21 março 2006

Guiné 63/74 - DCXLV: Estilo de comando e espírito de casta (João Tunes)

Comentário do João Tunes ao comentário do Luis Graça:

Tens razão, Luís, toda a razão. Nem sempre evitamos o risco das generalizações ou assim sermos entendidos. Confirmo aquilo que contas – houve muitas vezes, se calhar a mais das vezes, uma disponibilidade de correr riscos, todos, para ajudar outros camaradas de outras unidades em apuros. Até porque NT era NT e IN era IN. E deste um exemplo através de uma narrativa do Humberto Reis (1).

Mas havia o contrário, também. Não porque tenha havido um qualquer acaso a conglomerar almas egoístas. Apenas pelas circunstâncias e, sobretudo, pelo estilo de comando. E, como se sabe, na vida militar e sobretudo em guerra, para mais em situações de isolamento, o estilo de comando é a pedra de toque para os padrões de comportamentos e até da modelagem dos sentimentos.

Pela minha parte, vi de tudo na guerra. Preto, branco, cinzento. E o que mais vi foi cinzento. Sobretudo cinzentos e numa miríade de tonalidades. Como na sociedade. Como dentro de nós, que nunca somos todos bons nem todos maus, puxando a mor das vezes assim a fugir para um tom de cinzento. No fundo, o que mais rareia são os santos e os malvados.

O particularismo do gregarismo grupal-militar e a sua predominância em situações de absoluto isolamento, nas circunstâncias em que estivemos, era inevitável. E como a dureza da situação tinha sempre os seus gradientes, natural que, com o tempo, se acentuassem os fenómenos de hiper-identificação com os seus e o afastamento, que podia ir da frieza até ao escárnio, com os outros (e as praxes dos velhinhos para com os periquitos foi talvez o rosto mais benigno das fracturas de casta).

Com o tempo, os operacionais criavam o seu espírito de casta relativamente aos do apoio, os do mato contra os do ar condicionado em Bissau, cada companhia ou destacamento largava raízes no chão onde éramos atirados à terra.

Eu senti isso porque vivi isso. Na chegada à Guiné havia um predomínio do chamado espírito de batalhão, a guerra estava para vir e as diferenças estavam menorizadas, sentíamos que íamos todos ao mesmo e passar pelo mesmo; depois quando o batalhão avançou para a sua quadrícula, espalhando as companhias, cada uma com a sua própria realidade local, foram-se construindo, sem quase se dar por isso, identificações e diferenças; com o passar do tempo, as sinalizações de rivalidades foram-se acentuando - os da CCS eram os lordes vistos pelos que não lhe pertenciam, cada especialidade ia-se cristalizando na sua especificidade (os da saúde, os rodinhas, os das transmissões, sobretudo os cripto, um subgrupo, os operacionais, os artilheiros, por aí fora). E também se iam construindo os castelos na implantação no terreno – os do Pelundo estavam no bem-bom; os de Jolmete sentiam-se os mais sacrificados (por mais isolados); os de Có, idem idem, aspas aspas.

E são identidades que ficam para o resto da vida, pois ainda se assiste aos ecos disso nos convívios de hoje entre ex-combatentes, passados que são trinta anos e picos.

Mas, se foi como penso, o fundamental, mais determinante, entre tudo, estava no estilo de comando. E se havia uma filosofia de comando global, com pautas de comportamento, vi de tudo, entre o óptimo e o miserável. Vi oficiais e sargentos/furriéis que puxavam pelo melhor dos seus homens, desenvolvendo-lhes comportamentos saudáveis e abrangentes. E vi o oposto disto. Confirmando, num caso ou noutro, que a tropa tendia a identificar-se com o estilo do comando. Para mais, na nossa altura, havia um medonho gap cultural-social que segmentava a sociedade portuguesa. E muita da maturação e socialização dos soldados (sobretudo o grosso, os de origem camponesa) era feita em contacto, e sob batuta, dos exemplos recebidos dos oficiais e furriéis mais próximos, os seus.

Abraço. Como costume, para ti e restantes tertulianos.

João Tunes (2)

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Notas de L.G.

(1) Vd post de 17 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXVIII: O espírito de união dos operacionais: uma coluna de socorro à malta da CCAÇ 12

(2) Sempre lúcido e oportuno este nosso camarada !...Que pena não o ter apanhado lá para os meus lados, na zona leste!... Apesar de vizinhos (ele mora na outra banda do Rio Tejo e eu estou no lado de cá), e com duas tentativas para marcar um encontro, ainda não nos conhecemos... Ou melhor: já falámos duas vezes ou três ao telefone...

De facto, João, é(era) a liderança que faz(ia) a diferença... Os franceses têm a palavra commandement... Nós tínhamos a expressão estilo de comando... Os anglo-saxónicos falam em leadership, que não é uma atributo (como chefia) mas uma relação... Líder (do inglês antigo laeder), é aquele que vai à frente, mostrando o caminho.... Líder é aquele que se assume como tal e que é reconhecido pelo grupo como tal. Chefia (do latim, caput, que deu o francês antigo, chief, chef, cabeça)é um atributo, um cargo, uma função: etimologicamente falando, chefe é aquele cuja cabeça sobressai da multidão... Daí ter um penacho, uma coroa, um trono (muitas vezes para compensar a falta de atributos físicos, como a altura...) ou, mais prosaicamente, galões, divisas ou outros símbolos da autoridade (que é outro conceito diferente de poder, sociologicamente falando)...

Creio que só no exército de Israel os comandantes operacionais (de grupos de combate) são escolhidos, não em função de atributos sócio-económicos (como a escolaridade) mas por qualidades pessoais como liderança e por provas dadas, no terreno... Em Israel um professor universitário pode ser um simples soldado e um operário da construção civil ser um tenente... Na Guiné era raro encontrar-se militares de carreira com formação, treino e qualidades de liderança: homens como o Salgueiro Maio, já referido e citado vários vezes por camaradas nossos que estiveram no Olossato (Paulo Salgado) ou em Guidage (Albano Costa)...Milicianos conheci alguns, poucos, com capacidade de liderança...

No terreno, nunca vi nenhum oficial superior, a caminhar ao meu lado e dos meus soldados (já não digo à minha frente...). Uma única excepção: o tenente-coronel Polidoro Monteiro, um spinolista, que um belo dia me acompanhou num passeio para os lados do temível Poindon...

Todos os oficiais superiores dos batalhões a que esteve afecta a CCAÇ 12 durante o meu tempo - BCAÇ 2852 (1968/1970) e BART 2917 (1970/1972) - comandavam (!) as nossas operações através do famoso PCV (posto de comando a partir de um avioneta tipo Dornier-27)...

O estilo de comando dos oficiais militares do Estado Novo era de opereta: as excepções confirmavam a regra!... Não falo do Spínola, uma vez que nunca estive com ele em actividades operacionais... Foi-me apenas cumprimentar uma vez, já no final da minha comissão, à Ponte do Rio Undunduma! (1)...

Dos africanos que estavam connosco (da tropa-macaca aos comandos) é difícil falar: eles estavam ao serviço do exército colonial... Sempre foram auxiliares ou subalternos dos tugas, desde Teixeira Pinto... Os meus soldados eram de 2ª classe (só por que não tinham a escolaridade obrigatória!). A liderança entre eles também passava pelo estatuto social, pela linhagem... Mas havia homens com qualidades pessoais: determinação, capacidade de influenciar o comportamento do grupo, coragem física...

Quanto ao PAIGC, gostava de saber mais... Por exemplo, como é que um homem como Nino chegou aonde chegou... Há muitos mitos à volta da sua actuação como comandante... Mitos alimentados por nós mas também pelos seus homens... Eis um excelente tema para uma próxima discussão... Alguém o conheceu na frente de combate ? O PAIGC teria sido diferente com Amílcar Cabral vivo ? Mas Cabral não foi um operacional, um verdadeiro guerrilheiro como o Nino...

Como se faz um bom líder (incluindo na frente de batalha), ninguém sabe, não há receitas. A liderança continua a ser, em grande parte, um conceito de tipo caixa preta... Em todo o caso, o homem que mais sabe destes coisas em Portugal (e que, de resto, foi pioneiro na introdução do tema da liderança na formação dos oficiais portugueses durante a guerra colonial) é o meu amigo Jorge Correia Jesuíno, comandante da Marinha e professor universitário (Confessou-me há dias que nunca esteve na Guiné, e do nosso antigo império só terá conhecido, de passagem, Cabo Verde).

Enfim, eu falo destas coisas, com reserva e humildade: nunca passei de um simples comandante de secção (suplente, saltitão, sem secção certa, pião de nhicas...) e, além disso, era um combatente passivo, de arma calada, mais presa do que predador... No exército de Israel, não passaria de um soldado raso, se é que me aceitariam nas fileiras deles...

(3) Vd. post de 3 de Janeiro de 2005 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma

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