Guiné > Pelundo > Dezembro de 1969 > João Tunes (no jipe, do lado esquerdo), na altura Alferes Miliciano de Transmissões da CCS do BCAÇ 2884... e baby sitter, em pleno chão manjaco (1).
© João Tunes (2005)
Caro Camarada Luís,
[A brincar é que a gente se entende. Ou disfarça. Porra, se um gajo leva tudo a sério, fica tão velho que perde a noção que já envelheceu e arma-se em "ginja".] Fiquei petrificado, termo suave, ao ler hoje no blogue a notícia trans-étnica de que resolveste adoptar o Nino Vieira como manjaco.
Li e dei dois murros na parede, uma cabeçada no armário e atirei-me para o chão (porque, entretanto, o meu filho mais novo foi buscar leite ao frigorífico e ao fechar a porta do electrodoméstico me pareceu que o gajo - o morteiro - estava a sair da boca do tubo e vinha a caminho). E diga-se em teu abono, que desta última tu não tens culpa, mas sim o tal Nino que me deixou ressonâncias de sons inconvenientes na cabeça lá do nosso convívio em Catió, Cacine, Gadamael e Guileje.
Desculpado estando tu quando à cena do frigorífico, não escapas ao ónus dos murros na parede e da cabeçada no armário. Sabes, julgo que sabes, o especial carinho de memória que tenho pelos manjacos e que, no meu curto conhecimento, era uma etnia com uma das culturas mais ricas e polifacetadas entre as várias (não conheci todas) com que convivi (forma de expressão) na Guiné. Devo isso, em particular, a um mestre muito querido que tive em Teixeira Pinto, o major Pereira da Silva, "doutorado", por força das funções, em cultura manjaca (como sabes, foi um dos três majores, jntamente com um alferes miliciano, depois massacrados em 1970 em Jolmete-Pelundo). Passei horas no quartel de Teixeira Pinto a ouvir o meu querido e saudoso amigo Pereira da Silva, ele fascinava-se com a narração riquíssima dos usos e costumes manjacos e eu, ficava feito papalvo, a ouvi-lo e a admirá-lo, a ele e aos manjacos.
Para europeus, como nós, era fascinante como eles desenvolveram e consolidaram códigos de ética próprios e os metiam em forma de "lei", não pela imposição bruta, mas pela sua sueprioridade de etnia refinada e sofisticada. Muito do que aprendi com o major Pereira da Silva sobre os manjacos foi-se nas brumas da memória (não tomava apontamentos, só me restavam os olhos e os ouvidos que as garrafas entornadas da "chicória americana com alcool" iam deixando em lucidez entaramelada). Mas aquele homem, lembro-me dos seus bigodes de sábio e a sua bóina mal metida no seu cocuruto de oficial intelectual, era não só um poço de cultura como um óasis de saber, aprender e ensinar naquela guerra de merda.
Eu ouvia o major Pereira da Silva em Teixeira Pinto e julgava-me na Sorbonne, em Nanterre ou em Oxford, perante um Mestre e a esquecer que estava no cú de judas, fodido dos cornos porque estava numa guerra estúpida e deslocada no tempo e na razão, capaz de abusar ("comer", dizia-se e diz-se na linguagem canibal do sexo) uma bajuda que se pusesse a jeito ou batendo punhetas a pensar numa branca lá longe (fosse ela a prima mais feia, mesmo com bigode, que nos tivesse calhado na rifa da família), disposto a espetar uma rajada de G3 num qualquer cabrão de um preto que me assustasse, metendo o capelão do meu batalhão a soprar, perdido de bêbado, em preservativos transformados em balões que se dão aos meninos quando fazem anos, dando-nos o gozo da blasfémia (não nossa, mas do pobre capelão).
Pois, o meu saudoso major Pereira da Silva deu-me aulas infindáveis sobre a cultura manjaca. Já disse que a maioria do que me ensinou, eu esqueci, porque quando penso nele o que vem à ideia é imaginá-lo fodido a rajadas de kalash e acabado retalhado à catanada, como se fosse um cão, a que não assisti, quando aconteceu já eu estava em Catió, mas sei-o contado por quem lhe viu os restos feitos em merda de matadouro.
Mas lembro-me de uma particularidade que me ficou na memória. Que, os manjacos, quando havia uma infidelidade conjugal da parte feminina (e, para haver esta regra, é porque elas não deviam ser poucas, honra pois à mulher manjaca!), a mulher adúltera não era imediatamente rejeitada mas antes submetida à prova de um ritual - todos os adultos da tabanca iam para um cruzamento de caminhos, e aí, perante todos, o marido decidia publicamente se perdoava o adultério ou não. Em conformidade, se o encornado perdoava, o casal reconstituía-se e não havia lugar á mais pequena futura crítica dos patrícios. Se o encornado não aceitava a reconciliação, ou a adúltera persistia na diferença de escolha, cada um ia às suas. Ou seja, não havia nem fofocas nem dichotes, a decisão, desde que pública e asumida perante toda a tribo, isentava cada um de responsabilidades privadas e anteriores.
O que os manjacos não perdoavam era o acto clandestino da traição. Claro que isto só se entendia, não só á luz de um código ético altamente elaborado, como também (julgo) uma transição recente de um período de domínio matriarcal que permitia às mulheres manjacas um estatuto que era invulgar entre as mulheres africanas.
Pois era muito amigo do major Pereira da Silva, mais ainda do major Passos Ramos (sempre o imaginei à frente do MFA; no 25 A e depois, eu via aquela gajada - sem ofensa - na Junta e na Coordenadora do MFA, e dizia para comigo: "porra! falta ali o Passos Ramos!"), também do major Osório, embora esse fosse mais para a porrada e para as guerras (e eu, sabes, sempre fui, como guerreiro, um civil mal fardado).
E acima de nós todos, guerreiros coloniais a mais numa guerra estúpida, eu admirava os manjacos, sobretudo pela sua cultura e ética riquíssima (e esses estavam na sua terra e na sua guerra, como eu estaria se os espanhóis me entrassem no meu Trás-os-Montes natal dentro, fodia-os a todos ou fodia-me a mim!).
Voltando à minha zanga contigo. Então tu decidiste (com que autoridade???) meter esse sacripanta do Nino (à parte os seus méritos guerreiros, que os teve e muitos, tantos até que ele já os deve ter esquecido), um "papel", como "manjaco"? Meu deus: "Nino Manjaco"? Por este caminho, ainda, um dia destes, dizes por aí que o Major Valentim Loureiro (um amigo do Nino) é fula ou mandinga. Meu deus! Meu deus! Meu deus! (se Pedro negou Cristo três vezes, eu pago-lhe a conta, pela afirmativa, também em triplicado).
Respeita os manjacos, camarada Luís! (desculpa-me a ironia amiga, não a leves a mal, mas foi a forma de disfarçar uma lágrima que se me escapou pois li-te a chamar manjaco ao Nino, as entranhas começaram em revolta e lembrei-me do Pereira da Silva, foi o que foi, já passou!).
Abraço grande para ti e do mesmo tamanho para todos os camaradas tertulianos.
João Tunes
Resposta do L.G.:
João:
Aqui na tertúlia todos temos o direito à... indignação!... A tua foi de tal ordem que eu ouvi o teu murro em cima da mesa!... E olha que nós não moramos tão perto um do outro quanto isso, temos pelo menos o Rio Tejo de permeio... Foi um lapsus linguae da minha parte e sobretudo fruto da minha total ignorância em relação aos manjacos. Eu devia saber que o Nino nunca poderia ser um manjaco!... Infelizmente, não convivi com os manjcos, apenas com os fulas. Resta-me pedir-te mil perdões a ti e aos nossos queridos manjacos da Guiné-Bissau. E já agora também as minhas desculpas ao Nino Vieira, que não é manjaco mas papel: o seu a seu dono. Já fiz a correcção da grossa calinada de ontem à noite... Um grande abraço. Luís
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(1) Vd. post de 27 Novembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVI: BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71), o primeiro batalhão do João Tunes
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