24 novembro 2005

Guiné 63/74 - CCCVIII: Antologia (27): depoimento do brigadeiro Hélio Felgas (1): os aquartelamentos

Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Destacamento de Banjara > 1968 >

O destacamento não tinha população civil e era defendido por um pelotão da CART 1690.

Distava 45 km de Geba, o que tornava qualquer acção de socorro, por via terrestre, problemática. Não havia água nem luz. Os abrigos, subterrâneos, eram debaixo de árvores seculares... O perímetro do destacamento era demarcado por uma frágil fiada de arame farpado.

Este tipo de destacamento, improvisado, tosco, sem qualquer infra-estruturas de apoio aos nossos soldados (refeitório, casas de banho, camaratas..), era corrente na Guiné. Eram os próprios militares, com as suas mãos e fraco equipamento (pás, picaretas, serras manuais...), com pouco ou nenhuma ajuda da engenharia militar, que o iam fazendo e melhorando, privilegiando primeiro a segurança e só depois o conforto (mínimo)... Mas havia ainda "buracos" piores do que este... O destacamento (!) que defendia a ponte do Rio Undunduma, na estrada Xime-Bambadinca...

© A. Marques Lopes (2005)


Iniciamos hoje (eu e o Humberto Reis) a publicação de um pequeno depoimento do brigadeiro Hélio Felgas (n. 1920), que fez duas comissões na Guiné, durante a guerra colonial (Bula, 1963/64; Mansoa, Tite, Bafatá, 1968/69).

Na última comissão, ele começou por chefiar o Estado-Maior do Sector de Mansoa, depois passou ao Comando do Batalhão de Artilharia de Tite, no sul e, por fim, ficou à frente do "Sector Leste, que abrangia cerca de metade do território e incluía batalhões das três armas combatentes, os quais, naquele tipo de guerra, actuavam concertadamente".

Entre esses batalhões que actuaram na Zona Leste, contava-se o já nosso conhecido BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Quando ele, como o posto de coronel, comandou a controversa Op Lança Afiada (8 a 19 de Março de 1969) (1), era então comandante do Agrupamento 2957 (sediado em Bafatá, mais tarde CAOP 2). Repare-se que o brigadeiro nunca identifica as unidades a que se refere, conforme mandam as boas regras militares...

A CCAÇ 2590/CCAÇ 12 foi colocada, em Julho de 1969, na Zona Leste, como unidade de intervenção, afecta ao Agrupamento 2957 e pronta a actuar em qualquer dos cincos sectores da Zona leste, com destaque para o Sector 1 (Bambadinca), mas também o Sector L2 (Geba) e o Sector L3 (Galomaro). O Coronel Hélio Felgas era, para os todos os efeitos, o nosso comandante de zona. Nunca me foi apresentado...

Este depoimento vem inserido no livro "Os últimos guerreiros do império" (Amadora: Erasmo, 1995), donde constam entrevistas com (ou depoimentos de) diversos militares que se destacaram como valorosos combatentes: o Comandante Rebordão de Brito, o Coronel Caçorino Dias ou o Alferes Marcelino da Mata são exemplos, entre outros. Já aqui apresentámos o relato, contido nesse livro, da Op Ametista Real, comandada por Almeida Bruno, à frente do batalhão de comandos africanos (2).

Autor: Vários
Editora: Erasmos
Local: Amadora
Ano: 1995
Colecção: Memória do Tempo
ISBN 972-8301-03-0
290 pp.


Fonte: 4.ª Companhia de Caçadores Especiais (4CCE) > Bibliografia sobre a guerra colonial.


O Brigadeiro Hélio Felgas, condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito (1970), passou compulsivamente à reserva, a seguir ao 25 de Abril de 1974. No seu depoimento, ele considera-se vítima de saneamento político-militar. Fica esta informação para quem quiser ler e analisar o livro com mais detalhe.

Recorde-se que o Brigadeiro Hélio Felgas, que é também um homem da palavra, como escritor e conferencista, foi Professor Catedrático da cadeira de Estudos Militares, na Academia Militar e, nessa qualidade, foi professor de muitos dos homens que estavam por detrás do Movimento das Forças Armadas (MFA), incluindo capitães de Abril como o Otelo Saraiva de Caravalho.

Com a devida vénia e o nosso respeito por este antigo combatente da Guíné, publicamos a seguir a primeira parte do seu depoimento, interessante sobretudo para aqueles de nós que estiveram na mesma altura e na mesma zona (caso, por exemplo, dos camaradas do BCAÇ 2852 e da CCAÇ 12).

A última parte do depoimento ("algumas considerações acerca da Guiné Portuguesa") deve merecer uma especial atenção por parte dos nossos amigos e camaradas: ele aqui é intencionalmente polémico, comparando a Guiné com o Vietname... Nessa parte do livro (pp. 135 e ss.) , ele revela - 27 anos depois ! - algumas ideias do relatório que terá enviou, no final do ano de 1968, ao General Spínola, "onde defendia que a concessão da independência à Guiné Portuguesa não iria agravar, antes pelo contrário, a situação em qualquer das outras Províncias Ultramarinas" (p. 135).

Mas voltemos ao princípio:

“Conheci praticamente toda a antiga colónia portuguesa e da forma que menos se esquece: a pé e de jipe. Nas 84 operações que comandei, percorri 7000 km de más estradas, piores picadas e pantanosas bolanhas (arrozais). Nelas sofri 26 emboscadas, além de meia dúzia de flagelações aos aquartelamentos e tabancas (aldeias nativas) onde pernoitava".

Dos aspectos que o autor melhor recorda haveria quatro aqueles que "mais vezes interrompem o agora sossegado sono do combatente reformado"... Eram eles:

(i) os improvisados aquartelamentos;
(ii) as emboscadas sofridas;
(iii) os ataques aos acampamentos do IN (ele utiliza a palavra "adversário); e
(iv) as longas e penosas ‘nomadizações’.


Os aquartelamentos

"Antes da guerra a Guiné só dispunha de uma pequena unidade militar em Bissau . Com o início das hostilidades foi necessário arranjar aquartelamentos um pouco por toda a parte. Adaptaram-se construções administrativas e comerciais, construíram-se pavilhões pré-fabricados, telhados de zinco e capim rodeados por bidões cheios de terra. Existiam, igualmente, simples abrigos cavados no chão e cobertos por camadas de troncos cruzados como em Bissássema, Nova Sintra ou em Madina do Boé, ou modestos bunkers com paredes cimentadas, onde eram rasgadas seteiras, como em Braia.

O furriel miliciano de transmissões Carlos Fortunato, da CCAÇ 13 - Os Leões Negros, junto a um palmeira cortada por uma roquetada, nas proximidades de um caserna da "Outra Banda", pertencente ao aquartelamento de Bissorã (1970)


© Carlos Fortunato (2005).


"Não é difícil avaliar o desconforto destes aquartelamentos, onde os nossos militares viviam, frequentemente mais do que um ano, sujeitos a constantes bombardeamentos e flagelações. Em Madina do Boé a ‘festa’ , como os soldados lhe chamavam, era quase diária. Fiquei admirado, na primeira vez que lá pernoitei, ao ouvir, antes de anoitecer, diversos gritos de ‘Está na hora! Está na hora!’.

"Logo a seguir começou mais um bombardeamento que, dessa vez, felizmente não causou vítimas. O único canhão sem recuo de que dispúnhamos era insuficiente para calar o fogo do adversário que só findava quando as munições acabavam ou quando resolviam regressar à Guiné-Conakry".

Hélio Felgas, brigadeiro

In: Os últimos guerreiros do império. Amadora: Erasmos. 1995. 131-132.

(Continua)

_________

(1) Vd. posts publicados anteriormente:

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli


(2) Vd. post de 16 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXV: Antologia (16): Op Ametista Real (Senegal, 1973) Tratou-se de um ataque, em Maio de 1973, a uma base do PAIGC, no Senegal, com o objectivo de aliviar a pressão sobre Guidage. Segundo o autor, Almeida Bruno, o IN sofreu 67 mortos e as NT 14 mortos (dos quais dois alferes), onze desaparecidos, mais tarde confirmados como mortos, e 23 feridos graves (dos quais três oficiais e sete sargentos). Ao IN foram ainda destruídos 22 depósitos de material de guerra.

1 comentário:

Anonymous disse...

É com profundo pesar que informo que o meu avô Major General Hélio Felgas faleceu hoje dia 23 de Junho de 2008. O seu corpo vai estar em velório na Igreja do Campo Grande.
O funeral será esta Terça dia 24 de Junho às 14h30 no Cemiterio do Alto de S. João.

Gostaria de agradecer àqueles que fazem durar as noticias e historias do grande homem e exemplo que foi o meu avô.
Nunca o vi como tal para mim sempre foi um Pai.
Descansa finalmente em PAZ
O Neto - Miguel Felgas Rezende
miguel.rezende@sapo.pt