09 dezembro 2005

Guiné 63/74 - CCCLI: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (2) (João Tunes)


Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969:

Um dos grupos de combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade . De pé, na terceira fila, os furriéis milicianos António Levezinho e Humberto Reis, membros da nossa tertúlia. Os soldados, do recrutamento local, eram fulas e futa-fulas. Estes, em geral distinguiam-se dos restantes pela sua elevada estatura. A CCAÇ 12 fazia parte da "nova força africana" e, por sugestão do próprio Spínola, ficou afecta à Zona Leste (que correspondia, grosso modo, ao chão fula).

© António Levezinho (2005)



Camarada Luís, nosso Cmdt em Chefe do "Nosso Blogue",

Li com toda a atenção o texto do nosso camarada José Neto sobre a questão da diferenciação/divisão étnica. Penso que percebi a intenção nobre das suas palavras. Sobretudo sábias quando relativiza, e muito bem, a constituição de qualquer forma de hierarquizar superioridades ou inferioridades étnicas. Mas julgo que não me será levado a mal se disser que, no essencial, respeitando e admirando o seu espírito pacificador, discordo dele. Sobretudo, quando diz:

"É hora de ajudarmos os guineenses a alhearem-se das suas divisões ditas culturais e prosseguir o seu destino com as PESSOAS que constituem o seu povo. Isto de "respeitem os meus", "os outros são uns malandros" não leva a lado nenhum. Nós já há muito que esquecemos os Celtas, Vândalos, Suevos, Iberos e outros que tais que povoaram este cantinho da Europa, onde continuamos a fazer força para "entrar"."

A diversidade étnica da Guiné, tendo para mais em conta o elevadíssimo número de etnias concentradas num pequeno território, é um problema, mas também um bem. Um mal, porque é favorável, ainda nas suas condições sócio-económicas locais, mais à divisão e aos egoímos do que à consolidação da unidade nacional. Um bem, na medida em que enriquece o mosaico cultural e usos e costumes da Guiné e exprime a força das persistências culturais e sociais das várias etnias ali presentes e que souberam, face à ocupação militar portuguesa e á proximidade de etnias muito diferentes, preservar as suas culturas e os seus hábitos.

E julgo que o "milagre" desta permanência de vizinhanças, mantendo-se intocáveis as endogenias próprias de cada etnia, foi possível pela conjugação de dois factores - a unificação de salvaguarda perante o ocupante europeu (quando ele existiu); o país ser pobre (não propício a processos de acumulação capitalista e á consequente estratificação social) e, simultaneamente, o terreno ser de tal forma fértil que os mais desvalidos não correm o risco de serem derrotados pela fome (a doença é o grande "exterminador").

O fim da ocupação portuguesa levou os guineenses a terem de resolver, entre si, dois problemas (novos mas que já existiam no seio da guerrilha):

- Por um lado, a questão dos "caboverdianos", cuja supremacia, pela sua escolarização, se manifestava - no lado colonial - pela sua ocupação dos lugares administrativos do aparelho de domínio colonial, e, na guerrilha, por ocuparem os maiores lugares de destaque entre os quadros destacados do PAIGC e, na altura da independência, serem os com melhores condições para substituírem os portugueses nos comandos do aparelho do Estado. Sabe-se como o problema foi "resolvido".

- Segundo, como, "resolvido" o primeiro, se iam arrumar as várias etnias em termos de prevalência social, contando aqui a superioridade numérica forte de uma das etnias (com um correspondente peso no aparelho militar) face a outras, com hábitos e tradições de se auto-atribuírem finalidades aristocráticas na escala de valores infra-africanas. Ao mesmo tempo que tinham de se entender com a afirmação virgem de um espírito de unidade nacional, por si próprios, desaparecido que foram os factores "unificadores" quer da oposição ao ocupante colonial e, depois, liquidada a "supremacia caboverdiana".

O domínio colonial tudo fez, dividir para reinar, para explorar e acirrar os conflitos infra-guineenses. A "psico" tentava virar as populações indígenas e os guerrilheiros contra os "chefes caboverdianos" do PAIGC; dava um claro favorecimento às etnias islamizadas (sobretudo, os fulas) por considerar que, por via dessa influência religiosa, seriam mais relapsos a aceitarem os fundamentos ideológicos do PAIGC, com maior capacidade de penetrarem no comunitarismo próprio das etnias de cultura animista (e não foi por acaso que o PAIGC penetrou mais profundamente nas regiões balantas e menos nas regiões fulas).

Entretanto, o assassinato de Amílcar Cabral, com as batutas e os dedos da Pide e de Spínola, foi possível como fruto das divisões inter-étnicas e da aversão aos caboverdianos que a "psico" conseguiu transportar para o campo inimigo. Uma das nossas heranças que ficaram na Guiné, foi essa.

A unidade nacional não se decide nem se decreta. É mais uma questão de tempo que de vontade. E de condições sociais, políticas, culturais e económicas, umas objectivas e outras subjectivas. O exemplo da "uniformidade" portuguesa, que o camarada José Neto invoca, não colhe, porque uma excepção nunca vale para valer como regra. Olhe-se aqui, para o lado, para os espanhóis. Para os belgas, os suíços, os franceses, os da Grã-Bretanha, os italianos, os jugoslavos, por aí fora. E como é nada (tirando a moeda e a liberdade de circulação de pessoas e mercadorias) a identidade e a unidade europeias.

Portugal, no quadro europeu, por razões que se podem discutir mas que levavam a uma outra conversa larga, é um caso quase único, verdadeiramente excepcional, beneficando da uniformidade longeva das fronteiras e do expansionismo ultramarino e migratório que aliviou tensões internas. E se o caso português não serve como exemplo para a Europa, como podia funcionar para África? Quando, exactamente, a herança que lá deixámos foi a do acirrar rivalidades para impedir o espírito de unidade nacional que nos era um factor adverso (em termos de domínio colonial e de actuação militar) e uma pedra de toque da ideologia independentista?

Voltando ao bem que é a riqueza da diferenciação étnica da Guiné. Se for possível, não sei se é, nem sei se não é, seria óptimo para os guineenses e para o mundo, que em vez de um quadro uniforme de africanos engravatados, de pasta numa mão, computador na outra e telemóvel ao ouvido, eles não perdessem a sua enorme e polifacetada riqueza cultural das suas diversidades e raízes.

De qualquer forma, tudo o que se faça para um povo se "alhear" das suas realidades, imprimindo-lhe uma uniformidade não aceite, é chover no molhado. É adiar e agravar o problema. Que só é problema se não for sublimado culturalmente e quiser serresolvido pela força das armas (o que, infelizmente, tem acontecido vezes demais). De qualquer forma, é um problema (até de soberania cultural) que só os guineenses devem e podem resolver.

Nós, portugueses, não temos nada para "ajudar" (deixámos maus exemplos e péssimas heranças, não temos "psico" para ajudar á festa). Persistir na ideia de "ajudar os guineenses" a resolver os seus problemas políticos é, parece-me ser, um paternalismo retardado. Perdemos essa oportunidade nos séculos que lá estivemos, e em vez disso, trouxemos escravos e o amendoim, dividimos e metralhámos. Agora, resta cooperar e confiar na sua capacidade de que resolvam, entre si, os seus problemas de diferenças. Desejando-lhes o melhor, é claro.

Abraços a todos os camaradas tertulianos.

João Tunes

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