23 junho 2005

Guiné 63/74 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau

[Um sargento e vários furriéis milicianos da CCAÇ 12, à mesa de jantar, a bordo do Niassa. © Luís Graça ]

Excertos do Diário de um tuga. Luis Graça (ex-furriel miliciano Henriques CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71).
A bordo do Niassa. 28 de Maio de 1969

Eis-nos nos tristes trópicos (1). Atravessámos hoje o Trópico de Câncer, com peixes voadores e alguns tubarões a acompanhar-nos. Lembrei-me do meu pai, que esteve em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente (2), como 1º cabo, em plena II Guerra Mundial. E das histórias de tubarões que me contava. Das suas fotos amareladas de barcos e de tubarões.

Alguém se lembrou de abrir uma garrafa de champagne como se tivéssemos atravessado o Equador em alegre cruzeiro pelo Atlântico Sul. Com um sorriso amarelo, também participei neste ritual de iniciação e ergui a minha taça:
- Afinal, estamos todos no mesmo barco!, - pensei.

De resto, come-se e bebe-se o dia todo para matar o tédio da vida a bordo. Há os viciados da lerpa. Os oficiais superiores, esses, divertem-se com o tiro ao alvo na popa do navio, enquanto a malta da turística (3) escreve cartas, aos pais, namoradas, noivas e mulheres, cartas que eu imagino já molhadas de lágrimas salgadas e de saudades. As praças, essas, vomitam nos porões. Todo o navio fede e no meio do cheiro nauseabundo há um desgraçado de um desertor que vai a ferros.

Dentro de um dia desembarcamos nesse Continente que antevejo verde como a esperança e que reinicia agora o seu movimento de translação na História…

Dentro de um dia desembarcaremos na Guiné da qual espantosamente não sei nada a não ser aquilo que me impingiram nos bancos da escola:

“Descoberta pelo navegador português Nuno Tristão, que viria a ser morto pelos indígenas ao tentar desembarcar numa das ilhas do arquipélago dos Bijagós, a Guiné tem cerca de 2/5 da superfície de Portugal Continental.

“O clima é tropical húmido, e o território muito plano e baixo, com vastas regiões alagadiças e pantanosas, o que torna difícil a adaptação do europeu. Quanto à vegetação, predomina a floresta tropical e a savana arbustiva. A população – um pouco mais de meio milhão de almas – divide-se por uma grande variedade de grupos da raça negra, sendo os mais importantes os balantas, animistas, e os fulas, islamizados.

“As principais exportações são o amendoim, o coconote, as madeiras exóticas e o óleo de palma. A capital e a residência do Governador é Bisssau”.

Desde que deixámos as Canárias, não suporto este calor pegajoso, esta angústia difusa que destilo através dos poros da pele. Tenho sintomas de febre e já não sei onde acaba a realidade e começa o delírio. Ontem à noite, dei comigo, sozinho, face ás estrelas e à imensidão da noite confundida com o mar, vomitando no convés e perguntando-me quem eu era, onde estava, para onde me levavam…

De facto tudo tinha sido tão brutal: (i) a ordem de mobilização recebida em Castelo Branco; (ii) a ressaca dos primeiros copos na noite do tremor de terra; (iii) a apresentação em Santa Margarida, a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional com os rocambolescos assaltos nocturnos aos bivaques do inimigo para sacar tudo o que fosse bebível e comestível; (iv) os breves dias, tristes, de licença antes do embarque; (v) a viagem directa, nocturna, quase clandestina, em comboio especial até ao cais de embarque, no porto de Lisboa; (vi) os capacetes brancos dos polícias militares, os nossos familiares e amigos de rosto tenso, alguns de gravata preta; (vii) as gaivotas estranhamente pousadas nos mastros; (viii) os guindastes, o Tejo, a ponte que eu vi elevar-se das águas nos primeiros anos de 60; (ix) o Cristo-Rei, de braços abertos como um espanta-pardais numa tela de Dali; (x) o apito breve mas pungente do navio, breve como um tiro, pungente como o sentimento indefinível de quem em Lisboa parte e de quem em Lisboa fica; (xi) o marinheiro que solta as amarras, um vulto, uma mão, um lenço…

E, já no mar alto, ao largo dos Açores, eu próprio tive a sensação de ter atravessado o pórtico do tempo e entrado num barco-fantasma, sobrevivente da odisseia dos antigos nautas, à deriva nos medonhos mares de que nos falavam as velhas histórias trágico-marítimas…

Que fazia eu, que fazíamos nós, centenas e centenas de homens acondicionados como gado em porões nauseabundos, ali naquele barco da carreira colonial, vogando fora do tempo e do espaço, como se Gil Eanes nunca tivesse dobrado o temido Cabo Bojador, desfeito as lendas do Mar Tenebroso e assim aberto o caminho marítimo para o longínquo sul, para o fim do mundo e para os eldorados que havia por achar?!...

- Duplamente embarcado, meu velho. É isso! – disse para mim próprio, ao avistar-se ao longe a luz trémula do farol da Ilha dos Pássaros, à entrada do Porto de Bissau, e ao ouvir-se pela primeira vez uma tempestade tropical que, no meio do alvoroço provocado pelo grito Terra à Vista!, alguém confundira com o tão temido ribombar dos canhões.

- Embarcados na grande aventura colonial, para representarmos o terceiro (e último) acto dum grande tragicomédia, com um falso passaporte que não tem o visto da História! Mas um dia teremos vergonha das mentiras que ouvimos (e deixámos) dizer em nosso nome!...

[ Em homenagem ao meu velhote que aqui vemos, expedicionário, em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente, em Julho de 1942, com 21 anos... É o primeiro do lado direito, e pousa para a foto com um tubaraão que acabara de ser apanhado: "Rra novo mas já era bastante grande", escreveu ele nas costas da foto. © Luís Graça ]


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(1) Título de um livro, do antropólogo francês Lévi-Strauss, que fazia parte da pequena biblioteca que levei comigo para a Guiné, convencido que iria ter algum tempo para ler.

(2) Vd. post de 26 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXVI: Antologia (11): Cabo Verde (1941/1943)

(3) Reservada aos sargentos. Na 1ª classe iam os oficiais. O resto era mercadoria, gado humano…

Bissau. 29 de Maio de 1969

Desembarcamos numa cidadezinha térrea, de casas de adobe, rachas de cibe e chapas de zinco, com quintais cheios de mangueiras, e onde em dois ou três quarteirões, feitos a régua e esquadro, se concentram a administração e o comércio.

Nas ruas, sujas das primeiras enxurradas de Maio, djubis vendem mancarra (começo a aprender as minhas primeiras palavras de creoulo). Gilas, de balandrau branco, óculos de sol e transistor a tiracolo, mercadejam bugigangas de contrabando (1). Os sons, os sabores e as cores de África baralham-me os sentidos e as emoções.

A esta hora da manhã, já as esplanadas estão cheias de tropa à civil, beberricando cerveja, enquanto no mastro da fortaleza oitocentista da Amura flutua uma descolorida bandeira verde-rubra. Indiferente aos velhos canhões de bronze, uma mulher passa com o filho às costas e um balaio à cabeça.

Canoas talhadas em grossos troncos de poilão partem do mítico cais do Pijiguiti (2), sulcando as águas lamacentas da Ria, em busca de mafé. Ronceiros aviões levantam voo de Bissalanca e, no meio da praça do Império, em cima de um Unimog, de pé e de braços abertos, alguém de nós, exclama:
- Camaradas, cinco séculos de história vos contemplam!

Post- scriptum - Três dias depois iriam dar-nos uma G-3, novinha em folha, e uma ração de combate, para de seguida nos porem no fundo duma LDG, a caminho do Leste, Rio Geba acima, escoltados por uma secção de fuzileiros navais que, à medida que o rio estreitava, batiam com fogo de morteirete a cerrada vegetação das margens (o tarrafe) até às proximidades do Xime… “Como um cão apanhado na rede”, resmungava eu sentado na capota de uma Berliet, no fundo da LDG Bombarda…
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(1) Balaio=cesto grande; cibe=palmeira; djubis= miúdos; gilas= vendedores ambulantes; mafé= peixe; mancarra=amendoim.

(2) Para o PAIGC, o massacre dos marinheiros e trabalhadores portuários do Cais do Pijiguiti, a 3 de Agosto de 1959, é uma data histórica.

Cronologia do 1º semestre de 1969 (Janeiro-Junho):

(i) Recorde-se que, em 2 de Maio de 1968, é nomeado António de Spínola para os cargos de governador-geral e comandante-chefe da Guiné. Tomada de posse a 20 de Maio desse ano.

(ii) Recorde-se ainda que em 23 de Setembro desse mesmo ano, Marcelo Caetano toma posse como Presidente do Conselho de Ministros: o seu governo inicía funções em 17 de Novembro.

(iii) E , por fim, cite-se a conclusão de Spínola, em documento oficial, sobre a situação da Guiné, segundo a qual se vivia uma "triste realidade", na Guiné, tanto sob o ponto de vista militar como sócio-económico (Outubro de 1968).

Janeiro

1 - (i) Marcelo Caetano dá início às "Conversas em família", na RTP. (ii) Um grupo de católicos, em vigília na igreja de S. Domingos, condena a política africana do governo, e divulga um documento manifestando o seu empenho na obtenção de uma solução pacifica para a questão colonial.

18. Início da Conferência de Cartum. Constituição do Comité de Mobilziação e Apoio aos Povos das Colónias Portuguesas.

Fevereiro

(i) Durante Fevereiro e Março realizam-se grandes operações na Guiné, procuranbdo o IN nos seus próprios santuários (por ex., Op Lança Fiada, na Zona leste; Op Vulcano, na região de Quitafine/Cassebache).

(ii) Em Bigene,a s NT fazem grandes apreensões de armamento.

(iii) Em contrapartida, Guilege sofre, em Fevereiro, um grande ataque, com grande precisão, por parte do PAIGC.

(iv) Ainda em Fevereiro, Leopold Senghor, o presidente do Senegal, apresenta um plano para a independência da Guiné no quadro de uma comunidade luso-africana.

3 - Eduardo Mondlane, fundador da FRELIMO, é assassinado, em Dar-es-Salam, Tanzânia, através de uma carta armadilhada. Samaora Machel será depois eleito como um dos três elementos da equipa (triunvirato) que passa a dirigir a FRELIMO.

8 - AS NT evacuam Madina do Boé, no sector sul, junto aor Rio Corubal e à fronteira com a Guiné-Conacri. Na travessia do Rio Corubal, há um grave incidente com a jangada que fazia o transporte de homens e equipamentos, provocando a morte de 47 militares. O aquartelamento é ocupado no dia seguinte pelo PAIGC.

9 - Forte ataque do PAIGC ao quartel de Cambaju, durante cerca de duas horas, com entrada no perímetro defensivo e várias mortes e feridos do lado das NT.

26 - O IN, sob o comando de Mário de Sousa Delgado e Mamadu Indjai, ataca duas lanchas no rio Buba.

Março

(i) Reactivação da guerrilha no chão fula (Mansoa, Bula)

6 - Início da Op Vulcano, no Sul da Guiné, na região de Quitafine/Cassebache. Grande resistência do IN à acção ofensiva dos paraquedistas contra as suas posições de artilharia.

7 - Escalada na guerra: o IN utiliza, no Sector Sul, uma metralhadora pesada antiaérea quádrupla 14.5 e seis simples de 12.7, atingindo dois Fiats G-91 e um DO-27.

8-19 - Op Lança Afiada > 1300 homens "varrem" a região compreendida entre a linha Xime-Xitole e a margem direita do Rio Corubal. Entrada das NT na mítica mata do Fiofioli.

Abril

(i) Operações da NT na região de Bula, com vários contactos com o IN.

8- Marcelo Caetano, o novo primero-ministro dá início inicia a sua visita à Guiné.

17 - O presidente da Associação Académica de Coimbra é impedido de falar, em cerimónia de inauguração de um novo edifício, com a presença do Chefe do Estado. Ocorrem então graves incidentes entre os estudantes e as autoridades. Início da grave crise académica de 1969.

21 - Marcelo Caetano regressa da sua visita oficial à Guiné, Angola e Moçambique. Em Lourenço Marques deixa a porta aberta à ideia de uma progressiva autonomia dos territórios ultramarinos.

Maio

(i) Utilização de mina aquática, por parte do PAIGC, no Rio Cobade, no sector sul.

14 - Reúne-se em Aveiro, até dia 16, o II Congresso Republicano, organizado pela oposição democrática.
31 - Ataque em força ao aquartelamento de Bambadinca. Pânico entre as nossas tropas. O comando do Batalhão, ali sedeado, é destituído por Spínola.

Junho

(i) Intensificação da guerrilha na região do Gabu (Piche / Zona de fronteira com o Senegal), obrigando a deslocações da população.

(ii) Resolução da Comissão de Descolonização da ONU, condenando a guerra colonial, levada a cabo poir Portugal, como crime contra a humaniddae e ameaça à paz e segurança.

21 - Kaúlza de Arriaga nomeado o comandante do Exército em Moçambique, na sequência da ocorrência do maior acidente da guerra colonial em África: 101 militares perdem a vida devido ao afundamento de uma batelão na travessia do Zambeze.

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