Extractos de: História da CCAÇ 12 (1969/71). Bambadinca: Companhia de Caçadores nº12. 1971. Capítulo I. 1-2.
Eis como era a máquina burocrática e totalitária que nos arrancou, meninos e moços, das nossas terras e nos levou para as bolanhas e matas da selvagem Guiné... Muitos dos combatentes da "guerra do ultramar" passaram por este percurso, aqui descrito ou advinhado, e nomeadamente os que foram parar ao CTI (Comando Territorial Independente) da Guiné: Campo Militar de Santa Margarida, viagem nocturna, de comboio, pela linha da Beira Baixa até ao Cais da Rocha de Conde de Óbidos, embarque no Niassa, adeus pai, adeus mãe, adeus amigos e companheiros, adeus minha terra que vou para longe, Tejo meu, Madeira, mar encapelado dos Açores e das Canárias, vómitos e saudades, África, Guiné, o insuportável calor de Bissau, LDG Rio Geba acima, Xime, Bambadinca, Bafatá, Contuboel...
Vale a pena conservar os tiques da linguagem castrense da época... Algumas siglas já não as sei descodificar... Era ainda o país de Suas Excelências. E do respeitinho. O país do Deus, Pátria e Família. Das missas campais e das paradas militares. Do patriotismo serôdio e decadente... Por muito estranho que pareça, era o nosso país, a nossa pátria, de há trinta e tal anos atrás...
Em 3 de Agosto de 1968, o velho abutre tinha caído da sua cadeira. Em 27 de Setembro o seu antigo delfim vem substituí-lo na Presidência do Conselho de Ministros. Em 1969 há ainda quem acredite, ao ler-se o Expresso, na "primavera marcelista"... Em Bambadinca, eu recebia o Comércio do Funchal... e creio que era o único da minha companhia, a par do capitão, que estava inscrito no recenseamento eleitoral, tendo votado nas fraudulentas eleições para a Assembleia Nacional em 26 de Outubro de 1969... Ou melhor: não sei se votei, se votei em branco ou se rasguei o boletim de voto... Creio que o candidato pelo círculo da Guiné era o Pinto Bull, acusado na época de ser um colaboraccionista... Morreu já em 2005, de certo modo injustiçado. Na época, acusei-o, apressadamente, de ser um Tchombé. L.G.
Mobilização para o CTI da Guiné
Pela nota-circular nº 00864/PM-Pº 18/2590 da Secção de Administração e Mobilização de Pessoal da 1ª Repartição do Estado-Maior do Exército, de 14 de Fevereiro de 1969, era dada ordem para se proceder a mobilização da Companhia de Caçadores 2590, destinada a reforço do Comando Territorial Independente (CTI) da Guiné, e tendo como Unidade Mobilizadora o RI [Regimento de Infantaria] 15.
A mesma nota determinava que os quadros da CCAÇ 2590 seriam do origem metropolitana, sendo o restante pessoal fornecido pelo recrutamento da PU [Província Ultramarina](89 praças, das quais 11 cabos).
A apresentação do pessoal mobilizado pela Metrópole fez-se no Campo Militar de Santa Margarida, de 3 a 8 de Março de 1969. Tirada a Escola Preparatória de Quadros e a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional, os quadros da Companhia entravam de licença da NNAPU, de 31 de Março a 9 de Abril, ficando prontas para embarque a partir de 11.
A cerimónia de despedida realizou-se no átrio da Capela do CIM, com missa campal, bênção o e entrega dos guiões. 0 Exmº Comandante do RI 15 proferiu a alocução de despedida às tropas expedicionárias.
Tendo embarcado no Niassa a 24 de Maio, juntamente com outras Companhias independentes como a 2591 e 2592 (futuras CCAÇ 13 e 14), chegamos ao CTI da Guiné em 29, pelas 21 h, tendo desembarcado no dia seguinte de manhã.
A 31, no Depósito de Adidos, Sua Excia. o Comandante-Chefe das Forças Armadas, Brigadeiro Antonio de Spínola, passa revista às tropas em parada e dirige-lhes palavras de boas-vindas.
Colocados em Contuboel (Sector L2, Zona Leste) a fim de darmos a segunda fase de instrução ao nosso pessoal africano, embarcamos em LDG [Lancha de Desembarque Grande] para o Xime, a 2 de Junho, tendo seguido depois em coluna auto até ao local destinado.
Os quadros da CART 2479 (CART 11) já tinham dado, entretanto, a instrução básica àsas nossas pracas africanas, de 12 de Março a 24 de Maio, em Contuboel. A cerimónia do Juramento de Bandeira realizou-se em Bissau, a 26 de Abril, na presença de Sua Excia. o Comandante-Chefe.
A instrução da especialidade teve início imediatamente a seguir à nossa chegada a Contuboel. Ao longo de um mês e meio, em plena época das chuvas, os nossos graduados aprenderam a conhecer os elementos dos seus futuros grupos de combate.
Integrada na "nova força africana", a CCAÇ 12 receberia a visita, durante a semana de tiro, de Sua Excia. o Brigadeiro António de Spínola que se inteirou pessoalmente do nível de instrução ministrada as nossas praças africanas.
Os exercícios finais da especialidade efectuaram-se de 6 a 12 de Julho, a 10 km ao norte de Contuboel.
A 18 de Julho, finda a instrução, a CCAÇ 12 é dada como operacional, sendo colocada em Bambadinca (Sector L1, Zona Leste).
Niassa > Navio misto (carga e passageiros), de 1 hélice, construído em 1955, na Bélgica, rgistado no Porto de Lisboa, e abatido em 1979; comprimento: mais de 151 metros; arqueação bruta: c. 10.742 toneladas; potência: 6.800 cavalos ; velocidade normal: 16,2 nós; alojamentos para 22 em primeira classe, 300 em classe turistica, no total de 322 passageiros; nº de tripulantes: 132; armador; Companhia Nacional de Navegação - Lisboa.
Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2004)
Notas do autor (L.G.) desta história (não autorizada...) da CCAÇ 12:
1. Transporte marítimo de tropas para o Ultrmar:
"Em finais dos anos 50, depois de investimentos públicos de grande envergadura, a marinha mercante portuguesa teve o seu desenvolvimento máximo. Contava, nomeadamente, com 22 paquetes, no total de 167 000 toneladas. Entre eles estavam os quatro gigantes: Santa Maria, Vera Cruz, Príncipe Perfeito e Infante D. Henrique, com cerca de 30 000 toneladas cada, capazes de transportar mias de 1000 passageiros ou mais de 2000 soldados.
"Muitos destes paquetes foram requisitados em diversas ocasiões para transporte de tropas, muito especialmente na fase inicial da guerra, e as restantes unidades da marinha mercante seriam essenciais para manter o esforço em África. Os paquetes mais requisitados na ligação a África foram o Vera Cruz, o Niassa, o Lima, o Império e o Uíje.
"O Niassa foi o primeiro paquete afretado como transporte de tropas e de material de guerra, por portaria de 4 de Março de 1961, mas seria o Vera Cruz a fazer mais viagens, chegando a realizar 13 num ano. Em 1961, efectuaram-se 19 travessias por nove paquetes em missão militar e o ritmo aumentou à medida que a força expedicionária em África crescia: em 1963, tinham-se efectuado 27 viagens por oito paquetes e, em 1967, 33 por nove. Até 1974, o mar era a grande via de ligação ao império, tendo mais de 90 por cento da carga e de 80 por cento do pessoal metropolitano empenhado na guerra sido transportado em navios" (Fonte: Centro de Documentação 25 de Abril).
2. A presença de Spínola, ainda periquito e brigadeiro, na cerimónia de juramento da bandeira dos soldados da PU (província ultramarina) da Guiné não deixa de ser significativa do seu empenho pessoal no projecto de africanização ou, melhor, guineização da guerra. A CAÇ 12 é uma das primeiras unidades da "nova força africana". Spínola visitar-nos-ia várias vezes, incluindo na nossa semana de campo, em Contuboel. Tal gesto tinha um especial significado para as nossas praças africanas e para alguns de nós, quadros metropolitanos.
Confesso que nunca simpatizei com a personagem. Digo-o, sem com isso querer escamotear ou ignorar o seu papel nas mudanças operadas em Portugal com o 25 de Abril de 1974, nem muito menos ofender os seus admiradores. Para todos os efeitos, é uma figura de referência nacional, e como tal a sua memória deve ser respeitada. Competirá aos historiadores definir o seu papel da nossa história.
3. Na época em que demos a instrução de especialidade às nossas tropas africanas (de Junho a meados de Julho de 1969), Contuboel era, ainda era, um oásis de paz. Lá ainda se podia brincar às guerras num raio de alguns quilómetros, no meio de uma vegatação luxuriante. Lembro-me de haver lá uma serração de um tuga, o que indiciava abundância de madeiras exóticas.
Ao longo dessas curtas e rápidas semanas aprendemos a conviver com os nossos soldados fulas (e alguns futa-fulas, dois mandingas e um mancanhe, num total de cerca de 100 homens). A maior parte não falava o português, o que dá uma ideia do grau ou do esforço penetração da nossa cultura, no leste da Guiné, depois de "cinco séculos de missão civilizadora"...).
4. Nestas condições, a instrução de especialidade, como se deve imaginar, não foi nada famosa. Estávamos a milhares de quilómetros do nosso ponto de partida, o Campo Militar de Santa Margarida, onde, ainda me recordo, também brincámos às guerras, e fizemos os nosso roncos (no essencial, assalto aos acampamentos do IN a fingir, e pilhagem de tudo o que era bebível e comestível).
5. Em plena época das chuvas, ainda em fase de adaptação ao terrível clima da Guiné, hostil a qualquer tuga, em farda nº 3 , espingarda automática G3 ao ombro e cartuchos de salva nos bolsos (à cautela, não fosse o diabo tecê-las, os graduados, tugas, levavam alguns carregadores com bala real...)... Estão a imginar esta guerra-de-faz-se-conta ?
Era ainda a dolce vita da Guiné (como o autor escrevia no seu diário de um tuga), aqui e ali perturbada peals estórias que a velhice nos contava, a nós periquitos, de Madina do Boé e de Guilege, "lá longe no sul"...
A companhia de tugas aquartelada em Contuboel havia participado na dramática operação de retirada do campo fortificado de Madina do Boé, que custara a vida a mais de meia centenas de militares portugueses, em finais de 1968; e também na grande Op Lança Afiada, que durante uma semana, em março de 1969, varrera todo o triângulo Bambadinca-Xime-Xitole até ao Rio Corubal (efectivos das NT: 1300 homens...). Outra estória para contar...
6. A 18 de Julho de 1969 , a futura CCAÇ 12 (que, por enquanto, ainda era a CCAÇ 2590) é dada como operacional. Atendendo à origem étnico-geográfica dos seus nharros, por sugestão do Com-Chefe, ficamos radicados em chão fula, às ordens do Batalhão de Caçadores 2852 (1968/70), com sede em Bambadinca, esse mesmo, o batalhão do valoroso Ó-Pipas-Não-Tenhas-Medo! ... Outra estória para contar, com tempo e vagar.
7. A 21 de Julho, menos de dois meses depois da nossa chegada à Guiné, quando ainda nem sequer tinham sido distribuídos os camuflados à nossa tropa africana, temos a nossa primeira "saída para o mato" (sic) , seguida do nosso "baptismo de fogo"...
De facto, em Madina Xaquili, temos o nosso primeiro ferido grave, evaiuado para Bissau; e a 28, mais dois feridos graves, numa ataque nocturno àquela aldeia fula que será definitivamente abandonada pela sua popolução e, mais tarde (em Outubro), pelas NT.
Para três dos nossos soldados africanos, a guerra havia acabado, mal começara: ficarão definitivamente inoperacionais e/ou incapacitados, não sem que um deles tenha de passar, primeiro, por outro inferno, o do Hospital Militar da Estrela, em Lisboa...
Pergunto-me, com amargura, o que será feito de vocês, valemets soldados ? Tu, Sori Jau (3º Gr Combate, evacuado para o HM 241); tu, Braima Bá (inoperacional) e tu, Udi Baldé (evacuado para Lisboa e retornado a casa com 35% de incapacidade física), ambos do 2º Gr Comb ?
Madina Xaquili é uma estória para contar noutro dia. Mas já agora saibam onde fica(va): perto de Dulombi, no sub-sector de Galomaro que, se não me engano, foi depois transformado em Sector L5 da Zona Leste. Contuboel fazia parte do sector L2.
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