21 junho 2005

Guiné 69/71 - LXXI: Antologia (3): Sócio-antropologia da família e da mulher em Geba, nos finais do Séc. XIX

Textos seleccionado e enviados por Marques Lopes (que foi alferes miliciano da CART 1690, em 1967, em Geba):

1. A circuncisão e a família em Geba, por Marcelino Costa Ribeiro (1885)

Há um péssimo costume gentílico inveterado no povo do presídio de Geba, o qual consiste em determinado tempo aplicar a circuncisão a ambos os sexos, operação a que em Geba dão o nome de fanado.

Esta operação, apesar de ser simples, carece de algum cuidado, e não é só empregada pelos selvagens, mas também por muitos da praça de Geba, que infelizmente têm o nome de cristãos e civilizados.

Na actualidade aquele costume está mais em uso entre as supostas donzelas, vulgo bajudas, de 12 a 26 anos, do que entre os mancebos, devido talvez à luz da civilização, que vai pouco a pouco penetrando nas camadas sociais, e que se prega na boa escola confiada ao digno missionário e pároco distinto, o sr. Luiz Baptista do Rosário e Sousa.

Infelizmente as bajudas não têm quem lhes ensine as boas doutrinas, adoptadas na lei de 1809, porque as suas amas, vulgo mestral, passaram pelo mesmo caminho, e deixam que as suas educandas sigam à risca as leis gentílicas, adoptadas pela nobre universidade de Sonaco (1) , aonde vão instruir-se.

Quem conhece Geba a fundo, e está em dia com os péssimos costumes ali adoptados, sente logo a diferença no número da população que reside no presídio, sem que ninguém lhe diga nada; esta diferença é sempre notável nos princípios de Dezembro, época em que as supostas donzelas vão para diferentes povoados perto do presídio, sujeitarem-se à circuncisão.

Algumas a quem os pais impedem a ida, lamentam a sua sorte, metem empenhos, e quando não conseguem a licença de se irem circuncidar, fogem aos pais, e vão para o sítio aonde está constituída a liga, sujeitar-se à operação ; evitando por este modo que amanhã sejam consideradas na alta sociedade de Geba como olmo (não circuncidadas). Eis aí a maneira como são educadas em Geba muitas, a maior parte, das raparigas oriundas daquele presídio, e filhas de pais da classe de grumetes (2).

Agora direi alguma cousa acerca dos mesmos grumetes, explicando a maneira como eles adquirem numerosos filhos e constituem família, sem serem muitos deles verdadeiros pais. É costume e uso inveterado entre os grumetes no presídio de Geba, terem 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 mulheres. A mais antiga em casa é sempre tida como dona da mesma, e poucas vezes se ausenta ; as outras quase nunca param em casa, vão para Fulacunda (3) (pequena povoação dos gentios fulas) fazer negócio, e aí se conservam.

Estas mulheres, chegando a Fulacunda ao mesmo tempo que se ocupam da venda de sal, tabaco e outros artigos que levam para os gentios, vendem-se também a si mesmas. No fim de alguns anos, algumas voltam à praça com 2 filhos, outras com 3, outras com 4, outras com 5, os quais, longe de serem mal recebidos em casa dos supostos pais, são tratados por estes como verdadeiros filhos!

Aqueles pequenos crescendo, começam a apelidar-se com o mesmo apelido; se os supostos pais se chamam Sambú, todos se apelidam Sambú, e se forem tio-Chico, todos seguem o mesmo, etc. No recenseamento que se fez em Geba no ano de 1882, notei na relação dos recenseados alguns grumetes com 15 filhos, outros com 19, outros com 21, etc. Explica-se pela circunstância que acima mencionei.

Marcelino da Costa Ribeiro (Geba—Guiné), in Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. 1885.277-278.


Notas de Marques Lopes:


(1) Será Sonaco na zona de Gabu? É que também há Sonaco, no Senegal, perto de Barro, e de que já vos falei (ML).

(2) Os grumetes eram africanos que, vivendo nas povoações luso-africanas e adoptando com grande liberdade os hábitos cristãos e os modos lusitanizados de ser, operavam como remadores, construtores e pilotos de barcos, carregadores e auxiliares no comércio. Como categoria sociológica, eles desempenhavam um papel chave no frágil compromisso em que a sociedade crioula se fundava, sendo os intermediários que faziam a delicada mediação nos relacionamentos entre a minoria de comerciantes europeus e luso-africanos e os régulos das sociedades tradicionais africanas que produziam bens para exportação (Wilson Trajano Filho, da Universidade de Brasília, in Outros Rumores de Identidade na Guiné-Bissau).

(3) Há uma tabanca Fulacunda, na zona de Geba; há outra Fulacunda na zona de Buba; e há também uma Fulacunda na Casamanse, Senegal (ML).


Observações de L.G.:

Sobre a polémica cerimónia do fanado, vd. o meu post, de 4 de Maio de 2005 >
Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)


2. Beldades de Geba, por Costa Pessoa (1882)

Quando saí de Lisboa em Outubro de 1879 com direcção á Guiné portuguesa, julgava, senão impossível, pelo menos difícil encontrar indivíduos da raça preta que me parecessem bonitos; mas logo que cheguei a Bolama e Bissau desenganei-me e muito mais depois que, navegando no rio Geba, vim parar à povoação deste nome.

É realmente interessante ver chegar a este presídio todos os dias grandes ranchos de fulas, fulas-forras e mandigas (mouras) dentre as quais aparecem tipos tão bonitos e regulares, que muitas damas da nossa terra invejariam (salvo a cor).

Principalmente dentre as fulas-forras, tribo de cor bronzeada, aparecem raparigas de rosto comprido, nariz aquilino, pequeno, lábios delgados, olhos vivos, apresentando um conjunto agradável e simpático.

O seu vestuário é o mais simples possível, consiste unicamente em um pano de algodão de 0,5m de largura, algumas vezes enfeitado com contas, que passam à volta da cintura. No pescoço e tornozelos trazem também muitos fios de contas e nos pulsos quantidade de manilhas. Do cabelo fazem um penteado em forma de barco com a quilha para cima, que vai desde o alto da cabeça até à nuca, deixando áà volta na testa e nas fontes pequenas tranças a que prendem fios de comas com moedas de prata nas extremidades.

Deu-se um dia comigo um caso engraçado : Estando eu sentado à porta de um negociante deste presídio, vi chegar um rancho de fulas que vinham fazer o seu negócio. E entre elas havia uma que sobressaía mais do que qualquer outra por ser mais bela e vir mais enfeitada. Chamei-a : ela aproximou-se e comecei então a examiná-la sem que ela a isso se opusesse; porém uma rapariga cristã, que se achava entre elas, diz-lhe :
— Repara que isto não é homem, é um boneco de molas movido por aquele (designando o negociante).
A fula retorquiu-lhe :
— Não, ele fala, tem olhos e cabelo.
— Tudo é postiço, e não diz coisa que se entenda, respondeu a cristã. Tu percebes alguma cousa do que ele diz ? Já viste homem tão branco ? (Eu era o único europeu que então me adiava em Geba, mas em Portugal não passava por ser dos mais brancos).

A esta última quartada fugiu a rapariga. Não se aproximou mais de mim, e hoje seguem todas aquele exemplo.

Costa Pessoa (Geba — Guiné), in Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. 1882. 27/28

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