11 maio 2006

Guiné 63/74 - DCCXLIII: Aos nossos queridos nharros (Zé Teixeira)

Guiné > Zona Leste >Sector L1 > Estrada Xime-Bambadinca > 1970 > Coluna auto da CCAÇ 12 nas proximidades da tabanca fula, em autodefesa, de Amedalai.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


1. Em pleno chão fula, foram os balantas, os beafadas e os mandingas que aderiram mais facilmente (ou foram condenados a aderir) à guerrilha. Os fulas, pelo contrário, reforçaram a sua velha aliança secular com os tugas. Fulas e balantas cultivavam um ódio de estimação. Eu, pessoalmente, nunca consegui falar, olhos nos olhos, a um balanta de Nhabijões (1)...

Os demónios étnicos e velhas contas por liquidar vieram, infelizmente, ao de cima, a seguir à nossa saída da Guiné. Bambadinca, tal como no início da guerra, em 1963, foi depois da independência palco de crimes contra a humanidade, nomeadamanente de execuções sumárias de dirigentes fulas, de ex-comandos e outros ex-militares que estiveram integrados nas NT. Ou seja, desta vez, de sinal contrário. A extensão destes crimes está por investigar.

Provavelmente nunca chegaremos a conhecer toda a verdade dos crimes praticados nas décadas de 1960 e 1970 na Guiné, por nós e pelo PAIGC, em nosso nome e em nome do PAIGC. Os fuzilamentos do Cumeré, de Bambadinca e de outros sítios, praticados por ou em nome dos guerrilheiros no poder, não podem todavia fazer esquecer, ignorar ou branquear a repressão exercida pelas autoridades coloniais no início da guerra: Samba Silate e Poidon, por exemplo, não honram a memória dos tugas. Foram lugares de massacres no início da guerra (1).

Eu não estava lá, mas os meus meus nharros, os mais velhos, os homens grandes, contavam-me estórias desse tempo, do terror branco de Bambadinca. Terror branco ou crioulo, já que a administração colonial da Guiné era basicamente preenchida por funcionários oriundos de Cabo Verde, ou de origem caboverdiana... Na Missão do Sono de Bambadincazinha, a G-3 a tiracolo, enquanto fazíamos horas para o sol esplendoroso de África aparecer e fazer espantar os nossos medos e os nossos fantasmas nocturnos. E com aquela espécie de inocência de criança com que os fulas falavam destas coisas trágicas e macabras da guerra e da morte aos senhores da Guiné, que eram os tugas...

Tive as relações mais afáveis, afectuosas e cordiais que me foi possível manter com os fulas, com os meus queridos nharros, mas eu sabia que as relações entre iguais, logo as relações de amizade, eram impossíveis entre nós: eu, fardado, representava uma potência estrangeira, colonial; eles, fardados, soldados de 2ª classe, pertenciam a um tempo e a mundo que já não existia... Os fulas estavam condenados pela história: infelizmente, eles não tinham alternativa... Corrompidos pelo poder colonial, cinduzidos pelos seus altos dignatários a um beco sem saída, os fulas acabaram por escolher o lado errado da barricada. Nem mesmo neutrais eles poderiam ter sido...

Enfim, especulo: que sei eu, ao fim e ao cabo, das complexas relações das principais etnias da Guiné, entre si, e com o poder colonial, durante os anos de guerra ?!... No entanto, subscrevo, de coração aberto, o belíssimo e texto que o Zé Teixeira me enviou e que passo a inserir no blogue... O Zé foi talvez dos poucos que, graças ao seu papel de enfermeiro (e também por mérito pessoal e pelas suas qualidades humanas), consegui saltar a barreira da espécie: ele, tuga, foi aceite e amado pela população fula, e ainda hoje tem verdadeiros amigos fulas...

Devo acrescentar que o termo nharro, que nós usávamos no nosso calão militar da Guiné, e nomeadamente na zona leste, não tinha propriamente uma conotação racista... Não era sinónimo de preto ou de barrote queimado... Enfim, tudo dependia da entoação... Não sei qual é a origem do termo, provavelmente é crioulo da Guiné. Ele ainda não consta do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, mas continua a fazer parte da língua portuguesa viva... Já o vi traduzido por gandarro, massaro, pessoa ignorante, sem conhecimentos, num sítio brasileiro ... Continua a fazer parte do calão dos nossos jovens urbanos e suburbanos... Já vi inclusive a utilização do termo como adjectivo: um tuga nharro (ou português ignorante)... (LG)


2. Texto do José Teixeira

Luís: Saúde, paz e felicidade.

Após algum silêncio... É bom dar espaço a outros, ler e apreciar e reviver a Guiné de outrora nos seus testemunhos e as suas histórias.

Volto de novo para entrar na onda que passa sobre os antigos combatentes nativos, que recordo com saudade, que admiro e e a quem presto a minha homenagem.

Recordo os que tive o prazer de rever, abraçar e com, eles recordar bons momentos (hoje, são todos bons, esses momentos), porque guera na passa manga di tempu e ainda estamos vivos, com há um ano [em 2005] me dizia um turra, embora muitos deles e de nós, tenham no corpo o ferrete desse tempo e que teima em não desaparecer Se vires que tem interesse para entrar no Blogue.. .
Um abraço fraterno,
Zé Teixeira
___________


Aos nossos queridos nharros... Tropa africana que connosco deram o seu sangue suor e lágrimas, por Portugal, com toda a carga emotiva, de carinho e afecto que a palavra nharro possa conter.

O programa aparecido na TV (2) teve pelo menos o condão de nos pôr a reflectir, a nós que durante cerca de dois anos convivemos diariamente com a tropa africana, fiel a Portugal e não ao regime, como alguns tentam deixar passar.

O conceito de mãe-pátria, Metrópole, Lisboa, estava arreigada naquela gente, não pelos políticos, mas pelos portugueses brancos que por lá foram passando, muitos dos quais para cumprir penas de índole criminal e quantas vezes por estarem em desacordo com os políticos e as políticas exercidas em Portugal.

Era um conceito forte, de esperança e de orgulho. Foi com eles que eu aprendi quanto se deve respeitar a bandeira do meu País. Com que orgulho eles a saudavam (e toda a população) no hastear e arrear diário. Gesto que ainda hoje se repete. Há um ano em Bissau pude testemunhar o toque de hastear no quartel da Amura e a reacção de toda a população na rua exterior, até onde era possível ouvir o toque.

Era este conceito de filhos de Portugal, aliado naturalmente à propaganda da época e aos benefícios financeiros que os faziam alinhar ao nosso lado com a sua experiência e conhecimento de logística local, dos carreiros das tabancas inimigas, dos perigos desconhecidos para um europeu ingénuo, para quem tudo era estranho, desde o clima ao modo de estar em sociedade, à floresta com os seus segredos e perigos, às técnicas de guerrilha usadas pelo adversário.

Pergunto:

- Quem de nós, periquitos, não sentiu ao chegar, uma mão amiga, um sorriso e um alerta para um eventual perigo ?

- Quem nos orientava na Tabanca, na busca de uma lavandera bonita e jeitosa ?

- Quem nos avisava dos perigos da floresta, abelhas, formigas, cobras ? (Aos bloguistas que se deram ao trabalho de lerem o meu diário (3), recordo a cena do ataque de abelhas e a forma como um milícia cujo rosto não fixei que me agarrou por um braço, me escondeu atrás de uma árvore e me aconselhou a ficar rigidamente quieto até elas, as abelhas, se irem embora. Foi assim que aprendi a não ter medo de abelhas e tanto jeito me fez no segundo ataque que sofri mais tarde.)

- Quem nos indicava à chegada o melhor sítio para tomar banho, no rio para tomar banho sem correr perigo ?

- Quem nos arranjava os frangos e os cabritos para as tainas, para esquecer as mágoas ?

- Quem se prontificava a ajudar o colega do morteiro, o enfermeiro ( Bons amigos que tive e recordo com saudade), no transporte do equipamento, etc ?

- Quem ainda hoje apesar de tão desprezados pela mãe-pátria, como costumavam dizer, nos recebem com um carinho e afecto, que só quem lá foi consegue entender e apreciar ? (Vi e senti lágrimas, recebi abraços longos e quentes, passados 35 anos de separação).

- Quem servia o meu País e desprezava o seu país, deixando mulheres e filhos da outra banda (Kebá de Empada, meu querido amigo, recordo as conversas que tive contigo, sobre as tuas duas mulheres e os teus filhos que optaram pelo outro lado, quanto tu sofrias quando eras atacado! Porque te recusavas a ir comigo para o mato!).

- Quem, debaixo de fogo, avançava de peito aberto para o Inimigo (eu
testemunhei), protegendo-nos (quantos de nós tão acagaçados, que não cabia um feijão no buraquinho) convencidos que era esse o caminho certo para o seu País ?

- Quem vergonhosamente os abandonou, deixando que tantos fossem assassinados pelos seus conterrâneos, só porque estavam do lado errado, quando politicamente correcto Portugal admitiu que não tinha saída, a não ser dar a oportunidade a um povo de construir e seguir o seu próprio destino ?

- Quem a partir desse momento os deixou órfãos de Pátria, obrigando-os a irem procurar a sua pátria que até então lhe garantiam não existir, sem qualquer preocupação de lhe dar o prémio merecido por tudo quanto fizeram em nome e para Portugal ?

- Quem lhe traiu todas as promessas de uma Guiné melhor, com Portugal ?

Sinto vergonha. Estão-me na memória, os Sambá, os Adbulai, os Ussumane, os Amadu, os Aliu, os Braima, os Mamadu, tantos outros, que conheci e com quem convivi sadiamente, que me acompanharam em tantos encontros com o adversário e que merecem ser considerados filhos de Portugal, pelo que fizeram, pelo que sentiam e ainda sentem, pela alegria que expressam quando nos vem chegar.

Quantos deles assassinados por incúria de Portugal, quantos andaram anos fugidos no mato, deixando a família nas mãos dos adversários, quantos ainda não reconstruíram as suas vidas, quantos sofrem o stress de guerra, quantos morreram à fome, quantos passam fome, por falta de trabalho. Não sabiam fazer mais nada a não ser guerra.

Telefonou-me há dias o Quintino Procel, de Empada. Esse conseguiu fazer no meu tempo a 4ª classe e seguiu a carreira de enfermeiro, sendo hoje o enfermeiro-chefe em Canjadude. Quando em 2005 passei por Empada, procurei-o.

Alguém o informou da minha presença e o seu telefonema chegou um ano depois:
- Tissera, tu vai na Guiné e não fala comigo ? Eu na tem casa em Canjadude. Bó na vem e firma lá. Eu fico triste, manga dele, por não ver Tissera. - Foram estas palavras que guardei no coração passados 35 anos.

Creio que ainda há algum tempo para Portugal olhar para esta gente. Não pode desperdiçar esta oportunidade.

Creio que nós, antigos combatentes, ainda podemos fazer algo por eles. No mínimo ir visitá-los(os que puderem), testemunhar-lhes a nossa amizade, tanto quanto eles nos deram a deles. Permitir que sintam e vivam essa alegria de não sentirem que foram esquecidos, por aqueles que, como eles, deram sangue, suor e lágrimas, por uma Pátria que, não sendo actualmente a deles, se deve sentir orgulhosa de os ter tido como filhos, embora de 2ª...

Zé Teixeira
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos

(...) "Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado.

"A justificação era simples, segundo os meus nharros: "um balanta a menos, era um turra era menos" (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência…

"Donde esta hostilidade passiva que julgo poder ler nos olhos e nas atitudes da população de Nhabijões que alimenta a guerrilha, em homens e mantimentos, provavelmente mais por razões de parentesco do que por simpatia para com o PAIGC: ao avistarem-me, fardado, na sua tabanca – a mim, tuga, representante da tropa ocupante - os mais velhos baixam a cabeça ou viram-me as costas como se sentissem acabrunhados com a minha presença… Quem se sente mal, sou eu, que venho invadir-lhes a sua privacidade e perturbar os seus irãs…

"Devia ser esta, aliás, a atitude com que caminhavam para a morte: sem medo mas também sem revolta, com uma estranha dignidade ancestral, a pá e a pica em cada uma das mãos. Sim, por que o método era tão requintado como o dos nazis, a crer na descrição que me fazem alguns dos meus informadores, os mais velhos, como o Abibo, por exemplo – o Abibo, o bom gigante do Abibo, que sofre de epilepsia e tem elefantíase no escroto…

"Ou até senão mais: a própria vítima abria a estreita vala onde devia caber o seu próprio corpo, três palmos abaixo da superfície, e onde ficava deitado… à espera que o carrasco da polícia administrativa (sempre os africanos para as tarefas sujas…) se dignasse dar-lhe o passaporte para a eternidade: um tiro de pistola, uma lata de gasolina, um fósforo…

"Ter-se-á passado assim ? Um frémito de horror passa-me pela espinha acima. Recuso-me a aceitar que isto se tenha passado debaixo da bandeira verde-rubra da minha pátria, com a cumplicidade ou até o envolvimento (activo ou passivo) das tropas portuguesas ou dos representantes das autoridades portuguesas… Faço, ao menos, votos para que estes crimes sejam apenas imputados à odiosa PIDE… Enfim, nunca o saberei… Ou melhor, poderei perguntar-lhes onde era o sítio... O Adibo e outros falam-me do antigo cemitério de Bambadinca, um sinistro local de outrora onde hoje as alfaces crescem, viçosas" (...)…


(2) Vd. post de 6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)

(3) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

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