15 janeiro 2006

Guíné 63/74 - CDLII: Tio (Albano) e sobrinha (Sandra) 'apanhados pelo clima'

Mensagem do Albano Costa (ex-combatente da CCAÇ 4150, Guidaje, 1973/74>)

Caros amigos tertulianos e demais bloguistas em geral, eu ao tomar esta iniciativa de escrever estas letrinhas gostaria de deixar bem claro que é a minha e só a minha opinião.

Quando eu resolvi ir à Guiné em Novembro de 2000 não foi fácil a minha decisão!...
Pedi opinião a pessoas que já lá tinha ido, porque a ideia que eu tinha era sempre a mesma!... A zona onde a minha CCAÇ 4150 esteve era uma zona muito complicada, assim como todas, mal se saía fora do arame farpada era logo porrada!...

Guiné-Bissau > Novembro de 2000 > Albano Costa, reodeado de novos amigos, fazendo um pausa, a caminho do Chugué...
© Albano Costa (2006)


E eu vivi muitos anos com esse pensamento, e actualmente continuo a sentir que a grande maioria dos ex-combatente ainda pensa como eu pensava!... Eu compreendo, não é fácil esquecer!... Aliás, nunca mais esquece!... E ao ler estes testemunhos, aqui reproduzidos no blogue, dá para uma pessoa entender como ao fim de 30/40 anos - o tempo que vai da nossa passagem pela Guiné - , os relatos são como tudo isso ainda se tivesse passado hoje!...

Guiné-Bissau > Novembro de 2000 > Os novos expedicionários, a caminho de Bedanda... Como podem ver, as picadas não mudaram muito... © Albano Costa (2006)


Ainda dá para imaginar que os ex-combatentes julgam a Guiné na mesma. Mas, não!... Não está na mesma, a Guiné é um país realmente muito pobre, mas tem toda a segurança para quem o quiser visitar e há uma coisa que tem e que é muito rica, as pessoas, essas que na altura nós chamava-mos turras e eles a nós tugas, hoje chamam-nos como muitos guineenses me chamaram:
- Somos irmãos, a diferença é só na pele, o sangue é o mesmo. - Afinal foram 500 anos de história.

Gostaria de ver a Guiné mais desenvolvida e esse mesmo desenvolvimento é pena que não se esteja a ser feito através do turismo, esse turismo que tinha nos ex-combatentes uma grande massa humana, era só o governo pensar um pouco mais no investimento, mas não demorar muito tempo porque se não os ex-combatentes vão envelhecendo e então aí torna-se mais difícil. Como alguém bem recentemente escrevia no blogue aquilo que eu digo neste momento:
- Julgei que ia à Guiné e esquecia, mas teve o efeito contrário, ficou a vontade de lá voltar sempre. - É o que acontece comigo.

Em 2004, uma minha sobrinha que faz parte um grupo de jovens universitários que fazem voluntariado social e se dedicam a missões humanitárias (GASPorto -Grupo Acção Social do Porto) veio-me perguntar se conhecia alguma missão na Guiné. Eles queriam fazer acção social naquele país durante dois meses. Prontifiquei-me logo a ajudar, eles lá foram, alguns com mais coragem que outros e algumas famílias um pouco na expectativa... Mas lá foram e o que fizeram foi muito bonito. Adoraram principalmente aquele povo. Eu vou transcrever as cartas que a Sónia me escreveu, com a devida autorização da autora:

Primeira carta, em 25 Agosto 2004

Oi familiazinha, isto aqui é mesmo um sonho, Moçambique é bonito, tem uma beleza mágica, mas a Guiné não fica nada atrás. A verdura é magnífica, as paisagens são uma coisa que só visto. O tio tinha razão, é um país com uma beleza enorme.

Bissau é esta confusão, parece o Porto, sempre com muito pessoal, até trânsito temos, o que torna tudo engraçado. O mercado de Bandim é aquela coisa cheia de pessoas, passando na rua só se vê cabeças.

Guiné-Bissau > 2004 > A Sónia e o Nuno num toca-toca (táxi colectivo)... Uma experiência que os jovens em Portugal não podem ter... © Albano Costa (2006)


Os toca-toca são muito porreiros, há sempre lugar para mais dois, cabe sempre mais alguém.

As pessoas são muito simpáticas, sempre com um sorriso nos lábios e as crianças, essas são um doce com o seu sorriso.

O ano passado gostei muito de estar em Macia (Moçambique) e tive pena de não ir para lá este ano, mas agora que cá estou também estou a adorar.

O nosso trabalho, apostamos muito na educação, as crianças estão de férias nesta altura do ano, mas nós criamos aulas de recuperação e elas aparecem, damos a primária do 5.º ano ao 8.º ano, isto em Nhoma e em Nhacra [a nordeste de Bissau]. Temos muitos miúdos, principalmente na escola primária.

A nossa grande dificuldade é o crioulo, os mais pequenos não entendem o português. Apenas se fala português dentro da sala de aula e só quando vão para a escola, mas aos poucos vamos conseguindo.

A nível de saúde o projecto é mais para realizar em Portugal, vamos ver se o Hospital Santos Silva [, de Gaia, ]nos quer ajudar com algum material básico.

Locais que já conheço, fomos este fim-de-semana a Varela, não sei se o tio conhece, é na região da beira mar, perto de Cabo Roxo, quase a chegar ao Senegal. A praia é uma praia selvagem, sem qualquer mão do homem, é natural. A viagem de lá foi um sonho, é um bocado longe mas valeu a pena. O Padre Eugénio levou-nos de carro até Safim e depois fomos com um casal português que o Nuno conhece. Fomos de carro até lá, passámos por Buba e fomos até Cacheu, lá atravessamos de jangada até ao outro lado e aí passámos 7 horas de picada pelo meio da natureza.

Os buracos, os saltinhos e toda a paisagem tem um encanto magnífico. Quando chegámos já era noite, pelo caminho o senhor Fernando foi a caçar uns pássaros e pelo caminho o jipe dele teve um furo no pneu, e rapidamente do meio do nada apareceu logo quem nos ajudasse. A casa era um filme, não tínhamos luz, a casa tinha alguns bichinhos, na jardim tínhamos que ter cuidado porque às vezes há cobras, mas tudo isto faz parte da Guiné e sem estes bichinhos não era a Guiné.

O tempo é muito quente, é mesmo muito quente. Há dias em que o calor é mesmo insuportável, mas aos poucos nós habituamo-nos.

Mais novidades tenho mas não posso escrever tudo só na primeira carta, vou escrevendo para a família e assim vão sabendo como estão as coisas por aqui.
Obrigado por todo o apoio que me deram e por me terem ajudado.

Beijinhos para todos, e só mais uma coisa, as mangas são uma delícia, é um fruto mesmo bom. Sabe tão bem comer uma manga e saborear aquele paladar. Quando for para Portugal vão deixar muitas saudades.

Agora despeço-me mesmo, as prximas aventuras seram escritas futuramente.Beijinho grande para todos.

Sandra Neves - a guineense 2004.




Segunda carta, em 18 de Setembro 2004

Olá,tio.

Imagine onde estou? Vou descrever para ver se consegue adivinhar.

Tenho umas casinhas redondas, umas palhotas onde vou dormir esta noite. Neste momento estou sentada numa cadeira de palha, ao ar livre debaixo de um telhado de palha a ouvir a natureza. Da parte da tarde tive a tomar banho numa água límpida e quente, no final da tarde não havia água, podiamos atravessar a pé para o outro lado. Ah, e estou na companhia de um senhor muito simpático. Já sabe aonde estou, sim no clube Fo noya, em Buba. Isto aqui é muito bonito, esta natureza que transmite tanta paz, uma beleza pura, sem a mão do homem.

Antes de cá chegarmos passamos pelo Saltinho, parámos na ponte onde estivémos a ouvir e ver aquela queda de água, onde a água tem aquela força e beleza que só quem vê sabe do que estou a falar. O Sr. Baldé disse que o tio esteve lá quando aqui esteve, tirei fotos e quando chegar vamos ter muito que falar.

Ontem ficámos a dormir em Gabu [antiga Nova Lamego, no nordeste], e fomos jantar a um restaurante onde cantámos, dançámos e as pessoas foram tão queridas que hoje famos lá tomar o pequeno almoço. Como é possível alguém dar tanto carinho a um grupo de jovens portugueses que nunca viu!... Sentimo-nos em casa. Quando saimos de lá, o Nuno canta uma canção à Dona do restaurante e ela até ficou com os olhos com água, são tão queridos. O tio tinha razão, este povo é muito acolhedor e aqui nada nos falta porque as pessoas fazem por isso, o carinho que nos dão faz esquecer muitas coisas.

Hoje passamos por Bafatá, Bambadinca e apesar de muitas casas estarem destruidas e de as coisas precisarem de uma mãozinha há sempre aquela beleza.

Vou contar um segredo: quando se levantou a ideia na direcção do GASPorto em eu vir para a Guiné, tive pena de não ir novamente para Macia - Moçambique, mas não estou nem um bocadinho arrependida, a nossa família deixou de ter dois apaixonados pela Guiné e passou a ter três apaixonados pela Guiné.

E quando chegar quero contar-lhe o nosso trabalho aqui e os nossos projectos de futuro, e no que estiver dependente de nós temos muitos projectos e ideias para o futuro e apostamos num projecto para continuar. Não sei se os meus pais já comentaram mas um dos nossos projectos são os pais adoptivos à distância e já levamos connosco algumas crianças que precisam de pais, elas são tão queridas e merecem ser felizes.

Tio, agora compreendo o seu brilho nos olhos quando fala da Guiné, deste povo, destas crianças. Vamos ter mesmo muito que falar.

Guiné-Bissau > Guidaje > Novembro de 2000 > O Hugo Costa, o repórter de serviço, filho do Albano, na hora da despedida... © Albano Costa (2005)


Estou a 5 semanas de trabalho, e já dói cá dentro pensar na despedida: com estes quase dois meses com este povo, a despedida custa muito.

Na última semana vou às ilhas e depois e depois relato como é a sua beleza.

Beijinhos para todos. Gosto muito de todos vocês. Obrigado por todo o apoio que me deram. Até breve

Sandra Neves
(a menina apaixonada pela Guiné).


Isto é mais um testemunho do que é a Guiné dos tempos modernos. Que pena eu tenho de os seus governantes não olharem um pouco mais para a parte turística, que ajudava a desenvolver mais a nossa Guiné-Bissau.

Albano Costa
(... com um brilhozinho nos olhos. LG)

Comentário de L.G.:

Albano: Bonito texto este!... Temos que convidar a Sandra, que é enfermeira (e que até gostaria de trabalhar, uns tempos, no Hospital Nacional Simão Mendes - atenção, Paulo Salgado, aí em Bissau!) para entrar para a nossa tertúlia... Uma moça de grande sensibilidade e generosidade. Parabéns, tio!

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