01 novembro 2005

Guiné 63/74 - CCLXIII: Memórias de um comando em Barro (Parte II)

Texto de Virgínio Briote (ex-Alf Mil Comando, Brá, 1965/67)


BARRO, BIGENE

A caminho de Bula, atravessaram o Rio Mansoa em Safim, meteram-se outra vez, a subir até embarcarem em S. Vicente, Cacheu acima, num NRP (1), sentados no convés, a dormitarem. Um marinheiro de ordenança a perguntar, quem é o comandante do grupo, ah aquele ali, o gajo é alferes, tenente ou quê, cumprimento militar para o alferes, de quico em cima dos olhos, a passar pelas brasas.

O marujo, cheio de maneiras, como se estivesse num Hilton, senhor alferes, o senhor tenente Peixeiro tem muito gosto em convidá-lo para almoçar. Uma sala de refeições, grumete negro a servi-los, de travessa na mão, um luxo!

Pés na margem, Unimogs à espera, todo o pessoal lá dentro a caminho de Barro. Nelas, alferes Nelas, apresentou-se. Mas, espera aí, já te conheço, porra, estive contigo em Buba, lembras-te? Não? Duma vez em que andamos perdidos a noite toda, naquele tarrafo (2), lodo por todo o lado, nem conseguimos entrar! Ah, estava a ver que não te lembravas!

Como vai isto? Por aqui, até agora, tudo ok. Em Bigene é que as coisas têm estado mais para o aquecido. A Pide até está lá, têm-se fartado de prender gajos, aquilo tudo minado, os turras estão infiltrados em todo o lado, pá!

O sargento Gigante alojou o grupo, num sítio precário como era tudo ali. Uma rua se tanto, algumas casas de tijolos e cimento, a tabanca atrás.

Pessoal novo tem chegado estes dias? Não, alfero Nela, cá (3) tem chegado, o negro descalço. Atenção Mané, vê lá, se pessoal novo chegar, avisa alferes Nelas, Nelass, não é Nela, correcto? Temos que estar sempre a pau, não é, Gil?

Na manhã do dia seguinte, ao nascer do Sol, despedira-se do Nelas. Vamos dar uma volta por aí. Arrancaram para Bigene, uma dúzia de quilómetros a pé, pelas margens da picada. Tudo calmo. Bigene à vista, um Barro um pouco maior. Foram, entrando, espaçados, em coluna por um, como era hábito, com os nativos a olharem para eles.

Capitão Rasas, comandante desta merda! Baixo, atarracado, para o forte, à volta dos 40. Boa ideia terem vindo, os gajos ontem estiveram aqui, já sabia? Foi forte, coisa em grande, rajadas de fora e de dentro ao que parece, morteiradas, uma hora e tal que durou!Sim de dentro também! Sei lá como entraram, entraram, porra, como quer que saiba?

Não, felizmente, dois feridos ligeiros só, nada de grave, com estilhaços de uma morteirada para além daquela casa, ali, está a ver? Tinha lá um pelotão alojado! Tenho a Pide cá, parece que um gajo de Farim está a falar, temos metido uns gajos dentro.

O pide, camisa de caqui de cor indefinida, cabelo a cheirar a panténe, pusera-os ao corrente. Os gajos, ah, senhor capitão, a comer à vossa mesa, ah? Agora sente-se capitão Rasas, sente-se, se não cai…

Preciso que venha comigo, o capitão para o Gil, vamos ali fazer uma visita, com este senhor. Venha, venha daí, vamos conversando! Uma casa ampla, flores à entrada, pequena horta nas traseiras. “Panténe” a abrir o portão, o capitão com o alferes atrás, 2 ou 3 escadas. Uma senhora, 30 e tal, graciosa, cabo-verdiana, mão na porta, surpreendida com as visitas. Meu marido está no banho, vou-lhe dizer, voz de medo, o pide, desconfiado, a olhar para o capitão.

Nós entramos, com a sua licença, minha senhora. Mas ele está no banho, vou chamá-lo, não demora! Uma sala espaçosa, mesa, as cadeiras, mais duas grandes para a preguiça, motivos africanos, estatuetas de pau-preto, coisas assim. Bons momentos devem escorrer aqui, os dois, as tardes a irem-se na calmaria, a imaginação do Gil.

O administrador do posto de Bigene, algemado com as mãos atrás, carapinha ainda a escorrer, um equívoco, senhor, só pode ser, a mão do pide nele. Deixa apertar a camisa, Sony, tira as sandálias, calça o sapato, a senhora ajoelhada, aos soluços, lágrimas pela cara abaixo.

Bem boa, ah, mesmo no ponto, ó Gil, não diga que não marchava já, cá fora o capitão Rasas, gorduroso, os olhos pequeninos. Que merda! Mão na cara, a limpar os perdigotos. Um cheiro a uísque, um uísque velho, azedo. Merda de gajo!

© Virgínio Briote (2005)
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(1) Navio da República Portuguesa

(2) Tarrafo: na margem daqueles rios, uma teia densa de troncos finos de 2 cms de espessura máxima, rijos, muito juntos, formam uma autêntica cortina, impossibilitando praticamente a visão para dentro da mata. Enterram no lodo os caules finos que se alimentam de água salgada, outras vezes incrustam-nos em aflorações rochosas semeadas de ostras. Vista de longe, a folhagem verde absorve a tonalidade característica dos caules e mostra um ar sombrio, clorofila baça.

(3) Não, em dialecto crioulo

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