01 novembro 2005

Guiné 63/74 - CCLXII: Memórias de um comando em Barro (Parte I)

Texto do Virgínio Briote com a seguinte nota ao editor do blogue: "Das minhas memórias de uma estadia de quase três semanas em Barro. Não sei é se a linguagem passa... fica ao teu critério. Mando-te hoje a parte 1". [Vd. a nossa página dedicada aos comandos na Guiné].
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AULA DE GEOPOLÍTICA EM BARRO

Que foda! Esta merda, ah! Não, pá, estava tudo calmo. Bem temos que ver, isto é geopolítica complicada, a malta, o nosso governo tenta manter esta merda sob controlo, estamos aqui quê, 15, 20 mil gajos, não? Não é pela Guiné, claro, esta terra não tem nem um caralho, por outro lado é preciso ver, os soviéticos querem manter o Salazar sob pressão, estás a ver, dispersão de esforços, para a malta não se concentrar em Angola, petróleo, diamantes, madeira e tal, a Guiné é pretos, água e mosquitos, fazem-me a vida num inferno, os filhos da puta picam-me até dentro dos lençóis, grandes cabrões, aqui mais nada, estás a ver, não é? É pá, falam da ONU, a ONU é outro buraco, dali não sai nada para nós, pá, o Johnsson[1] está ensopado no Vietname, não vês, porra, os Américas nem a cabeça podem pôr de fora, caladinhos que nem cucos, votam a nosso favor nas coisas menos importantes, votam contra nós nas outras, porra, querem lá saber!

Barro, o que é Barro? Um buraco minúsculo, muito pequenino mesmo, metido num buracão que é a Guiné, correcto? Mas nada de problemas, sempre calmaria até à semana passada, percebes? Agora, aquela bronca de Farim, é que foi o caralho! Está aqui a malta metida, meia dúzia de gatos-pingados, ainda por cima meias-fodas, que não têm onde cair mortos, a ver se o tempo passa, agora chegam vocês, só me faltava mais esta, caralho!

Mas qual ajuda, qual merda! Vocês vêm mas é foder-nos, foder-nos, letra grande, ouviste? Ó pá, isto em linguagem vernácula é assim, nós abrimos o cu, alargamos bem com as mãos e vocês metem, é o que é, porra! Montam aqui as barracadas e tal, abanam a árvore, as putas das abelhas, dá-lhes não sei o quê, parecem stukas a cair em cima de nós, é um caralho! Vocês a seguir vão para o quentinho, para Bissau não é, p’rás cabo-verdianas, para o meio da coxas delas, lençoizinhos brancos que elas gostam, mosquiteiro e tudo, não é, que eu bem sei, também passei por Bissau, ainda me lembro, que é que julgas, a malta aqui nem o padeiro vê, há que tempos que já nem me lembro, ó pá, aqui só tropa branca e pretos, atenção, mais nada, nem pides ah!

A propósito não és da pide, pois não? Estás a brincar, olha que tu és dos comandos mas eu fodo-te! Ouviste, desculpa lá, cabo-verdianas, pois, obrigado, agora estou sempre a lembrar-me é da mão, sim é com esta, sou canhoto, porquê importas-te? Ah bem, era só o que me faltava vir agora um guerrilheiro de Bissau dar-me moral, dizer-me para mudar de mão, nem a professora, a Dª Eugénia, lá de Vinhais, boa senhora coitada, aquilo é que era uma professora agora já não há disso, o que é que estava a dizer, ah já sei, olha que nem a Dª Eugénia, coitada da senhora, cansou-se de falar com a minha mãe, não me puxavam as orelhas, qual quê, amarravam-se a elas, foda-se, estás a ver como ficaram, espera aí, acabo já, de que é que estávamos a falar, ah a mão, claro já me lembro, estou a dizer-te, amigo, nem a Dª Eugénia conseguiu mudar-me a mão, ouviste?

Ainda há bocadinho, antes de vocês chegarem, dei com uma revista, ai nossa senhora, uma revista qualquer, sei lá, qual Playboy qual caralho, essa merda fica toda em Bissau nas mãos da coronelada, ar condicionado e tal, espera aí, já sei, Estúdio ou Studio, agora não tenho bem a certeza pá, era uma revista de cinema, a Ava Gardner, uma artista, sabes quem é? Sentada num banco alto, sabes, ai nossa senhora, não vais acreditar, umas pernas, o vestido um bocadinho acima, os joelhos à mostra, quando fui à sentina, baixei as calças pá, não sei como, sai-me o pau virado p’ra cima, quase encostado ao umbigo, ouviste?

Estás a rir-te? Desculpa, amigo, agora a sério, desculpa pá, estavas a falar de quê? Estou meio zuca, não repares pá! Não era só eu que estava a falar, desculpa lá, mas tens que ver, estou aqui há não sei quanto tempo, há dias que não falo, há dias em que falo sozinho, acreditas? Gil, ó Gil, espera aí, o que é que eu estava a dizer? Ah, sim! Então, vocês levantam a caça, põem-se na alheta, depois é que é o caralho, nós é que vamos apanhar com os cagalhões em cima, foda-se, fodam-se todos mas é!
...

Olha é trovoada, não estás a ouvir? Não ouves, porra? Ouvidos de Bissau, claro, é só carros, não têm ouvidos para outra coisa. Aqui em Barro não há surdos, ouvimos tudo, até vocês a foderem em Bissau!

Pouco mais de um metro e meio, cabelo só dos lados, de bigode farfalhudo, Nelas, o alferes Nelas como era conhecido, comandava aquele destacamento com a garrafa de uísque mesmo à mão. Gil ao lado, numa esteira presa aos pilares da casa onde estava alojada a inteligência deste posto avançado, Barro, na fronteira norte com o Senegal.

Do quarto onde funcionava o posto rádio, o radiotelegrafista a gritar, alferes Nelas, Bigene está a ser atacado.

© Virgínio Briote (2005)

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[1] Lyndon Johnson, Presidente dos EUA que sucedeu a J. Kennedy

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