12 abril 2006

Guiné 63/74 - DCXCVIII: Reflexão de Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63): recordar ou esquecer a Guiné ? E qual delas ?

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finte-Missirá > 1970 > O Humberto Reis e outros camaradas da CCAÇ 12 kexaminem o estado em que ficou a viatura (Unimog 404) em seguia o Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, quando accionou uam mina anticarro. O Pel Caç Nat 52 foi depois substituído pelo Pel Caç Nat 63, comandado pelo Alf Mil Cabral, até então destacado em Fá Mandinga.

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006).


Texto de Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71).



Caro Amigo, Companheiro e Camarada,

Atarefado pelo exercício de duas profissões exigentes [advogado e professor universitário], guardei um fim-de-semana inteiro para me pôr em dia, face à avalanche de material recordatório do teu/nosso blogue.

Fiel ao meu único propósito tertuliano – relato de vividos, gozados e ridículos episódios – a leitura de tantas e tão válidas intervenções tem-me porém obrigado a reflectir.

Reflectir sobre a guerra, mas talvez principalmente sobre nós próprios de então e de hoje. Porque lembramos o que lembramos? Que significou esse tempo nas nossas vidas? Sentimos saudades? Recordar ou esquecer a Guiné?

As nossas experiências foram diferentes. Cada um de nós, guardou uma memória única, de acordo com o meio onde esteve integrado e as características da própria personalidade (o Missirá do Beja Santos não foi o meu Missirá…)(1).

Tivesse eu pertencido a uma companhia, ou batalhão, e outras seriam as minhas lembranças…

Mas não, pertenci à tropa mais macaca de todas – um pelotão de caçadores nativos. Os meus soldados faziam a guerra desde o início. Muitos tinham mais de quarenta anos e viviam em companhia das mulheres, dos filhos, das cabras, das galinhas… Com eles qualquer quartel se transformava em Tabanca.

No meio, nós, os brancos, todos mobilizados em rendição individual, coexistindo sempre velhinhos e periquitos, encaixados como peças num puzzle já existente, caíamos de surpresa, sem qualquer preparação, num universo desconhecido.

Por mim, apresentei-me às 14 horas em Bambadinca, tendo o Alferes substituído partido às 18. Pelas 22 horas, o Comandante mandou-me sair para Ponta Coli [,na estrada Bambadinca-Xime], entre Amedalai e Xime] por via de uma qualquer flagelação. Lá fui atrás do pelotão apanhar invólucros.

Com esses homens vivi vinte e sete meses, em Destacamentos no meio do mato, sem energia eléctrica, comendo conservas… A maior parte dos meus amigos brancos foram soldados, o pastor transmontano, o vidreiro da Marinha Grande, o picheleiro do Porto, com os quais eu, jovem universitário, diletante antifascista, com pretensões intelectuais, conheci o Portugal real, da ignorância e da miséria.

Em Missirá habitavam cerca de 150 pessoas (população, milícias, mulheres, filhos e familiares). Comandante responsável, eu, pacífica criatura, cinéfilo militante, leitor de Ionesco (2), recitador de Prévert (3), escrevinhador de versos, sonhador de radiosos amanhãs que afinal nunca chegaram…

Claro que atravessei o espelho, e afundei-me no meio cultural envolvente, quando era suposto ser eu o colonizador…
- Alfero bem cume!- convidavam as mulheres que viviam no meu abrigo, e lá fazia eu uma bola de arroz que metia à boca.

- Alfero Cabral murri - choravam mães diante dos seus bebés mortos, aos quais tinham dado o meu nome.

Comi macaco, onça, cobra, crocodilo, mastiguei cola. Frequentei curandeiros e feiticeiros. Jejuei durante trinta dias, preparando-me para falar com os mortos. Ouvi estórias incríveis, mas também as contei.

Essa é a Guiné, que quero guardar na memória. E dessa gostei e gosto. Dos chefes militares, dos tiros, dos mortos que sofri, das minas que vi pisar, da angústia e do medo, dos crimes e da violência que presenciei, não falarei.

Por isso Amigo, continuarei a escrever estórias, convicto de que o humor também faz parte da História.


Grande, Grande Abraço

Jorge


PS1 – Falei muitas vezes com o senhor Teófilo. Penso que não era, nem Turra, nem Pide. Apenas um bom e lúcido Homem.

PS2 – Op Boga Destemida (4): é certo, também lá estive. Afinal na Guiné, não fui apenas consertador de catotas (5)…

PS3 – A estória que hoje remeto, não aconteceu na Guiné, mas sim em Lisboa. Ao longo de todos estes anos, constituiu sempre para mim uma alegria encontrar camaradas. Já deparei com alguns em péssimas situações. Doentes, presos, sem abrigo. A todos considero, dever solidariedade.

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Notas de L.G.

(1) Alferes Miliciano Beja Santos foi o comandante do Pel Caç Nat 52, estando estado nomeadamente em Missirá (1968/70).

(2) Eugène Ionesco (19003-1994), escritor francês,de origem romena, um dos maiores dramaturgos do Século XX (autor, por exemplo, de A Cantora Careca, 1949 ou o Rinoceronte, 1960).

(3)Jacques Prévert (1900-1977): Um dos mais notáveis e admirados poetas do Séc. XX, de língua francesa. O seu libvrod e poemas Paroles, editado em 1945, foi um verdadeiro best-seller pós-guerra. È também um dos meus poetas preferidos.

(4)Vd. pots de 9d e Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXVIII: Violenta emboscada em L (Op Boga Destemida, CCAÇ 12, CART 2520 e Pel Caç Nat 63, em Gundagué Beafada, Fevereiro de 1970)

(...) "A fim de bater a área do Baio/Buruntoni foi planeada a Op Boga Destemida em que tomaram parte 3 Gr Comb da CCAÇ 12 (Dest A) e forças da CART 2520, reforçadas com o Pel Caç Nat 63 (Dest B)" (...).

(5) Vd. post de 17 de Abril de 2005 > Guiné 63/74 - DCXXXIX: Estórias cabralianas (7): Alfero poi catota noba

(...) "Espalhada a minha fama, acorreram noivas de todo o lado. Ponderei mesmo montar um gabinete especializado, tendo chegado a escrever um folheto publicitário a informar que Alfero poi catota noba, dam trezbintim".

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