10 dezembro 2005

Guiné 63/74 - CCCLIV: Cancioneiro de Mansoa (4): a arte de ser 'ranger'

Dos cadernos do Magalhães Ribeiro, ex-furriel milicano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, o mesmo que em 9 de Setembro de 1974 teve o privilégio de arriar a última bandeira portuguesa, no quartel de Mansoa (1), na presença de altos representantes do PAIGC que, por sua vez, hastearam a bandeira da nova República da Guiné-Bissau...


Têm 3 minutos p’ra estar na parada

Safa!... desta já eu me livrei!
A recruta estava concluída,
Nova etapa se apresentava,
Chegara a hora da partida.

Nova guia de marcha recebi,
Dizia: apresente-se no C.I.O.E.
Em baixo noutra linha, Lamego;
Bem, pensei, vamos lá ver como é.

Chegado à cidade logo vi:
C.I., quer dizer, Centro de Instrução,
O.E., Operações Especiais;
«Meti-me noutra alhada, pois então!»

- Você vai p’ró quartel em Penude…
Rápido, já devia lá estar!
- Mas, eu ainda agora cheguei…
- Caluda qu’aqui, até tens de voar!

Lá andamos uns tantos quilómetros
Num Unimog que, de repente, parou:
Apenas se viam dois barracões
À volta, mato... - A gente já chegou?

Veio um aspirante e berrou: - Desçam…
Vão ali, e apresentem-se, já!
Comecei então a entender,
Não estávamos ali para tomar chá.

- Aonde é o quartel?... perguntei.
- Estás a querer gozo, ó piço?
- Perguntar não ofende!... disse eu.
- Tu já estás no quartel, ó chouriço!

Ora esta especialidade
Também conhecida por Ranger,
Não pode ser descrita no íntimo,
Não vá ser lida por um nabo qualquer.

Não só devido ao grande risco
De interpretações distorcidas
Mas pela dignidade e respeito
Que a todos Rangers são devidas.

Porque… por muito que se rebusque,
Por muitas palavras que escrevamos,
Jamais se dirá da camaradagem
E das amizades qu’ali enraizamos.

Para ultrapassar a instrução,
Seus efeitos psíquicos e físicos,
Aprende-se onde, além das teorias,
Se esgotam os limites práticos.

Ao longo de onze semanas
Muitas vezes abismado constatei
Q’uma réstea de alma reservava
Depois de pensar já arrebentei.

Mas para não criar mais um tabu
E ser acusado de coisas esconder,
Só me resta dar uma ligeira noção
Do que no curso nos é proposto vencer.

Assim, um Ranger é aquele que:
Vê um Fantasma e beija um morto,
Numa Largada faz uma noitada
E na Guerrilheira não fica absorto.

Tal como Cristo vai ao Calvário
Nos Esgotos prova, mas não abusa;
Seu dia tem 24 horas
E ao Esforço final não se recusa.

Dá o que pode na Dureza 11
O que não pode na Ranger ousa
Vai de Slide e vem de Rapel
Dança a Chula-picada e repousa.

Se a Primeira dose for de bom tinto,
Disfarça sempre o Zig Zag
Ressacas, só na Piscina Ranger
Antes que o Vampiro a estrague.

Vai pescar em Parido e Reconcos,
Namora a Meadas com paixão,
Adora campismo no parque Vilar,
Só bebe águas marca Balsemão!

Desvendados estes segredos,
Nestas esclarecedoras quadras,
Fica quase tudo aqui escrito
Que é possível dizer, em palavras.

Mas se leu isto e tem dúvidas
E pretender conhecer algo mais,
Ofereça-se como voluntário
Para as Operações Especiais.

Para o curso de Ranger concluir
Diga-se, em abono da verdade,
São precisas três características:
Carácter, Energia, e Dignidade

Mas só se é Ranger a 100%
Da mais elitista qualidade
Se este for ainda dotado de:
Disciplina, Patriotismo e Lealdade


- Atenção, têm três minutos p’ra estar na parada...
E, assim, em Penude, pr’ó combate nos preparamos
Éramos só cento e tal, mas o nosso lema diz;
“Que os muitos por ser poucos não temamos”.

Magalhães Ribeiro - Soldado Instruendo nº 114 CIOE - Penude - Turno: 4º/73 - 3ª equipa - 4º Grupo

_________

(1) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

2 comentários:

Ricardo disse...

Gostei Muito da descrição de um Ranger e espero um dia o poder descrever por palavras minhas...
Grande abraço de uma pessoa que admira tanto estas pessoas que sofreram mas atingiram o objectivo de serem Rangers!!!
Comprimentos Ricardo Rodrigues.

Francisco disse...

Ranger Magalhães Ribeiro não posso deixar de dar os parabéns, e de agradecer o prazer que tive ao ler quer o que escreveu, quer a forma como o fez.É verdadeiramente extraordinário. Muito obrigado por me ter feito regressar tantos anos. Também estive no 4º turno de 1973, em Penude, no CIOE. Um abraço Cabral