12 janeiro 2006

Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 1997 : Rio Geba. Cais de desembarque, em ruínas.

Por aqui passaram, durante a guerra (1963-1974), milhares e milhares de homens, viaturas , armas e demais material, desembarcados em LDM e LDG (Lanchas de Desembarque Médias e Grandes). A partir do Xime, o rio passava a designar-se por Geba Estreito, sendo navegável até Bafatá apenas através de pequenas embarcações civis ou LDP (Lanchas de Desembarque Pequenas).

© Humberto Reis(2005)

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Texto de Luís Graça:

- Como um cão apanhado na rede – repetia eu, nessa manhã de 2 de Junho de 1969, no fundo da LDG Bombarda, entre fardos de colchões de espuma, cunhetes de munições, Unimogs novinhos em folha e velhas malas de viagem atadas com cordões, enquanto os fuzileiros, hercúleos, heróicos, em tronco nu, de garrafa de cerveja na mão, assustavam bichos e homens com tiros de morteirete próximo da temível Ponta Varela, exorcizando os diabos negros que infestavam o tarrafe e os cerrados palmeirais que circundavam as margens do Geba, ao mesmo tempo que um solitário T-6, protector como um anjo da guarda, sobrevoava a foz do Corubal, ronceiro, sob um céu de chumbo (ou de bronze incandescente ?), em círculos concêntricos como o voo do sinistro jagudi - que fareja a morte, dizem os guinéus, a quilómetros de distância -, acabando por alijar a sua carga mortífera lá para longe, talvez a norte, em Madina/Belel, talvez a sul, no Fiofioli – após a nossa chegada a bom porto…

Na circunstância, um porto fluvial, um sítio chamado Xime, sem qualquer tabuleta que o identificasse – um pontão acostável, uma guarnição militar a nível de companhia (com um destacamento no Enxalé, do outro lado do rio e da bolanha), três obuses Krupp, silenciosos mas ameaçadores, meia dúzia de casas de estilo colonial, de adobe e chapa de zinco, e mais umas escassas dezenas de cubatas de colmo, ruínas dum antigo posto administrativo, restos de uma comunidade mandinga, vestígios de um decadente entreposto comercial, cercados de holofotes, arame farpado, espaldões, valas, abrigos, a estrada cortando ao meio a tabanca e o aquartelamento, dois irmãos siameses condenados a viver e a morrer juntos…

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime> 1969: A LDG (Lancha de Desembarque Grande) 105 pronta a descarregar mais um contingente de tropas no cais do Xime, a caminho da Zona leste. Ou, como diz o fotógrafo, "LDG a abicar no cais do Xime em Novembro de 1969 com mais uma carga de carne para canhão".


© Humberto Reis (2005)


Todo o tráfego para a Zona Leste passava inevitavelmente pelo Xime, sendo o rio Geba (ou Xaianga) navegável até Bafatá, mas apenas por embarcações de pequeno calado, e mesmo era assim uma aventura devido ao risco de emboscadas especialmente no Mato Cão, no troço entre o Xime e Bambadinca quando o rio estreitava e se espraiava pela terra dentro, enroscando-se como uma cobra entre a bolanha e a floresta…

E como os cães (vadios) que se levam na carroça camarária, lá seguimos a caminho do matadouro ou de um outro qualquer destino cruel, para um sítio no mínimo desconhecido, que sabíamos apenas chamar-se Contuboel (2), algures no leste da Guiné, a meio caminho entre Bafatá e a fronteira norte, para aí formarmos companhia, transportados em estranhos camiões que habitualmente serviam para reboque de peças de artilharia – por ironia, chamados Matadores! - , entre alas de soldados, tugas, que faziam segurança nos flancos, bronzeados pelos trópicos, de lenços de pescoço garridos – tão garridos como o traje da minhota em dia de arraial, tão desconcertantemente garridos em contraste com o camuflado já comido do sol e da chuva - , alardeando a sua velhice, por gestos que revelavam um misto de paternalismo, sobranceiria, fanfarronice e inconsciência -, esforçando-se por asssinalar, a nós, pobres e assustados periquitos, o buracão da última mina, os vestígios da última emboscada, a curva fatídica onde, por detrás dos morros de baga-baga, a morte podia estar à nossa espreita, sob a forma do lendário Fernandes, antigo futebolista do Sporting de Bissau, de quem se dizia ser capaz de fazer saltar a cabeça dum tuga a 100 metros de distância com um único tiro certeiro de RGP… Pobres periquitos que engoliam todas as patranhas que lhes impingiam desde a chegada a Bissau, propagadas de esplanada em esplanada, do Bento ao Pelicano, como fogo atiçado ao capim…

Um arrepio de frio percorreu-me o corpo de alto a baixo. Instintivamente tirei os meus óculos, puxei a escassa gola do camuflado para o desguarnecido pescoço, enterrei o quico na cabeça e pus a patilha da G-3 no automático – quebrando assim, pela primeira vez, o juramento que a mim próprio fizera, ainda em Santa Margarida (3), de nunca mais pôr uma bala na câmara, depois do lamentável incidente com a velha mauser em que, durante um das brincadeiras estúpidas da IAO, no assalto a uma tenda de campanha do inimigo-a-fingir, havia arrancado os fundilhos das calças da farda nº 3 a um cabo miliciano, quase à queima roupa, com uma bala de madeira...

A meu lado, o pobre do Pastilhas (4) suava por todos os poros, à medida que o gigante da floresta verde abria os seus braços para nos deixar passar… A começar pelo nosso capitão, o afável capitão Brito, veterano da Índia, seguíamos todos tensos e calados, tentando disfarçar o natural nervosismo de quem entrava abruptamente no famoso TO (teatro de operações) da Guiné.

Pairava ainda na estrada Xime-Bambadinca o fantasma do furriel vagomestre do Xime que em Ponta Coli, antes de Amedalai, tinha por hábito desafiar impunemente o turra, insultando-o de cabrão e filha da puta para cima, turra esse que nós iríamos aprender a respeitar com a reverência temerosoa que é devida a todos os inimigos poderosos, armados ou não de RPG – até que um dia morreu com um tiro na nuca e a bela Helena de Bafatá nos braços (5).

… Amorosa Helena, pequena fula dengosa, ‘salva das garras do Islão’ (sic) por zelosos missionários católicos – mas não da faca da fanateca, que te extirpou, na festa do fanado, o clitóris – para se tornar o colchão de todas as camas, a Vénus negra de batalhões inteiros, a iniciadora sexual de mancebos que as sortes vieram arrancar às saias da mamã, a alegre e traquinas companheira de muitas farras de caserna, correndo nua e lasciva do regaço de tropas bêbedos que nem cachos, para o abrigo mais próximo quando às tantas da madrugada soava o canhão sem recuo!...

... Bela Helena de Bafatá que sabias pôr na ordem os arruaceiros paraquedistas de Galomaro que te batiam à porta a pontapé quando eu estava contigo, deitado na tua liteira, e me dispensavas pequenas gentilezas – um ronco de missangas, vermelhas, ou uma talhada de papaia que trazias do mercado – sempre que eu ia a Bafatá e procurava a tua companhia, na melhor das hipóteses, uma vez por mês, no dia de folga dos guerreiros… Tu e as tuas amigas de Bafatá que tanto trabalho deram que fazer ao competentíssimo furriel enfermeiro Martins, que nunca punha os pés fora da sua enfermaria e que eu duvido que alguma vez tenha ido a Bafatá, o nosso querido Pastilhas que vivia 24 horas dentro do arame farpado, trabalhando incansavelmente, de bata branca, em prol de uma Guiné Melhor, que nos aturou mil e um travessuras, partidas de mau gosto, brincadeiras estúpidas, bebedeiras de caixão à cova e sobretudo nos curou de alguns valentes esquentamentos…

… Destes e doutros males de amores, estás perdoada, Helena. Afinal, quem vai à guerra, dá e leva… Tu curavas-nos dos males da alma, o Pastilhas dos males do corpo… Entretanto, quando a guerra acabar, para mim e para os meus camaradas da CCAÇ 12, não terei tido tempo de te devolver a pulseira de missangas vermelhas nem de te dizer um 'Adeus, até sempre', um adeus sem regresso… Guardarei de ti a doce lembrança das tuas estridentes e saudáveis gargalhadas, do cheiro exótico do teu corpo, das tuas sagradas funções de sacerdotiza do amor em tempo de guerra… Imagino que a tua vida não tenha sido fácil depois da independência, se é que lá chegaste com vida e saúde… Nunca mais tive notícias tuas, mas hoje, revendo a minha primeira viagem, por terra, no interior da Guiné, do Xime até Contuboel onde me esperavam os meus queridos 'nharros', ao longo do interminável dia de 2 de Junho de 1969, o teu nome, o teu rosto e as tuas gargalhadas vieram-me à lembrança…

...Lembrei-te de ti em Ponta Coli, frente à vasta bolanha, agora seara inútil de capim alto, com o cadáver do furriel vagomestre nos braços; lembrei-te de ti e das minhas escapadelas a Bafatá… Também foste, à tua maneira, uma heroína daquela guerra, minha impossível amiga, separada pelos papéis que nos obrigaram a representar na tragicomédia da guerra colonial da Guiné… Daí figurares, contra a toda a ortodoxia (do teu povo fula, dos teus missionários católicos, dos 'tugas' que apenas queriam o teu corpo, dos revolucionários do PAIGC que não te terão perdoado o colaboracionismo com os colonialistas, para mais sendo tu conterrâneo do pai da Pátria, o Amílcar Cabral), daí figurares, dizia eu, na minha galeria de heróis e de heroínas… Com todo o direito, com o direito que ganharam as mulheres do teu país, ofendidas e humilhadas, violentadas pelo sistema, pela guerra, pela dominância dos machos, pelo imperativo da sobrevivência… Aceita esta pequena homenagem da minha parte, onde quer que estejas, na terra, no céu ou no inferno!


Continuando em coluna militar, atravessámos, a pé, a ponte do Rio Undunduma, parcialmente dinamitada uns dias antes, na noite de 28 de Maio, por ocasião do ataque, em força, à sede do comando do sector, em Bambadinca. Um grupo de combate (6) defendia desde então, dia e noite, aquele ponto sensível cuja destruição total significaria de imediato o fim das ligações terrestres com a Zona Leste (Bafatá e Gabu).

Estávamos, porém, longe de imaginar que, volvidos alguns meses, iríamos passar muitas noites e dias, intermináveis dias e noites, naquele morro triste e solitário, desmatado a motoserra, sobranceiro ao rio Undunduma, afluente do Geba, e à extensa bolanha de Samba Silate e Nhabijões, apanhando peixes à granada para matar a fome e o tédio, dormindo em valas protegidas por bidões de areia, tendo por tecto um pedaço de chapa de zinco e por companhia pequenos répteis esverdeados que nos divertiam com as suas acrobáticas flexões e a quem ficávamos gratos – se outros méritos não tivessem ! - pelo serviço de faxina que, todas as manhãs, nos prestavam, ao limparem-nos os fétidos colchões de espuma de toda a caterva de parasitas (7).

Luís Graça

Fonte: (Pre)texto: “Na Guiné, longe do Vietname” (inédito). © Luís Graça (1981-2005)(7)

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Notas de L.G.

(1) Vd post de 8 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LII: Antologia (2): A fábula do jagudi e do falcão

(2) Vd post de 28 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXXVI: No 'oásis de paz' de Contuboel (Junho de 1969)

(3) vd post de 24 de Junhod e 2005 > Guiné 69/71 - LXXX: A cerimónia de despedida no Campo Militar de Santa Margarida

(4) Alcunha do nosso furriel miliciano enfermeiro Martins... Um excelente profissional e um grande amigo!

(5) Na hitória do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), é referida, como actividade do IN em Maio de 1969, entre outras uma emboscada, em 15 de Maio, à 8h15, por um grupo de cerca de 20 elementos, com RPG e armas automáticas, durante 25 minutos, de que foram vítimas forças da CART 1746 (companhia sediada no Xime), no troço Xime-Amedalai, e que resultaram 4 feridos graves (incluindo um sargento), dois feridos ligeiros e danos em viatura. Duas horas antes, na estrada de Mansambo-Bambadinca, forças da CART 2339 (sediadasa em Mansambo) sofriam um emboscada de 25 minutos, sem consequências…

Dias antes, a 4 de Maio, pelas 7h30, no itinerário Dembataco-Amedalai tinha sido a vez de uma secção (reforçada) do Pelotão e Mílicias 105 sofreruma violenta emboscada, de 55 minutos, levada a cabo por um grupo IN de 30 elementos, com armas automáticas e LGFog de que resultaram um morto e um ferido grave (sargento de milícia), além da perda de um G-3 e de uma caixa de fardamento…

(6) Só agora fiquei a saber tratar-se do Grupo de Combate do Carlos Marques dos Santos, da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), tanto pelo seu relato neste blogue – vd post de 4 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIX: Os Solitários da CART 2339 na Ponte do Rio Undunduma e em Fá – como pela consulta da História do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (Capítulo II, página 87).

Fiquei também a saber que nessa mesma noite, já depois de chegarmos a Contuboel, sãos e salvos, “três grupos não estimados flagelaram (…) simultaneamente os destacamentos de Amedalai, Dembataco e Moricanhe, utilizadnod 7 canhões sem recuo, 8 morteiros 82, 13 lança-granadas foguete, metralhadora [pesada] 12.7, várias metralhadoras ligeiras e armas automáticas”, causando um morto e três feridos entre as milícias e um morto e quatro feridos entre os civis, além de danos materiais nas tabancas…

Muito provavelmente alguns elementos destes grupos ter-nos-ão visto, à distância, e acompanhado visualmente a progressão da nossa coluna, ao longo da estrada do Xime… Por sorte nesse dia o que estava planeado era um violentíssimo ataque a três destacamentos de milícias (o primeiro dos quais sito na estrada Xime-Bambadinca) e não propriamente uma emboscada, em força, aos periquitos que chegavam de Bissau… Uf, que sorte!...

(7) Vd. posts anteriores, de 13 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVIII: A galeria dos meus heróis (1): o Campanhã ; e de 14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau

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