18 janeiro 2006

Guiné 63/74 - CDLVII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (9): História e estórias

Guiné-Bissau > Xime > 2006 > Antigos tropas ao serviço dos tugas... Onde está a verdade do colaboraccionismo dos guinéus ? Onde ficou a mentira da missão civilizacional dos tugas ? Que diria hoje Amílcar Cabral, se fosse vivo, dos seus guerrilheiros que estão no poder ?
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)


Texto do Paulo Salgado:


Camaradas e Amigos:

Tenho andado muito ocupado com o trabalho. O meu bombolom ainda não tocou neste ano da graça (ou da desgraça?) de 2006. Há-de tocar e acerca do que está epigrafado.

Quero dizer-vos, companheiros de uma jornada que está gravada nas nossas cabeças (alguns nem sequer querem tocar no assunto, não esqueçais!), que foi a que fizemos durante quase dois anos (alguns mais, pois eram mal comportados), quero dizer-vos - escrevia - duas coisas muito simples e que para mim fazem muito sentido:

Primeira: aquela foi uma guerra feita de retalhos, de bocados, de solavancos, de conhecimentos muito parciais da realidade global, de ignorância do que se passava noutros pontos da retalhada Guiné. Por isso, a História, a fazer ou a construir, tem que basear-se em factos parciais, parcelarmente conhecidos e narrados com fidelidade ao que se passou. E quem a fizer, se não for um profundo admirador da Verdade (como se defende - e bem - nas palavras do Mário Dias), mas antes um oportunista amigo dos tostões que caem de editoras empenhadas em vender milhares de livros, então nunca se fará História. Será uma História inimiga da Verdade.

Guiné-Bissau > Xime > 2006 > Restos do cais por onde se entrava e saía da Zona Leste...

© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)


Guiné-Bissau > Xime > Ponte de Taliuará (?) > 2006 > É que é que esta imagem pode contribuir para a construção da História da Guerra Colonial na Guiné (Paulo Salgado) ?
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)

Segunda: Pedaços de estórias vividas por nós, em grupo, podem ser contadas de maneira diferente. Por vezes enviezada, não por sobranceria, não por melhor conhecer os factos, mas pela simples razão de que foram observadas em situações algo distintas mesmo que vividas simultaneamente: será aquilo a que poderíamos chamar o engajamento psicológico face a uma determinada situação. Poderia contar um caso que aconteceu com dois grupos de combate em acção conjunta (sob o comamdo do comandante de companhia), um dos quais comandado por mim, e que fazia a protecção ao outro que executou um golpe de mão (não interessa se teve êxito ou não...).

Pois bem: ainda num recente almoço de confraternização, reparei que aguns camaradas (valentes e amigos, claro) acusavam o grupo que eu comandava de que terá havido negligência na cobertura da sua retirada. Eu limitei-me a sorrir, apesar de o MM tentar contar as coisas de outra maneira - afinal aquela que nós pensávamos ser a verdadeira e que parece ainda hoje - porque estávamos em posições diferentes no mato, porque os turras também sabiam actuar, etc.

Na verdade, a acusação era a de que deixámos passar o IN para ir ter com eles e fazer fogo, o que aconteceu, de facto; ao que nós ripostámos: nada disso é verdade, o IN preferiu atacar o grupos que se retirava e ná se mostrou ao grupo que fazia a protecção...coiasas de táctica...que eles conheciam bem...

Como vedes, esta estória pôde ser contada pelo menos de duas maneiras. Por isso, tenho alguma relutância em falar da História, preferindo contar pedaços vividos: nas casernas, nos patrulhamentos, nas emboscadas, nos contactos com a população, na ternura dos olhos sorridentes dos meninos e meninas, no encanto das bajudas, nas conversas com os homens grandes, na chegada do avião com as cartas e aerogramas, nas batucadas, nas fugas para as valas - e no que isso trouxe de engrandecimento ou de empobrecimento, de solidariedade ou de desconfiança, de amizade ou de reacção negativa. Aí, de certeza, que estaremos de acordo.

O que não poderemos nunca, Amigos, é deixar-nos entusiasmar pelos nossos sucessos, nem permitir que construam uma História falsa. Nunca. Por isso, creio bem, só quem estiver preparado cientificamente, e tiver sabido contar o que viveu localmente, ou saber interpretar o que foi contado, merece trabalhar na construção da História da Guerra Colonial na Guiné.

Viva a verdade dos factos.

Bissau, Paulo Salgado

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