Dos cadernos (1) do Magalhães Ribeiro, ex-furriel milicano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612 , que teve o seu momento de glória em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974 (2).
Para além do paludismo
Escrever sobre a guerra d’África,
Fiel aos factos e à verdade,
É além de uma questão de honra,
Um dever, justiça e lealdade.
Assim, sobre diversos aspectos
Já se falou, debateu e escreveu
Sobre políticas e estratégias,
Mas algo um pouco se esqueceu.
Por isso dedico estas linhas
Aos seis sentidos d’um combatente,
Aos actos vivos que o atormentam
N’um passado sempre presente.
Àquele que penou na picada,
Que ficou marcado p’ra toda vida...
Como traduzi-lo em palavras
Sem lhe abrir de novo a ferida ?!
Que conste na nossa História ,
Sem salamaleques, com coragem,
Que ali, na guerrilha, no mato
Cada dia... é uma contagem.
Nas folhas dum calendário
Risca-se mais um dia que passou,
Mede-se assim o pesadelo
E, ali, o fim... mais se aproximou.
Lá se foi uma porção da vida
Nos longos dias até ali riscados,
Esfumou-se de vez a juventude
Em factos na memória cicratizados.
Porque a guerra é muito mais...
É a lenta progressão na lama,
É o mistério da mata densa,
É o pressentimento do drama.
É sobreviver no lodo do rio,
É o calor... a chuva... o vento,
É o suor e o pó no rosto,
É o odor do corpo... nojento.
É o peso das armas e munições,
É a mochila, o cantil e o bornal,
É o comer, o dormir nos covões,
É as rações de combate... sabem mal .
É o chilrear da bicharada,
É sentir os mosquitos a picar,
É o cintilar das cobras e dos lagartos,
É as sanguessugas no corpo a sugar.
É o pousar das botas no solo,
É o terror de tropeçar na mina,
É o abandono do ser racional,
É o poder da adrenalina.
É o emperrar do pensamento,
É o cheiro diferente no ar,
É a observação... olhos atentos,
É um subtil movimento notar.
É um galho fresco partido,
É um ruído anormal captar,
É uma pegada... um objecto caído,
É um brilho fugaz detectar.
É dado o alerta e, de repente,
É o romper do silêncio... tolhe,
É o cheiro da pólvora queimada,
É a morte que chegou... e escolhe.
É logo saltar, correr, rastejar,
É o som da metralha infernal,
É o explodir seco das bombas,
É o deflagrar das granadas...mortal.
É o turra? Quantos?... Não se vê!
É algo que no capim se esconde,
É responder aos tiros, cuidado!
É uma armadilha ali... Onde?
É a sina; morrer ou matar!
É o alvo que surge numa fracção,
É premir o gatilho, o tiro certeiro,
É o momento da redenção.
É quando as armas se calam,
É ouvir os gemidos... regelar!
É a agonia dos feridos tombados.
É o assistir à carne a rasgar.
É o sangue do amigo...irmão!
É os buracos dos estilhaços,
É a angústia... o desespero,
É o vê-lo morrer... nos meus braços.
É aquele eterno minuto a escoar,
É a impotência, a frustração,
É mais um’eterna noite d’insónia,
É tempo de mais uma oração.
É um pedaço meu que morre também,
É a família, um breve recordar,
É a revolta das emoções,
É um lamento mais... escutar.
É um inacabar de missões,
É a incerteza do fim... que sorte?
É passar ao lado das balas,
É viver a par com a morte!
É contar o tempo que falta,
É o sonho com o regresso ao lar,
É recontar os dias que passam,
É uma contagem... por acabar!
RANGER Magalhães Ribeiro
Furriel Miliciano da CCS do Batalhão 4612/74
Mansoa - Guiné
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Notas de L.G.:
(1) Vd. pos de 21 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1):o esplendor de Portugal
(2) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)
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