04 janeiro 2006

Guiné 63/74 - CDXVIII: Pensando... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) (José Teixeira)

Guiné > Ingoré (Cacheu) > Noite de São João > "Cá vai a marcha da tabanca"...

Os alegres dias de Ingoré, com o pessoal da CCAÇ 2381 em treino operacional antes de ser colocado no sul (Buba, Empada, região de Quínara))...
Apenas ensombrados pelo brutal episódio do 1º Cabo S... e do prisioneiro senegalês. Na foto, o enfermeiro Teixeira, de óculos, é o primeiro da direita


© José Teixeira (2005)


Texto, em duas partes, do José Teixeira, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 que esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Borbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 1970) (1).

Em Março de 2005, o Teixeira volta à Guiné-Bissau... por terra (Lisboa-Bissau). O que viu e sentiu nessas duas épocas diferentes (1968/70 e Março de 2005) é objecto deste texto ("Pensando...") que ele faz questão de partilhar connosco:


Pensando ... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) - I Parte (José Teixeira)

Arame farpado a rodear as tabancas (aldeias). Primeira fiada, segunda fiada. Garrafas vazias penduradas duas a duas para com o seu tilitar servir de aviso aos sentinelas nocturnas. Área capinada, armadilhas de fogo . . .. Recolhas ao interior da tabanca, ao pôr do Sol, silêncios...

As festas naturais da comunidade, momentos de alegria, convivências, partilha de amizades, como festas de nascimentos, casamentos, aniversários, convívios, tudo abafado no silêncio aterrador do medo.

Os ataques às tabancas, as correrias para os abrigos, o dormir com as crianças amarradas às costas para poder salvá-las ao mais pequeno sinal de perigo, os feridos, os mortos, as crianças a chorar...

As colunas sem fim, debaixo de sol abrasador, as emboscadas, as balas a assobiar por cima das nossas cabeças, as granadas com o característico som da saída da boca do canhão, que originava o grito: Aí estão eles !... e vida parava...

Saídas temerárias à bolanha (áreas de cultivo) para a labuta do ganha pão, nos arrozais, mancarrais, milheirais ou pesca, com medo de encontros desagradáveis. Os nacionalistas do PAIGC apelidados de Bandido, para os nativos (e Turras para a tropa branca), podiam surpreender com o Ágára ! ágára! é nosso ! (Agarra! Agarra!, que é nosso). Precisavam de alimentar as suas fileiras com combatentes, com transportadores e mão de obra para a produção de riqueza e sobretudo alimentos (trabalho nas bolanhas controladas). De nada servia dizer que tem família, tem minino prá cuidar.

Assim se vivia na Guiné que eu conheci.

O risco tornava-se maior se o encontro se dava com os tuga (tropa portuguesa), se esta os confundisse com bandido. Possivelmente de nada lhe serviria dizer amigo di tropa ou nem tempo teria para o fazer....

Recordo os dois jovens irmãos cuja captura testemunhei em Ingoré (2), suponho que para lá da fronteira, dentro do Senegal, numa das patrulhas que a minha Companhia fez. Recusaram-se ou não sabiam falar Português ou Crioulo, apenas francês que, julgo, ninguém do comando sabia o suficiente para os entender. O mais velho foi metido numa masmorra com a sua altura, dois metros de comprido por um de largo (vergonha nossa). Tinha apenas uma janela, com chapa em lugar de vidros, por onde entrou e depois se fechou.

Assim ficou no escuro alguns dias à espera de ser enviado para Bissau como turra. Apenas via a luz do sol, quando lhe levavam comida, duas vezes ao dia. Para as necessidades fisiológicas, um balde, que lhe possibilitava uns momentos de luz e ar ao ir despejá-lo à retrete, dia sim, dia não. Até que, cansado de tanto sofrer tentou a sua sorte. Quando lhe foram levar comida, atirou-lhes com o conteúdo do balde à cara. Era a última esperança. Liberdade ou morte. Esta vida, não... Foi barbaramente assassinado pelo Cabo S... com um tiro na boca, dentro da masmorra, momentos depois.

O Cabo S... regressou a Lisboa, passado um mês com a sua Companhia. Não houve processo, inquérito. Tudo tão natural. Aconteceu... Eu estava lá a cinco metros. Suponho que no relatório oficial da sua morte, se o houve, devia constar "morto ao tentar fugir".

O irmão, mais novo (17 anos), não cabia na masmorra. Ficou junto ao refeitório amarrado e guardado por dois soldados, até ir habitar o lugar que seu irmão deixou vago.

Tratei-o de um furúnculo que tinha no peito. Tive oportunidade de conversar algumas vezes com ele em francês. Criei alguma relação de amizade e cumplicidade. Continuei a visitá-lo a pretexto do tratamento. Nas conversas que tivemos confrontei-me com um jovem que tinha bases académicas avançadas para um jovem aldeão do interior da Guiné. As conversas que tivemos sobre vários temas, no meu parco francês confundiram-me.

Comecei por ver nele um possível IN que merecia ser tratado como pessoa, pois estava doente. Com o desenrolar dos contactos, comecei a gostar de conversar com ele. Foi como que uma realidade nova para os meus dois meses de Guiné, alguém que se afirma cidadão do Senegal, que rejeita a guerra e não sabe porque foi preso, pois ia para a sua bolanha no Senegal trabalhar com o irmão. Mas alguém que demonstra conhecimentos de geografia e história.

Isto tudo me leva hoje a acreditar na sua versão de estudante em Dakar – Senegal, a passar férias na aldeia. Foi ocupar a masmorra que o irmão deixara livre depois de ser assassinado. Acompanhei-o até à prisão. Despedimo-nos com um caloroso aperto de mão, como sempre o fazíamos quando a pretexto de "dar mezinho ao prisioneiro" o ia visitar. Uma lágrima teimosa percorreu a minha face, o coração comprimui-se. Não tive a coragem de lhe dizer o que aconteceu ao irmão.

No dia seguinte a masmorra estava aberta. Julgo que o levaram para Bissau para ser interrogado pela Pide.

Perdoem-me, os camaradas tertulianos, este relembrar de situações dolorosas que poderão incomodar. São marcas que ficaram e não se podem esconder, para que a verdadeira história se faça (3).

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)

(2) Ingoré: no norte, junto à fronteira com o Senegal, na estrada entre Sedengal e Bigene. Pertence à actual região do Cacheu.

(3) O Teixeira e eu decidimos não identificar o militar português aqui referido. Que fique claro: não era da CCAÇ 2381, era dos "velhinos". Chamámos-lhe apenas S..., que tanto pode ser Silva, como Santos, Sousa ou Silvestre.

Eis a mensagem que mandei ao autor:

"O cabo S... era da tua companhia ? É pseudónimo ? Estará ainda vivo ? Como vão reagir os teus camaradas da CCAÇ 2381 ? O que tu relatas é grave, mas o cabo tinha um furriel acima dele, o furriel um alferes, o alferes um capitão e pró aí fora... Acho bem que estas páginas negras da guerra vejam a luz do dia: julgo que muitos de nós nos comportámos com honra e dignidade, mas também tivemos camaradas que praticaram crimes de guerra e crimes contra a humanidade... O mesmo se terá passado no outro lado... Nem eles nem nós éramos meninos de coro... Louvo a tua coragem ao abordar este assunto delicado, mas não tens que pedir desculpa a ninguém: tu estavas lá. E como homem e como cristão, e até como português e como militar, não podias ficar indiferente...

"Temos,contudo, que ter algum cuidado com a identificação dos camaradas: o cabo S... era apenas uma peça da engrenagem, provavelmente um tipo a quem entregavam os trabalhos sujos... Se S... é pseudónimo temos que dizer isso... Se não é, temos que ver se ainda é fácil a sua identificação... Pode estar vivo, ter mulher e filhos... A solução é não identificar a companhia... Mas tu é que vês qual a melhor solução. O episódio deve ser factualmente relatado e comentado, como tu o fizeste, e bem".

Eis a resposta do José Teixeira:

"O 1º O Cabo S... era da companhia dos velhinhos que fomos substituir. Eu era periquito e não escrevi no Diário com medo de poder ser apanhado.

"Posso informar-te que não [fomos nós], um grupo da minha companhia que estava por perto, junto a mim, não lhe demos um tiro [ao 1º Cabo S...] porque foi logo protegido e afastado, mas houve quem chorasse de raiva.

"(...) Os colegas da CCAÇ 2381, se se lembrarem, concerteza que vão reflectir de novo sobre o assunto, que na altura nos dividiu. Uns diziam "era turra, teve o que merecia". Outros, como eu, interrrogavamo-nos e perguntavamos como se sabia se era turra ou não, dado que não falava português e [fora] capturado sem armas e longe da povoações nativas da Guiné, dentro do Senegal. Aliás, houve outra saída em que também entrámos no Senegal e depois tivemos de fugir a correr, porque o Alferes do meu grupo viu pessoas ao longe e mandou avançar para elas. O capitão mandou regressar ao grupo principal e ...(ouvi eu) disse:
- Você não sabe que estamos dentro do Senegal?! Vamos regressar já à base antes que haja sarilho.

"O Cabo S... acompanhava o soldado que levava comida ao prisioneiro. Iam desarmados, pois a janela estava alta e não era fácil sair.

Os dois apanharam com a penicada e o S... foi buscar a G-3 e disse mais ou menos isto:
- Não queres comer ? Vais comer de qualquer maneira!... - Apontou-lhe a arma à boca e disparou. Creio que o prisioneiro queria dizer qualquer coisa, mas ficou engasgado mortalmente com a bala.

"Pensas bem em não identificarmos a Companhia, que não sei qual era. Podes também [omitir o apelido do cabo], para evitar possíveis dissabores.

"Quanto às consequências possíveis, na altura para o Cabo, tudo foi abafado e fez-se constar que o abatido fora identificado como um perigoso turra.

"Claro que eu, simples cabito enfermeiro, não andava por dentro dos meandros do Comando, pelo que tudo o que possa dizer seria mera especulação. Apenas relato o que vi e senti.

"Há outros casos conhecidos e passados perto de mim, mas que não vivi, logo não posso nem devo falar deles".

1 comentário:

Anamargens disse...

Eu tive um tio na Guiné, marido e cunhado em Angola, irmão em Moçambique, na(s) Guerra(s).
Nunca vi nada. Pouco ouvi de relatos. Não esqueci.
E continuo a achar que não pode ser esquecido.
Aprecio que quem viveu deixe o seu testemunho.