio para onde eu tinha sido projectado e naturalmente pisada por muita gente, ao atender os feridos e naquela azáfama de sacar bebidas (2).
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Notas do autor

(1) Encontrei-o depois em Bissau e pude constatar que ficou bem. O nervo óptico não tinha sido afectado.

(2) Logo após o primeiro acidente foi um fartar vilanagem : toda a gente saltou para a viatura e começou a sacar bebidas. Tudo desapareceu rapidamente.

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