Guiné > Ilha do Como > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) > O Mário Dias é o único dos membros da nossa tertúlia que pode dizer: "Eu estava lá"...
© Mário Dias (2005)
Recomenda-se a leitura (e a divulgação) deste post do Mário Dias: é uma intervenção serena mas corajosa, que serve de exemplo para todos nós... Para que a história (a pequena e a grande) não seja falsificada, intencionalmente ou não, por motivos ideológicos, políticos ou outros... Essa é uma obrigação que nos compete a todos nós, ex-combatentes, a de zelar pela verdade dos factos... Porque nós estivemos lá! O Mário, esse, esteve mesmo no Como, de Janeiro a Março de 1964...
De qualquer modo, também seria interessante ver, noutra ocasião, o que é o PAIGC e os seus apoiantes e simpatizantes (no estrangeiro) disseram sobre a batalha da Ilha do Como e as "regiões libertadas"... É evidente que, de um lado e de outro, também se travava a batalha da propaganda, a batalha das ideias (que são muito mais eficazes do que as balas)... O PAIGC conseguiu muitos apoios (incluindo de países ocidentais, como a Suécia) através de uma excelente trabalho de informação e contra-informação...
Por outro lado, a verdade é que nós estavamos do lado errado da História... A culpa não foi nossa, dos nossos valorosos combatentes, mas sim da incapacidade política dos nossos dirigentes (que nem sequer eram democráticos, escolhidos por nós, pelo nosso povo...). Isso não nos impede de repormos a verdade dos factos, como o Mário Dias aqui faz (e bem), quando se trata da actividade operacional de que fomos actores ou testemunhas!... L.G.
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Texto do Mário Dias (ex-sargento comando, Brá, 1963/66)
Ainda sobre a Operação Tridente (Ilha do Como, Janeiro a Março de 1964): O porquê da divergência de opiniões (*)
1. Como se devem recordar, a minha intervenção neste blogue acerca da Op Tridente, realizada na ilha do Como de 14 Janeiro a 24 Março de 1964, foi uma tentativa de esclarecer o que ali se passou. Relatei a verdade dos factos, tal como por mim foram vistos e vividos.
As dúvidas e versões contraditórias devem-se ao mau serviço de alguns escritores que vêm - com as suas descrições onde nem conseguem disfarçar opiniões pessoais de índole política ou ideológica - tentando escrever a história que corresponda “à sua história”.
Infelizmente, muitos dos livros publicados sobre a Guerra do Ultramar estão cheios de imprecisões, casuais ou premeditadas, disso resultando uma falsa avaliação por parte de quem não assistiu aos factos e deles tem conhecimento apenas através de tais publicações.
A comprovar esta minha afirmação, transcrevo um texto extraído do livro Os Anos da Guerra da autoria de João Melo e publicado pelo Círculo de Leitores.
Trata-se de uma antologia que engloba diversos autores que abordaram o tema. No Vol. II do referido livro (pags. 145 e 146) pode ler-se a descrição da Batalha da Ilha do Como, na perspectiva do autor do livro Os Mortos de Pidjiguiti, José Martins Garcia (**), que foi oficial de transmissões na Guiné em 1967 (As chamadas são de minha autoria):
Em Catió, onde os ataques nocturnos foram, por alguns anos, relativamente escassos, ouviam-se muito bem os rebentamentos das morteiradas vizinhas, desferidas contra Bedanda, Cachil, Ganjola e, mais raramente, Príame, onde João Bakar Jaló, senhor de muita mancarra e de sete mulheres, valia, com a milícia fula, por um inteiro exército, conhecedor como era do mato, dos atalhos, dos costumes e manhas do inimigo.
Com o tempo, a guarnição de Catió acabou por reduzir-se a proporções mais aceitáveis: uma CCS burocratizada, visto ali continuar a sede do batalhão; uma companhia de intervenção; dois pelotões independentes, um de artilharia e outro de cavalaria. Mas, antes de a estratégia estabilizar nesta aparente razoável força, dali partira a mais desgraçada expedição dos tempos modernos do colonialismo português (1). A qual expedição, se não ganhou as proporções da batalha de Alcácer Quibir, nem por isso deixou de ficar pairando na imaginação estarrecida dos vindouros.
O ataque à ilha do Como, onde posteriormente se instalaria a chamada companhia do Cachil, nunca foi registado por cronistas, talvez porque estes, sempre tão eloquentes em caso de vitória, se desgostam das estrondosas derrocadas (2). Uma escassa tradição oral conservava, nessas paragens, quando ainda portuguesas, o eco tragicómico da negativa proeza. O transmontano Barreiros, que fora o primeiro europeu a abrir um comércio em Catió, uns vinte anos antes da eclosão da guerrilha, descrevia cautelosamente alguns pormenores do desastre, mas sem respeitar a cronologia(3). Invariavelmente, levava as mãos à cabeça e garantia:
- Foi um horror! Um horror!
O Barreiros era homem arreigado àquela terra, conhecedor de muitas trapaças e, graças ao destino, suspeito aos olhos de todos. Dos cabo-verdianos, por ser branco. Dos militares por ser comerciante, necessariamente ligado a muita gente da zona. Do pide, por falar ao administrador. Do administrador, por tagarelar com militares. Tantas e tão variadas suspeitas o perseguiam que, quando o autor destas linhas lhe dirigiu a palavra, o Barreiros não abriu a boca senão depois de esclarecido:
- Sou primo do tenente Dutra.
- Tome cuidado! - avisou. - Ele tinha a cabeça a prémio.
Nenhum pormenor, porém, quanto à natureza e à fonte de semelhante informação. O Barreiros, magro, nervoso, baixote, possuía mãos de ferro, uns gadanhos onde circulava uma força misteriosa. Se fechava a pata sobre o pulso dum homem normal, não havia meio de uma pessoa se libertar daquele apertão metálico. Ali, com mulher e três filhos miúdos (os mais velhos estudavam em Bissau), jurava pelo Deus dos brancos não abandonar um palmo do que lhe pertencia. Mas a tropa resmungava que o Barreiros era má rês e pagava tributo ao PAIGC, pois já então não se sabia quem viria a mandar no amanhã.
O “horror” que frequentemente lhe suspendia a narrativa aplicava-se à inépcia das Forças Armadas Portuguesas e ao desconcerto do mundo em geral. Por causa desse desconcerto, os “turras” raptavam-lhe os criados e estragavam-lhe a vianda e a mancarra. Aquela ideia militar de invadir a ilha do Como afigurava-se-lhe, todavia, o pior sinal dos tempos. Gente louca, gente desalmada, incapaz de perceber que a arte da guerra se havia modificado! Setenta baixas em poucas horas (4) - tal fora o balanço aproximado da estratégia estúpida desse senhores fardados!
A Força Aérea cumpriu o seu dever, descarregando sobre os objectivos o arsenal estipulado. Para nada! Os abrigos subterrâneos da ilha de Como, construídos, dizia-se, pelos soldados de Hitler, em certa fase da Segunda Guerra Mundial, resistiam bem a qualquer bombardeamento, não só devido à cortina natural da vegetação como pela existência do material, coisa alemã, coisa inexpugnável, ali mandada cavar pelo Hitler, que não era tão cretino na guerra como alguma da nossa tropa (5).
- Foi um horror! Um horror!
Depois da Força Aérea, coube a vez à artilharia, ali classicamente postada para cobrir o avanço da cavalaria. A artilharia cumpriu a sua missão, despejando sobre a ilha sinistra a quantidade estipulada de material ardente, sem grande precisão, aliás, pois o alvo flutuava nessa latitude onde as marés esticam e encurtam a terra em vários milhares de quilómetros quadrados. A cavalaria entrou nas lanchas da Marinha e, sob a protecção da artilharia, escorregou para o lamaçal desconhecido. A infantaria, finalmente chamada a reconquistar com o seu pé clássico o terreno rebelde, saltou no vazio, atolou-se, afundou-se, emaranhou-se e alguns dos nossos mais bravos soldados crucificaram-se a si mesmos no matagal (6).
E então o inimigo invisível foi abatendo misericordiosamente os feridos, enquanto a Marinha dava por cumprida a delicada missão, a artilharia cessava a sua actuação segundo bem conhecidas regras e a cavalaria jazia em veículos inoperantes (7). Havia muito que a Força Aérea despejara seus inócuos carregamentos, pois a noite caíra, repentina, e só os moribundos, sem cronista de serviço, se esvaíam sobre a lama que o tempo não guardou.
- Foi um horror! Um horror!
Dois anos depois, o Exército português instalou-se finalmente na ilha de Como, ao nível de companhia. Mas sem espaventos. Mansamente, o menos ruidosamente possível, sem apoio aéreo, sem artilharia nem cavalaria. Uma simples companhia de caçadores desembarcou em pleno dia no recanto da ilha chamado Cachil e aí cavou humildemente seus abrigos, sob os pilões gigantescos, rezando esperanças a quatro metralhadoras pesadas, dispostas segunda uma problemática rosa-do-ventos, rodeando o todo com arame farpado e entregando o futuro a algum milagre político (8).
Em toda esta intrigante aventura, houve sempre uma coisa que ninguém compreendeu: a função. Que faziam cento e tal homens na ilha de Como, encurralados entre o canal barrento, que os separava do continente incerto da Guiné, e a vegetação ameaçadora da ilha por entre a qual ninguém ousava dar passada? (9) Nem civis, nem militares, nem preto, branco ou mestiço sabiam responder a tamanha enormidade. E o Barreiros, há vinte anos ciente das Áfricas e dos abrigos edificados pelos soldados de Hitler, só respondia cuspinhando desprezo:
- Ora! Estratégia!...
O Cachil erguera-se, porém, nas imaginações. No passado recente, quando o surdo tenente-coronel Barreiros comandava o batalhão de Catió, a ameaça que mais insistentemente se lhe desprendia da boca era:
- Olha lá, ó militar! Queres ir prò Cachil?..."
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Alguns dos "sobreviventes" da batalha do Como (Op Tridente, de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964)... Entre eles, está o autor deste post (o segundo, a contar da direita).
© Mário Dias (2005).
2. Confesso que vai ser um pouco difícil conter os meus comentários ao texto acima transcrito dentro de limites correctos e educados. Na verdade, a tentativa de alterar a verdade histórica dos acontecimentos e a manipulação ideológica é tal que, para usar o adjectivo mais suave que me ocorre, só posso dizer que este texto é nojento.
Vejamos, ponto por ponto, o que tenho a rebater:
(1)Não foi de Catió que partiu a principal força de desembarque que actuou na ilha do Como. Tal força partiu de Bissau, conforme por mim já narrado. De Catió apenas houve algum apoio de artilharia na altura do desembarque e a participação de uma centena de homens, no máximo, o que não é relevante num universo de 1200 homens participantes na operação.
É, portanto, falso ter sido Catió o ponto de partida para a operação que reconquistou a ilha do Como.
(2) Diz o autor que o ataque à ilha do Como “nunca foi registado por cronistas”. Falso. Vários o fizeram e, entre eles, destaco Armor Pires Mota que nele participou como alferes miliciano do BCAV 490 (***).
O que na verdade acontece é que, para certos escritores-historiadores, há uma clara tentativa de manipular a opinião pública divulgando apenas os autores cujos escritos são favoráveis à sua ideologia. E a prova do que afirmo está contida no prefácio da citada antologia “Os Anos da Guerra”, de João Melo. Aí se podem ler referências como “…os nossos primeiros teóricos de uma literatura de guerra serem pessoas ideologicamente próximas do salazarismo…” ; “…resposta aos panegíricos dos cronistas patrióticos de então, em cujo rumo embarcaram autores como Armor Pires Mota, Reis Ventura e outros.”
Nenhum desses “teóricos” ou “patrióticos” foram incluídos na referida antologia que transcreve obras de 43 autores.
(3) O autor põe na boca do tal comerciante Barreiros, de Catió, a narração dos acontecimentos. Acontece que eu, também residente na Guiné desde 1952 e, apesar dos brancos se conhecerem quase todos uns aos outros, pelo menos de nome, nunca ouvi falar no tal Barreiros. Acresce ainda o facto de entre 1960 e 1962 eu ter trabalhado no Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e Indústria da Província da Guiné para onde, anualmente, todos os comerciantes obrigatoriamente enviavam um mapa com a situação de todos os seus empregados, incluindo aqueles que os não tinham que enviavam uma declaração negativa. Pois não me recordo de tal nome. Pensando tratar-se de um natural lapso de memória, perguntei recentemente a algumas pessoas que também por lá andaram nessa época mas ninguém se recorda de tal pessoa.
(4) As setenta baixas em poucas horas, são pura fantasia. Primeiro: não houve setenta baixas mas sim 8 mortos e 29 feridos, tal como consta no respectivo relatório de operações. Todos os que andaram pela guerra do [ Ultramar ] sabem que, se, por um lado, era possível algum exagero na contabilização dos mortos do inimigo, por outro não se podiam esconder ou ignorar as baixas das nossas tropas.
Segundo: a operação não durou “poucas horas” mas sim 72 dias.
(5) Este parágrafo só pode ser classificado como anedótico. Não havia abrigos subterrâneos na ilha nem nunca os soldados de Hitler lá estiveram durante e segunda guerra mundial. Que um fantasioso e quiçá ignorante comerciante (o tal Barreiros) afirmasse tal dislate, poder-se-á desculpar. O que é estranho é que um indivíduo que foi oficial de transmissões não tenha os conhecimentos suficientes de história para saber que nunca na Guiné houve a presença do exército alemão. Estranho. Muito estranho. É o mínimo que se pode dizer.
(6) Descrição romanceada. Parece o guião de um filme épico.
(7) E continua a fantasia: “… e a cavalaria jazia em veículos inoperantes.” O único veículo que existia na ilha do Como durante a Op Tridente era um jipe que nunca saiu da base logística. A cavalaria, que profusamente é citada, actuava como tropa de infantaria o que, aliás, era também comum aos batalhões de artilharia. Como todos sabemos, a designação de BCAV e de BART era dada por essas unidades terem sido mobilizadas pelas respectivas armas. Porém, na prática, todos actuavam como tropa de infantaria.
(8) Após o final da operação Tridente (Março de 1964) ficou instalada em Cachil uma companhia, conforme relatei, e não dois anos mais tarde como refere o autor do texto em apreciação. Aliás, um dos objectivos da Op Tridente era precisamente a instalação de uma companhia em Cachil, o que foi conseguido, ficando lá a CCAÇ 557, até Outubro de 1964, que foi substituída nessa data pela CCAÇ 728 (Fonte: Resenha Histórica -Militar das Campanhas de África (1961-1973) do EME - 3º volume). Carece portanto de fundamento a afirmação de que só passados 2 anos após a Op Tridente se tenha instalado uma companhia em Cachil.
(9) Aqui reside o cerne da questão. É que, se a partir da última fase da operação era possível às nossas tropas patrulharem e “ousarem dar passadas na vegetação ameaçadora da ilha” sem grandes percalços e apenas com esporádicos e fugidios contactos por parte dos guerrilheiros, o que ficaram lá a fazer os cento e tal homens da Companhia de Cachil? Estou em crer que se remeteram à relativa segurança do seu “forte estilo far-west”, aí aguardando calmamente pela rendição. Os guerrilheiros agradeceram.
Além do já comentado, não posso deixar de revelar a minha estranheza por frases pouco elegantes como “estrondosa derrocada” ou “eco tragicómico da negativa proeza”. Aceito que nem todos os militares que passaram pela guerra na Guiné e noutros territórios o fizessem com a convicção e empenho que o regime de então exigia. Porém, custa-me entender que a diferença de opiniões justifique este humilhar dos seus irmãos de armas.
E por aqui me fico no respeitante ao texto acima transcrito.
3. Mas há outros autores com afirmações pouco exactas. José Freire Antunes em “A Guerra de África” (Círculo de Leitores), Volume I, pag. 36 diz:
1964 Fevereiro - Março - Os rebeldes do PAIGC mantêm em seu poder a ilha de Como, não obstante a severidade dos ataques portugueses. É um primeiro embate, revelador da forte estruturação da guerrilha e da eficaz mentalização ideológica ditada por Cabral. A Guiné torna-se progressivamente o nosso mini-Vietname.
Comentário: Precisamente na data indicada, Fevereiro-Março de 1964, estava em curso a Op Tridente com várias unidades do exército e dos fuzileiros instaladas em diversos locais da ilha. Mesmo depois da retirada das tropas, concluída que foi a operação, lá ficou instalada uma companhia em Cachil (CCAÇ 557). Que “posse” por parte do PAIG era esta? Porquê então Nino Vieira dirigiu aos seus homens a angustiante mensagem transcrita na narrativa dos acontecimentos da ilha de Como que publiquei no Blogue-fora-nada ? A que fonte foi o historiador José Freire Antunes beber esta notícia?
É uma grande responsabilidade escrever sobre factos históricos pois esses escritos ficam a constituir uma referência para futuros estudiosos e pesquisadores.
Assim, por exemplo, Raquel Varela, finalista de História Moderna Contemporânea do ISCTE, em “O assassinato de Amílcar Cabral” no livro “Factos desconhecidos da História de Portugal” (Selecções do Reader’s Digest), produz uma afirmação muito semelhante.
Espero ter contribuído para esclarecer as dúvidas que pairam à volta da Operação Tridente e que cada um conclua sobre os seus resultados.
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Notas de L.G.
(*) Vd posts anteriores do Mário Dias:
17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)
15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXX: Histórias do Como (Mário Dias)
15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)
17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)
(**) Este texto do José Martins Garcia é extraído do seu livro contos Morrer Devagar (Lisboa: Arcádia, 1979). O título do conto é "As suspeitas de um bravo capitão". Não é propriamente um trabalho historiográfico, mas sim ficcional (ou entre a crónica e a ficção).
Julgo que a intenção deste prestigiado intelectual açoreano não foi propriamente "falsificar a história", mas antes dar uma ideia do clima que se vivia na época em que ele, professor do ensino secundário da Horta, Açores, foi chamado a cumprir o serviço militar - como todos nós - e, de seguida, mobilizado para a Guiné.
Não sei onde é que ele esteve. Possivelmente em Catió, no sul. Lá terá recolhido memórias da famosa Op Tridente. Repare-se que ele esteve na Guiné entre 1966/68. O Mário Dias também lhe atribui, por lapso, a autoria do livro Os mortos de Pidjiguiti (título de um poema de Fernando Grade, in O Vinho dos Mortos, 1977).
Curiosamente, fui folhear o livro em questão (O II Volume de Os Anos da Guerra: 1961-1975- Os portugueses em África: crónica, ficção e história; ed. lit. João de Melo.Círculo de Leitores, 1988) e constato que foram utilizadas, abusivamente, sem respeito pelos direiros de autor (nem citação da fonte) algumas fotos que eu tinha emprestado ao jornalista Afonso Praça (1939-2001) e que foram publicadas no semanário O Jornal, no princípio de década de 1980, aquando da abertura do dossiê "Memórias da Guerra Colonial"... Esse famoso dossiê foi alimentado, tal como este blogue, pelos contributos (estórias, documentos, fotos) de largas dezenas de ex-camaradas nossos, que estiveram nas três frentes (Angola, Moçambique e Guiné).
As supracitadas fotos, por sua vez, tinham-me sido emprestadas pelo Tony Levezinho, ex-camarada meu da CCAÇ 12 e membro (discreto) da nossa tertúlia !... Ver páginas 146-147 (O Tony no espaldão da metralahadora pesada Browning, em Bambadinca, 1969); 135 (o Tony e o Alf Mil Carlão numa tabanca em autodefesa, que já não consigo identificar, talvez Satecuta, em 1969); 129 (O Tony e creio que o Marques, junto a dois prisioneiros do PAIGC, Bambadinca, 1970...).
Sobre José Martins Garcia, (1941-2002) ver nota biográfica, publicada no Boletim do Núcleo Cultural da Horta:
"José Martins Garcia nasceu na Criação Velha, Ilha do Pico, a 17 de Fevereiro de 1941, tendo feito uma parte dos seus estudos liceais na cidade da Horta. Em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras, onde viria a leccionar entre 1971 e 1977. Chamado a cumprir serviço militar em 1965, foi mobilizado para a Guiné-Bissau, aí permanecendo de 1966 a 1968, experiência que se projecta literariamente em Lugar de Massacre (1975), um dos primeiros romances portugueses a abordar a guerra colonial, numa perspectiva paranóica e demencial; essa experiência acabaria por pontuar, sob variadas formas e em diferentes circunstâncias, a sua obra literária.
"Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Paris, e em 1979 rumaria aos Estados Unidos como professor convidado da Brown University (Providence), aí permanecendo até 1984; o rasto desse tempo americano é detectável em Imitação da Morte (1982) e no belíssimo e devastador livro de poemas Temporal (1986).
"De seguida, ingressou na Universidade dos Açores, em cujos planos de estudo das licenciaturas introduziu a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas e onde se doutorou com uma tese sobre Fernando Pessoa; nesta Universidade terminou a sua carreira académica como Professor Catedrático, tendo ainda ocupado o cargo de Vice-Reitor e dirigido a revista Arquipélago, do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas. Faleceu em Ponta Delgada a 4 de Novembro de 2002".
(***) Armor Pires da Mota (vd. nota biográfica em Museu S. Padro da Palhaça > Autores do Concelho de Oliveira do Bairro:
"Nasceu na Freguesia de Oiã, Concelho de Oliveira do Bairro a 4 de Setembro de 1939. Fez a instrução primária nesta freguesia e ingressou no Seminário de Aveiro, saindo em 1961, altura em que publicou o seu primeiro livro Cidade Perdida, mas já anteriormente publicava poesias no Jornal da Bairrada, Correio do Vouga e Soberania do Povo.
"Tendo ingressado posteriormente no serviço militar, foi em 1963 mobilizado e cumprido comissão de serviço na Guiné. Em 1965, lança o seu novo livro Tarrafo, tendo esta publicação mandado ser recolhida pela PIDE.
"A sua participação na imprensa periódica é notável, tendo participado no Diário de Notícias, Diário do Norte, Diário da Manhã, Notícias de Lourenço Marques, O Debate e o Observador e Jornal da Bairrada, entre outros. (...) É actualmente Chefe de redacção do Jornal da Bairrada".
É autor, entre outros, de Guiné, Sol e Sangue (contos e narrativas, 1968). Está representado em três antologias: Contos Portugueses do ultramar; Corpo da Pátria, 1971; Vestiram-se os soldados de poetas. Ganhou o 1º prémio de Poesia "Camilo Pessanha" em 1968 com o livro Baga-Baga.
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