21 janeiro 2006

Guiné 63/74 - CDLXVIII: O crioulo de caserna (Mário Dias)


Guiné > S/d > Documento das NT, de contrapropaganda, em português e em crioulo de caserna, dirigido aos guerrilheiros do PAIGC e à população sob o seu controlo: "Bó presenta na otoridade: Tabanca está contente, tabanca tem bianda, tabanca tem doutor. No mato só mofineza,no mato só fome, no mato só muri"

© José Teixeira (2006)




Guiné > S/d > Documento das NT, de contrapropaganda, em crioulo de caserna, convidando os guerrilheiros do PAIGC à deserção: "Bó presenta na otoridade. Tropa i amigo. Tropa na trata bo dereto" [Apresenta-te às autoridades. A tropa é amiga. A tropa vai tratar-te bem].

© José Teixeira (2006)

Caro Luis

Acabo de ver no blogue a minha intervenção sobre o crioulo, ilustrada com a reprodução de um dos muitos panfletos de acção psicológica que a tropa ia disseminando pela Guiné (1).

A tradução para crioulo da mensagem que prendiam fazer chegar, atesta precisamente o que referi sobre o tal crioulo de caserna (2). Não sei quem terá sido o tradutor. Está uma desgraça, não só por muitos termos estarem mal traduzidos (por exemplo bibe significa beber) como não tem em conta a construção das frases que devem estar de acordo com a forma de pensar dos guineenses e não serem traduzidas à letra. Certamente que os guerrrilheiros se devem ter rido:

GUENTE DI MATO
BÓ BÁ PRESENTA NA TROPA
SÓ GUENTE BRUTO QUI NA BIBE NA MATO
GUENTE QUE TEM BOM CABEÇA Ê NA SINTA NA TABANCA
NA MATO SÓ FOMI, SÓ DOENÇA, SÓ MORTE
NA TABANCA TUDO ESTÁ CONTENTE,
Ê TEM BIANDA Ê TEM DOUTOR
NÔ PRESENTA NA OTORIDADE

Se me tivesse sido pedido para escrever em crioulo, não só as palavras como, sobretudo, a ideia que se pretendia transmitir, te-lo-ia feito assim:

GENTI DI MATO
BÓ PRESENTA NA TROPA
GENTI BRUTO QUI TA SINTA NA MATO
QUEM QUI GIRO* Ê TA SINTA NA TABANCA
NA MATO TEM FOMI, TEM DOENÇA, TEM MORTU
TABANCA MÁS SÁBI
TEM BIANDA Ê TEM DÓTOR
NÓ BAI PANTI NA OTORIDADE

(*) giro = inteligente

Antes de terminar, apenas uma mensagem para o José Neto: Panghiau, iá´me pétchau ?

Eu também estive em Macau de 1980 a 1984. Quatro maravilhosos anos.
A história do Domingos Ramos segue no início da semana.

Um abraço
Mário Dias

____________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXIV: As dificuldades e os encantos do crioulo (Mário Dias)

(2) Vd. também post de A. Marque Lopes, de 14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLI: Mininus di Nha Tera (poema de Nelson Medina, em kriol)

Guiné 63/74 - CDLXVIII: O crioulo de caserna (Mário Dias)


Guiné > S/d > Documento das NT, de contrapropaganda, em português e em crioulo de caserna, dirigido aos guerrilheiros do PAIGC e à população sob o seu controlo: "Bó presenta na otoridade: Tabanca está contente, tabanca tem bianda, tabanca tem doutor. No mato só mofineza,no mato só fome, no mato só muri"

© José Teixeira (2006)




Guiné > S/d > Documento das NT, de contrapropaganda, em crioulo de caserna, convidando os guerrilheiros do PAIGC à deserção: "Bó presenta na otoridade. Tropa i amigo. Tropa na trata bo dereto" [Apresenta-te às autoridades. A tropa é amiga. A tropa vai tratar-te bem].

© José Teixeira (2006)

Caro Luis

Acabo de ver no blogue a minha intervenção sobre o crioulo, ilustrada com a reprodução de um dos muitos panfletos de acção psicológica que a tropa ia disseminando pela Guiné (1).

A tradução para crioulo da mensagem que prendiam fazer chegar, atesta precisamente o que referi sobre o tal crioulo de caserna (2). Não sei quem terá sido o tradutor. Está uma desgraça, não só por muitos termos estarem mal traduzidos (por exemplo bibe significa beber) como não tem em conta a construção das frases que devem estar de acordo com a forma de pensar dos guineenses e não serem traduzidas à letra. Certamente que os guerrrilheiros se devem ter rido:

GUENTE DI MATO
BÓ BÁ PRESENTA NA TROPA
SÓ GUENTE BRUTO QUI NA BIBE NA MATO
GUENTE QUE TEM BOM CABEÇA Ê NA SINTA NA TABANCA
NA MATO SÓ FOMI, SÓ DOENÇA, SÓ MORTE
NA TABANCA TUDO ESTÁ CONTENTE,
Ê TEM BIANDA Ê TEM DOUTOR
NÔ PRESENTA NA OTORIDADE

Se me tivesse sido pedido para escrever em crioulo, não só as palavras como, sobretudo, a ideia que se pretendia transmitir, te-lo-ia feito assim:

GENTI DI MATO
BÓ PRESENTA NA TROPA
GENTI BRUTO QUI TA SINTA NA MATO
QUEM QUI GIRO* Ê TA SINTA NA TABANCA
NA MATO TEM FOMI, TEM DOENÇA, TEM MORTU
TABANCA MÁS SÁBI
TEM BIANDA Ê TEM DÓTOR
NÓ BAI PANTI NA OTORIDADE

(*) giro = inteligente

Antes de terminar, apenas uma mensagem para o José Neto: Panghiau, iá´me pétchau ?

Eu também estive em Macau de 1980 a 1984. Quatro maravilhosos anos.
A história do Domingos Ramos segue no início da semana.

Um abraço
Mário Dias

____________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXIV: As dificuldades e os encantos do crioulo (Mário Dias)

(2) Vd. também post de A. Marque Lopes, de 14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLI: Mininus di Nha Tera (poema de Nelson Medina, em kriol)

Guiné 63/74 - CDLXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (3): Dauda, o Viegas

Guiné > Guileje > Dauda... Era a cara do pai... e a mascote da companhia... © José Neto (2005)


III parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).


Dauda, o Viegas


Como já escrevi, eram todos de etnia fula, de raça negra, com excepção de um menino mestiço.
Este menino, na altura com onze, doze meses de idade, era filho da Sona, uma jovem de Cacine, comprada pelo alfaiate de Guileje para ser a sua terceira esposa.

Tinha o nome de Dauda, mas era tratado por todos nós por Viegas, apelido do pai, capitão que comandara a companhia de Cacine. Ainda hoje, quando revejo as dezenas de fotografias que fiz do garoto, acho que poderíamos anteceder Silva a Viegas…

Foi pela minha mão que o miúdo deu os primeiros passos. E foi por ele que, suponho, arrisquei a vida quando, num ataque bem apontado, as morteiradas atingiram a zona da cozinha, lenheiro e depósito de géneros.

Guiné > Guileje > 1967 > Uma dos dos abrigos enterrados...Na foto vê-se uma bazuca pendurada e, do lado direito, a máquina de costura do alfaiate da tabanca... © José Neto (2005)

Ao correr para o abrigo ouvi o choro duma criança. O Viegas tinha jantado connosco, como de costume, e tive a quase certeza de que era ele. Retrocedi e apanhei-o junto ao coberto que servia de messe de sargentos. Arrastei-o até à entrada do abrigo e, uns instantes depois, uma granada explodiu no monte de lenha a menos de quatro metros de distância, projectando cavacas em todas as direcções.

Dos meus troféus faz parte a empenagem que sobrou dessa granada, que nunca limpei, e que a minha mulher resmunga que só serve para sujar o móvel onde está. Não é que suje, mas também nunca me apeteceu contar-lhe a história desse bocado de ferro com alhetas e terra empastada.

Quanto à actividade militar, a das tropas operacionais era intensa e da minha parte não o era menos.

O Capitão Corvacho, ainda em Brá, dividiu o comando da companhia em duas partes distintas: a parte operacional era dirigida por ele e a administrativa por mim.

Basta referir que o meu Registo Geral (caderno mensal em que são escriturados todos os homens e as suas mais diversas situações) tinha muito perto de trezentos títulos.

Creio que é a terceira vez que o trago a esta história, mas não posso deixar de salientar a enorme ajuda do meu escriturário, o 1º Cabo Ramiro Pais Cardoso, um jovem que antes da tropa era empregado duma sapataria em Viseu, sua terra natal, cuja dedicação e competência me levaram a decidir e recomendar ao nosso Capitão que, durante a minha licença na Metrópole, ele ficasse a exercer as minhas funções, prescindindo da regulamentar substituição pelo 2º Sargento Costa Pinto, que só constou no papel e nos actos imprescindíveis… tais como dispensa de serviço de escala.

E aproveito também para prestar o meu profundo apreço pelo meu ultra zeloso faxina pessoal, o Rochinha, de seu nome completo António Casimiro da Rocha, natural de Passais, freguesia de Fiães, concelho de Vila da Feira.

Dizia-se mal classificado pela tropa, pois era manufactor de calçado e não sapateiro como constava nos seus documentos e roía-se todo por ter sido privado de especialidade, ficando portanto básico, só pelo facto de ter os pés chatos.

Cuidava de mim e dos meus pertences com uma dedicação extrema. Um dos seus cuidados era fazer-me o café às horas certas de acordo com a nossa combinação. Ficou histórica a sua presteza quando, durante os dois dias de viagem marítima de Buba para Gadamael, às horas marcadas me aparecia o Rochinha com o cafezinho fumegante.

E o único convidado para a bica que ele admitia era o nosso Capitão e o Dr. Oliveira Martins quando estava connosco.

Fartou-se de me pedir para o deixar ir a uma operação, mas sempre lhe neguei a vontade, porque, se por um lado lhe estava vedada essa actividade, por outro eu não podia prescindir da sua colaboração.

De parceria com o Ramiro, que o ensinou a escrever à máquina, dava volta à papelada mais trivial com segurança e a contento de todos, pois nunca abusou da sua relativa proximidade com o comando da companhia. Antes pelo contrário. Algumas vezes ajudava um ou outro camarada menos expedito a trazer-me este ou aquele problema que necessitava da minha intervenção.

O resto da estação das chuvas, de Junho a Setembro, foi passada na expectativa das tradicionais boas vindas que os turras costumavam dar às guarnições novas.

Guiné > Guileje > 1967 > Mais um dos abrigos enterrados... e local de brincadeira da criançada... © José Neto (2005)


Havia informações de que o IN tinha deslocado para aquela zona dois bigrupos (*) e possivelmente, tal como nós, andavam a adaptar-se ao terreno. Até que, em meados de Outubro, tivemos o primeiro ataque, muito mal realizado, graças a Deus.

Primeiro, já tínhamos conhecimento dos seus movimentos e da hora provável da flagelação e segundo, acercaram-se demasiado do perímetro fortificado e ficaram expostos ao fogo das nossas armas ligeiras, principalmente dilagramas (1) e bazucas.

Além disso as suas granadas de morteiro, embora tivessem o alvo constituído pelas coberturas de zinco das nossas instalações iluminado pelo luar, caíram todas longe da tabanca, sem causar o mínimo estrago.

Em contrapartida, deixaram no terreno algum armamento, peças de roupa ensanguentada e sinais de uma retirada pouco organizada. Soube-se depois que esta acção foi o baptismo de fogo da maior parte dos atacantes, uma espécie de exercícios finais de recrutas, mas a sério.

E para mim também o foi, já que a campanha do Lap Sap de 1952, em Macau (2), não conta, porque não cheguei a sentir o calafrio provocado pela incerteza de onde irá cair a próxima?

Tínhamos acabado de jantar e cada qual foi para o seu buraco, porque, como já referi, estávamos à espera do ataque. No meu quarto-abrigo a segurança era mais que suficiente e dispus-me a escrever um aerograma para a minha mulher a mentir-lhe, como sempre fiz em relação aos perigos que corria, dizendo-lhe que estava tudo bem comigo, que estivesse descansada e por aí fora.

Ao estrondo da primeira granada de morteiro que caiu lá para o fundo da pista seguiu-se o corte da electricidade, já programado. Acendi a minha lanterna de pilhas e fiz um leve risco no alto da folha para assinalar o acontecimento.

Com o continuar dos rebentamentos, começou a ouvir-se o som característico das costureirinhas e das Kalash, o que pressupunha a intenção de flagelação seguida de tentativa de assalto.

Até essa altura eu tinha a convicção de que a história de medo de pôr os cabelos em pé não passava disso mesmo, um rifão como outro qualquer. Mas a veracidade estava bem presente. Por momentos senti um arrepio de frio na espinha e os cabelos, e pêlos dos braços, a eriçarem-se.

Compreendi rapidamente que estar ali sozinho não me era emocionalmente favorável e arrastei-me até ao abrigo fortificado que ficava por trás do meu quarto onde encontrei os elementos da guarnição muito calmos a fazerem uns disparos tiro-a-tiro pelas seteiras ao mesmo tempo que comentavam:
-Estes gajos são loucos. Se avançam para cá das árvores caiem todos como tordos.

Ao fim de muitas horas, quando o silêncio se consolidou, fiquei pasmado ao olhar para o meu relógio e constatar que a coisa tinha durado menos de quarenta minutos.

Acompanhei o Capitão na volta pelos abrigos e palhotas da tabanca e certificamo-nos de que o ataque nem uma beliscadura causou.

Em conversa sobre o acontecido eu disse-lhe que me tinha arrepiado com medo, embora sabendo que estava em local seguro. Respondeu-me que também ele já tinha passado por isso, mas que, com a continuação, uma pessoa se habitua.

Entramos assim num ciclo de duas campanhas: eles executavam a sua de noite e nós a nossa de dia.

Quanto aos ataques que sofremos daí para o futuro, e foram muitos, apenas quero salientar, para além do que descrevi sobre o Viegas, dois ou três pormenores:

Na gíria das transmissões essas acções do IN eram alcunhadas de festival o que se estendeu ao dia-a-dia do pessoal.

Muitas vezes as nossas sentinelas detectavam o som da saída das granadas do tubo e disparavam uma rajada ao mesmo tempo que gritavam:
-Festival!!!

Quando a primeira granada chegava já estava quase tudo abrigado. Uma ocasião tal não sucedeu e se alguém pode acreditar em milagres, esses são o Capitão Corvacho e o Alferes Michael (3).

Ao correrem para junto da posição do Morteiro de 81 mm, seu posto de combate na circunstância, por pouco não foram atingidos por qualquer coisa que não identificaram de imediato.

Quando acabou a flagelação constatou-se que essa coisa era uma granada de morteiro que não explodiu e estava semi-enterrada no solo.

Tomaram-se as precauções necessárias e no dia seguinte a granada foi puxada por um extenso cabo de aço. Mas antes, como bom artilheiro, o Capitão mediu o ângulo de chegada do projéctil com o qual calculou a direcção e a distância de onde tinha sido disparado, para futuras retribuições (4).

Providencialmente o turra tinha-se esquecido de sacar a cavilha de segurança da espoleta antes de meter a granada no tubo!!!

_________
Notas do Z. N.:


(1) Dispositivo de Lançamento de Granadas de Mão, um engenho português que se adaptava ao cano da espingarda automática G 3. Com uma munição especial, facultava o lançamento de granadas de mão a distâncias consideráveis em tiro curvo. Era terrivelmente eficaz quando lançado sobre as copas das árvores, pois as granadas explodiam e fragmentavam-se em direcção ao solo.

O seu uso exigia do atirador muita perícia e, principalmente, concentração, pois se na confusão fosse utilizada munição normal a granada explodia imediatamente. Deu-se um percalço destes com um atirador da CART 1612 que matou dois soldados.

(2) Incidentes das Portas do Cerco que isolaram Macau durante três semanas, nos quais os chineses mataram o Soldado Moçambicano Jacinto Mundau.

(3) Michael Winston Schnitzer da Silva.

(4) O Morteiro é uma arma de tiro curvo, mas diferente dos obuses ou canhões. Grosso modo pode dizer-se que o projéctil descreve uma trajectória parecida com um V invertido. O alcance da arma (distância para o alvo) é obtido pelas tabelas de inclinação do tubo de lançamento e variação das cargas propulsoras. Assim, identificado o projéctil descobre-se com facilidade a arma que o lançou. Com uma arma igual, ou outra com os ajustes calculados, há muitas probabilidades de fazer um disparo inverso e atingir as redondezas da posição da arma inimiga (**).
_____

Notas de L.G.:

(*) Originalmente, o Zé Neto estimou os dois bigrupos em 400 homens. Rectificou logo a seguir:
"Luís: Já descobri onde está a confusão que gerei com o raio dos bigrupos. Eu socorro-me amiude da História do BART 1896 para acertar datas e pormenores do que escrevo. E realmente as informações do Batalhão, recolhidas nas unidades de fronteira através do Gilas (comerciantes ambulantes da Guiné-Conacri que vendiam de tudo, até informações) referenciaram a deslocação para a zona de Guileje de quatrocentos guerrilheiros e o algarismo que quantifica os bigrupos está esborratado e mais parece um 2 que um 8. Deficiência do stencil e azar meu. Deste modo quando chegares à descrição, nas Memórias de Guileje, desse facto, emenda para oito onde escrevi dois, quando não cai-me o Carmo e a Trindade em cima outra vez"....

(**) Vd posts anteriores do Zé Neto, respeitantes às Memórias de Guileje:

13 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (2): Ordem de marcha

10 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)

Guiné 63/74 - CDLXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (3): Dauda, o Viegas

Guiné > Guileje > Dauda... Era a cara do pai... e a mascote da companhia... © José Neto (2005)


III parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).


Dauda, o Viegas


Como já escrevi, eram todos de etnia fula, de raça negra, com excepção de um menino mestiço.
Este menino, na altura com onze, doze meses de idade, era filho da Sona, uma jovem de Cacine, comprada pelo alfaiate de Guileje para ser a sua terceira esposa.

Tinha o nome de Dauda, mas era tratado por todos nós por Viegas, apelido do pai, capitão que comandara a companhia de Cacine. Ainda hoje, quando revejo as dezenas de fotografias que fiz do garoto, acho que poderíamos anteceder Silva a Viegas…

Foi pela minha mão que o miúdo deu os primeiros passos. E foi por ele que, suponho, arrisquei a vida quando, num ataque bem apontado, as morteiradas atingiram a zona da cozinha, lenheiro e depósito de géneros.

Guiné > Guileje > 1967 > Uma dos dos abrigos enterrados...Na foto vê-se uma bazuca pendurada e, do lado direito, a máquina de costura do alfaiate da tabanca... © José Neto (2005)

Ao correr para o abrigo ouvi o choro duma criança. O Viegas tinha jantado connosco, como de costume, e tive a quase certeza de que era ele. Retrocedi e apanhei-o junto ao coberto que servia de messe de sargentos. Arrastei-o até à entrada do abrigo e, uns instantes depois, uma granada explodiu no monte de lenha a menos de quatro metros de distância, projectando cavacas em todas as direcções.

Dos meus troféus faz parte a empenagem que sobrou dessa granada, que nunca limpei, e que a minha mulher resmunga que só serve para sujar o móvel onde está. Não é que suje, mas também nunca me apeteceu contar-lhe a história desse bocado de ferro com alhetas e terra empastada.

Quanto à actividade militar, a das tropas operacionais era intensa e da minha parte não o era menos.

O Capitão Corvacho, ainda em Brá, dividiu o comando da companhia em duas partes distintas: a parte operacional era dirigida por ele e a administrativa por mim.

Basta referir que o meu Registo Geral (caderno mensal em que são escriturados todos os homens e as suas mais diversas situações) tinha muito perto de trezentos títulos.

Creio que é a terceira vez que o trago a esta história, mas não posso deixar de salientar a enorme ajuda do meu escriturário, o 1º Cabo Ramiro Pais Cardoso, um jovem que antes da tropa era empregado duma sapataria em Viseu, sua terra natal, cuja dedicação e competência me levaram a decidir e recomendar ao nosso Capitão que, durante a minha licença na Metrópole, ele ficasse a exercer as minhas funções, prescindindo da regulamentar substituição pelo 2º Sargento Costa Pinto, que só constou no papel e nos actos imprescindíveis… tais como dispensa de serviço de escala.

E aproveito também para prestar o meu profundo apreço pelo meu ultra zeloso faxina pessoal, o Rochinha, de seu nome completo António Casimiro da Rocha, natural de Passais, freguesia de Fiães, concelho de Vila da Feira.

Dizia-se mal classificado pela tropa, pois era manufactor de calçado e não sapateiro como constava nos seus documentos e roía-se todo por ter sido privado de especialidade, ficando portanto básico, só pelo facto de ter os pés chatos.

Cuidava de mim e dos meus pertences com uma dedicação extrema. Um dos seus cuidados era fazer-me o café às horas certas de acordo com a nossa combinação. Ficou histórica a sua presteza quando, durante os dois dias de viagem marítima de Buba para Gadamael, às horas marcadas me aparecia o Rochinha com o cafezinho fumegante.

E o único convidado para a bica que ele admitia era o nosso Capitão e o Dr. Oliveira Martins quando estava connosco.

Fartou-se de me pedir para o deixar ir a uma operação, mas sempre lhe neguei a vontade, porque, se por um lado lhe estava vedada essa actividade, por outro eu não podia prescindir da sua colaboração.

De parceria com o Ramiro, que o ensinou a escrever à máquina, dava volta à papelada mais trivial com segurança e a contento de todos, pois nunca abusou da sua relativa proximidade com o comando da companhia. Antes pelo contrário. Algumas vezes ajudava um ou outro camarada menos expedito a trazer-me este ou aquele problema que necessitava da minha intervenção.

O resto da estação das chuvas, de Junho a Setembro, foi passada na expectativa das tradicionais boas vindas que os turras costumavam dar às guarnições novas.

Guiné > Guileje > 1967 > Mais um dos abrigos enterrados... e local de brincadeira da criançada... © José Neto (2005)


Havia informações de que o IN tinha deslocado para aquela zona dois bigrupos (*) e possivelmente, tal como nós, andavam a adaptar-se ao terreno. Até que, em meados de Outubro, tivemos o primeiro ataque, muito mal realizado, graças a Deus.

Primeiro, já tínhamos conhecimento dos seus movimentos e da hora provável da flagelação e segundo, acercaram-se demasiado do perímetro fortificado e ficaram expostos ao fogo das nossas armas ligeiras, principalmente dilagramas (1) e bazucas.

Além disso as suas granadas de morteiro, embora tivessem o alvo constituído pelas coberturas de zinco das nossas instalações iluminado pelo luar, caíram todas longe da tabanca, sem causar o mínimo estrago.

Em contrapartida, deixaram no terreno algum armamento, peças de roupa ensanguentada e sinais de uma retirada pouco organizada. Soube-se depois que esta acção foi o baptismo de fogo da maior parte dos atacantes, uma espécie de exercícios finais de recrutas, mas a sério.

E para mim também o foi, já que a campanha do Lap Sap de 1952, em Macau (2), não conta, porque não cheguei a sentir o calafrio provocado pela incerteza de onde irá cair a próxima?

Tínhamos acabado de jantar e cada qual foi para o seu buraco, porque, como já referi, estávamos à espera do ataque. No meu quarto-abrigo a segurança era mais que suficiente e dispus-me a escrever um aerograma para a minha mulher a mentir-lhe, como sempre fiz em relação aos perigos que corria, dizendo-lhe que estava tudo bem comigo, que estivesse descansada e por aí fora.

Ao estrondo da primeira granada de morteiro que caiu lá para o fundo da pista seguiu-se o corte da electricidade, já programado. Acendi a minha lanterna de pilhas e fiz um leve risco no alto da folha para assinalar o acontecimento.

Com o continuar dos rebentamentos, começou a ouvir-se o som característico das costureirinhas e das Kalash, o que pressupunha a intenção de flagelação seguida de tentativa de assalto.

Até essa altura eu tinha a convicção de que a história de medo de pôr os cabelos em pé não passava disso mesmo, um rifão como outro qualquer. Mas a veracidade estava bem presente. Por momentos senti um arrepio de frio na espinha e os cabelos, e pêlos dos braços, a eriçarem-se.

Compreendi rapidamente que estar ali sozinho não me era emocionalmente favorável e arrastei-me até ao abrigo fortificado que ficava por trás do meu quarto onde encontrei os elementos da guarnição muito calmos a fazerem uns disparos tiro-a-tiro pelas seteiras ao mesmo tempo que comentavam:
-Estes gajos são loucos. Se avançam para cá das árvores caiem todos como tordos.

Ao fim de muitas horas, quando o silêncio se consolidou, fiquei pasmado ao olhar para o meu relógio e constatar que a coisa tinha durado menos de quarenta minutos.

Acompanhei o Capitão na volta pelos abrigos e palhotas da tabanca e certificamo-nos de que o ataque nem uma beliscadura causou.

Em conversa sobre o acontecido eu disse-lhe que me tinha arrepiado com medo, embora sabendo que estava em local seguro. Respondeu-me que também ele já tinha passado por isso, mas que, com a continuação, uma pessoa se habitua.

Entramos assim num ciclo de duas campanhas: eles executavam a sua de noite e nós a nossa de dia.

Quanto aos ataques que sofremos daí para o futuro, e foram muitos, apenas quero salientar, para além do que descrevi sobre o Viegas, dois ou três pormenores:

Na gíria das transmissões essas acções do IN eram alcunhadas de festival o que se estendeu ao dia-a-dia do pessoal.

Muitas vezes as nossas sentinelas detectavam o som da saída das granadas do tubo e disparavam uma rajada ao mesmo tempo que gritavam:
-Festival!!!

Quando a primeira granada chegava já estava quase tudo abrigado. Uma ocasião tal não sucedeu e se alguém pode acreditar em milagres, esses são o Capitão Corvacho e o Alferes Michael (3).

Ao correrem para junto da posição do Morteiro de 81 mm, seu posto de combate na circunstância, por pouco não foram atingidos por qualquer coisa que não identificaram de imediato.

Quando acabou a flagelação constatou-se que essa coisa era uma granada de morteiro que não explodiu e estava semi-enterrada no solo.

Tomaram-se as precauções necessárias e no dia seguinte a granada foi puxada por um extenso cabo de aço. Mas antes, como bom artilheiro, o Capitão mediu o ângulo de chegada do projéctil com o qual calculou a direcção e a distância de onde tinha sido disparado, para futuras retribuições (4).

Providencialmente o turra tinha-se esquecido de sacar a cavilha de segurança da espoleta antes de meter a granada no tubo!!!

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Notas do Z. N.:


(1) Dispositivo de Lançamento de Granadas de Mão, um engenho português que se adaptava ao cano da espingarda automática G 3. Com uma munição especial, facultava o lançamento de granadas de mão a distâncias consideráveis em tiro curvo. Era terrivelmente eficaz quando lançado sobre as copas das árvores, pois as granadas explodiam e fragmentavam-se em direcção ao solo.

O seu uso exigia do atirador muita perícia e, principalmente, concentração, pois se na confusão fosse utilizada munição normal a granada explodia imediatamente. Deu-se um percalço destes com um atirador da CART 1612 que matou dois soldados.

(2) Incidentes das Portas do Cerco que isolaram Macau durante três semanas, nos quais os chineses mataram o Soldado Moçambicano Jacinto Mundau.

(3) Michael Winston Schnitzer da Silva.

(4) O Morteiro é uma arma de tiro curvo, mas diferente dos obuses ou canhões. Grosso modo pode dizer-se que o projéctil descreve uma trajectória parecida com um V invertido. O alcance da arma (distância para o alvo) é obtido pelas tabelas de inclinação do tubo de lançamento e variação das cargas propulsoras. Assim, identificado o projéctil descobre-se com facilidade a arma que o lançou. Com uma arma igual, ou outra com os ajustes calculados, há muitas probabilidades de fazer um disparo inverso e atingir as redondezas da posição da arma inimiga (**).
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Notas de L.G.:

(*) Originalmente, o Zé Neto estimou os dois bigrupos em 400 homens. Rectificou logo a seguir:
"Luís: Já descobri onde está a confusão que gerei com o raio dos bigrupos. Eu socorro-me amiude da História do BART 1896 para acertar datas e pormenores do que escrevo. E realmente as informações do Batalhão, recolhidas nas unidades de fronteira através do Gilas (comerciantes ambulantes da Guiné-Conacri que vendiam de tudo, até informações) referenciaram a deslocação para a zona de Guileje de quatrocentos guerrilheiros e o algarismo que quantifica os bigrupos está esborratado e mais parece um 2 que um 8. Deficiência do stencil e azar meu. Deste modo quando chegares à descrição, nas Memórias de Guileje, desse facto, emenda para oito onde escrevi dois, quando não cai-me o Carmo e a Trindade em cima outra vez"....

(**) Vd posts anteriores do Zé Neto, respeitantes às Memórias de Guileje:

13 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (2): Ordem de marcha

10 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)

20 janeiro 2006

Guiné 63/74 - CDLXVI: Álbum de fotografias do José Teixeira (1): o Niassa


Guiné > Recordação do Niassa. Lisboa - Guiné - Lisboa.... Missão Cumprida!... Transportando a CCAÇ 2381 (Lisboa, 1 de Maio de 1968 / Bissau, 3 de Abril de 1970), além de outras unidades.

© José Teixeira (2005)


Texto do José Teixeira (1º cabo enfermeiro, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

Caro Luís: Junto duas fotos. Uma do Niassa connosco lá dentro e outra com o monumento que construimos junto ao porta bandeira de Empada, que infelizmente já lá não está.


Guiné > Empada > 1970 > Brasão da Companhia de Caçadores 2381 , Os Maiorais, "Pela lei, pela Grei"... © José Teixeira (2005)

Sei que a Companhia do Allen também construiu uma coisa do género, a qual foi redescoberta pelo Allen em Abril de 2005 a servir de degrau junto à casa do Chefe da Aldeia. Conseguiu que este o autorizasse a trazê-la de volta para Portugal. Imagina o desgraçado a transpostar um pedaço enorme de cimento, debaixo do braço, a seu lado no avião. Eu estava lá para dar uma ajudinha.

A propósito, falei hoje [17 de Janeiro] com ele. A esposa parece que quer rivalizar comigo em estar todos os dias no Blogue. Diz que ela já tem um livro (?) para te enviar. Até passa noites sem dormir ....

Um abraço

Guiné 63/74 - CDLXVI: Álbum de fotografias do José Teixeira (1): o Niassa


Guiné > Recordação do Niassa. Lisboa - Guiné - Lisboa.... Missão Cumprida!... Transportando a CCAÇ 2381 (Lisboa, 1 de Maio de 1968 / Bissau, 3 de Abril de 1970), além de outras unidades.

© José Teixeira (2005)


Texto do José Teixeira (1º cabo enfermeiro, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):

Caro Luís: Junto duas fotos. Uma do Niassa connosco lá dentro e outra com o monumento que construimos junto ao porta bandeira de Empada, que infelizmente já lá não está.


Guiné > Empada > 1970 > Brasão da Companhia de Caçadores 2381 , Os Maiorais, "Pela lei, pela Grei"... © José Teixeira (2005)

Sei que a Companhia do Allen também construiu uma coisa do género, a qual foi redescoberta pelo Allen em Abril de 2005 a servir de degrau junto à casa do Chefe da Aldeia. Conseguiu que este o autorizasse a trazê-la de volta para Portugal. Imagina o desgraçado a transpostar um pedaço enorme de cimento, debaixo do braço, a seu lado no avião. Eu estava lá para dar uma ajudinha.

A propósito, falei hoje [17 de Janeiro] com ele. A esposa parece que quer rivalizar comigo em estar todos os dias no Blogue. Diz que ela já tem um livro (?) para te enviar. Até passa noites sem dormir ....

Um abraço

Guiné 63/74 - CDLXV: PAIGC: Armazéns do Povo


Guiné > s/d > Região sob controlo do PAIGC > Um armazém do povo. Fonte: PAIGC.


Texto do Jorge Santos:

O PAIGC promove a criação dos Armazéns do Povo por decisão tomada no 1º Congresso de 1964.

O objectivo dos Armazéns do Povo, empresa geral de comércio de tipo estatal, era garantir o fornecimento de artigos de primeira necessidade à população das regiões libertadas e, por meio de troca, receber produtos agrícolas que deveriam em seguida escoar-se para o exterior, criando-se e desenvolvendo-se assim, progressivamente, a base de um comércio externo.

O número de Depósitos dos Armazéns do Povo passou de 6, em 1964, para 16, em 1969.

FONTE: PAIGC - História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde. Porto: Edições Afrontamento. 1974

Guiné 63/74 - CDLXV: PAIGC: Armazéns do Povo


Guiné > s/d > Região sob controlo do PAIGC > Um armazém do povo. Fonte: PAIGC.


Texto do Jorge Santos:

O PAIGC promove a criação dos Armazéns do Povo por decisão tomada no 1º Congresso de 1964.

O objectivo dos Armazéns do Povo, empresa geral de comércio de tipo estatal, era garantir o fornecimento de artigos de primeira necessidade à população das regiões libertadas e, por meio de troca, receber produtos agrícolas que deveriam em seguida escoar-se para o exterior, criando-se e desenvolvendo-se assim, progressivamente, a base de um comércio externo.

O número de Depósitos dos Armazéns do Povo passou de 6, em 1964, para 16, em 1969.

FONTE: PAIGC - História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde. Porto: Edições Afrontamento. 1974

Guiné 63/74 - CDLXIV: As dificuldades e os encantos do crioulo (Mário Dias)

Guiné > S/d > Documento das NT, em português e em crioulo, incentivando os guerrilheiros do PAIGC e a população sob o seu controlo a apresentarem-se às autoridades portuguesas.

© José Teixeira (2006)


Textod o Mário Dias (ex-sargento comando, Brá, 1963/66)

Caro Luis Graça, caros camardas de tertúlia:

A propósito dos comentários de nosso amigo J. Mussá Biai sobre a forma correcta de escrever o crioulo (criôlo?) é bom que nos vá elucidando. Por mim, que falo razoavelmente bem o criôlo, também se depara a dificuldade de o escrever porque esse dialecto só recentemente tem sido passado à fase de escrita. Pelo menos, que eu saiba, no tempo chamado colonial não existia qualquer gramátia nem textos escritos, com excepção de pequenas frases que alguns estudiosos e pesquisadores transcreviam, cada um o fazendo segundo uma transcrição fonética das palavras tal como elas soavam aos ouvidos. Apenas havia uma tímida tentativa em Cabo Verde, por parte de alguns intelectuais e escritores, de escrever poemas e outros textos -e alguns foram publicados- mas que tinham um forte oposição do regime de então que não admitia o criôlo como língua.

O Mussa Biai que desculpe as nossas deficiências e nos vá elucidando. E aproveito para lhe pedir que me informe onde posso adquirir uma gramática ou compêndio actualizado que me esclarece sobre esta matéria. Sei que recentemente foi publicado um dicionário de português-criolo de Cabo Verde (versão da ilha de Santiago). Iniciativa de louvar, mas que não adianta muito a quem pretende o criôlo (crioulo?) da Guiné, tão diferentes são.

Eu saí da Guiné em 1966. Desde essa altura, muita água correu pelo Pidjiguiti e, sendo as línguas, todas elas, dinâmicas e por isso sujeitas a constantes alterações não só na sua pronúncia como até na semântica, pergunto-lhe se a palavra djila que diz se deve escrever guila deixou de se pronunciar gila passando a guila com o "g" na sua função de consoante gutural.

Também o significado desta palavra era, no meu tempo, tal como diz o José Teixeira, simultaneamente comerciante ambulante e contrabandista, no sentido de que comerciavam produtos que traziam sobretudo do Senegal e passavam a fronteira sem controlo alfandegário. Não havia qualquer espécie de menosprezo nesse julgamente pelo contrário: todos aproveitavamos e apreciavamos os serviços que prestavam.

Recordo-me que, em Farim, todos aguardavamos com alguma ansiedade os djilas que vinham de Kolda e até de Ziguinchor com os seus fornecimentos de artigos franceses (eu era habitual cliente da água de colónia Soir de Paris. Para lá, na volta, levavam tabaco em folha, meadas de algodão e sobretudo nozes de cola produzidas na região de Cacine. Essa actividade era de tal forma importante, que deu origem à expressão djilandade, usada para caracterizar uma acção menos séria.

Como já me alonguei muito, voltarei em breve a este tema que tanto me fascina . Mas antes de terminar atrevo-me a saudar o José Mussa Biai em mandinga, mesmo correndo o risco de não escrever correctamente mas apenas como a frase me soava e soa: Kaera sita?

Um abraço, meus amigos.
Mário Dias


Mais conversas sobre o crioulo

Continuando a divagar sobre o crioulo (criôlo), que tanto me encanta, começo por dizer que não lhe resisto sempre que para tal tenho ocasião. É frequente nas minhas deslocações a Lisboa, ao tomar o barco no Barreiro, ouvir guineenses a falar criôlo. Tenho que meter conversa. É uma surpresa para eles e também motivo de alegria para ambas as partes. E já tem acontecido, durante os nossos diálogos, serem referidas pessoas conhecidas dos participantes na cavaqueira.

O crioulo é uma língua, ou dialecto (deixo a definição para os filólogos) com uma enorme riqueza de expressões idiomáticas que, apenas quem as entenda em toda a sua plenitude e envolvência, consegue captar o seu verdadeiro significado e alcance. Isso só se consegue dominando bem a língua e, sobretudo, conhecendo os hábitos, usos, costumes e filosofia de vida dos naturais da Guiné.

Como exemplo, vou contar uma caso que se passou e que ilustra bem o quanto uma expressão dita em crioulo tem um impacto e uma graça que se perde dita em português.

Aconteceu em Bissau. Na altura, eu trabalhava na NOSOCO, cujo edifício serviu durante a guerra como sede e armazém da Manutenção Militar. Um dos meus colegas, o senhor Martins, respeitável guineense, de veneranda carapinha branca, encarregado do armazém daquela companhia, teve a infelicidade de perder um familiar. Morava no chamado Bissau Velho, próximo da fortaleza da Amura. Eu e mais alguns colegas deslocámo-nos a sua casa a fim de lhe prestarmos a nossa solidariedade. Num dos compartimentos estava a urna do defunto rodeada de muitos familiares e amigos carpindo o infausto acontecimento.

Dirigi-me a ele com as palavras usuais destas ocasiões. Como o vi bastante abatido e ansioso perguntei-lhe como se estava a sentir. Resposta pronta em crioulo que me arrancou uma escandalosa gargalhada que de imediato tentei reprimir, dadas as circunstâncias:
- Casa inchi kum. Nim kau de tira pide ká tem.- Creio que compreendem o significado que é:
- A casa está tão cheia, que nem existe um sítio onde se possa dar um peido.- Esta frase, dita em português, perde todo o impacto que o crioulo lhe dá. É como um poema traduzido para outra língua: esvazia-se grande parte do sentir que o poeta lhe deu.

A tentativa dos ex-militares que serviram na Guiné de usarem o crioulo, só demonstra o quanto foi e é grande a nossa vontade de entender aquele povo. Aliás, isso faz parte da característica dos portugueses que sempre souberem mesclar-se e tenta compreender os povos que foram conhecendo por esse mundo fora.

Essa vontade de comunicar na língua que as populações usavam maioritariamente, ou seja, o crioulo, é disso prova e o prazer que se espelha nas frases que vão partilhando com os restantes tertulianos, mesmo ao fim de todos estes mais de 30 anos (para alguns muito mais), é enternecedora.

Acontece, porém, que a grafia e o próprio significado que pretendem atribuir às palavras não é o mais correcto. Quanto à grafia, nada vou acrescentar pois, também eu, a esse respeito, sou um ignorante. As regras ortográficas, quanto julgo saber, só agora estão a ser objecto de estudo e implementação. Trabalho árduo deverá ser!

No que se refere à semântica, tanto de palavras como de expressões idiomáticas, aí já posso meter a colherada. Constatei ao longo dos anos que os nossos militares foram adulterando o crioulo não só quanto à correcta pronúncia como, até, alterando o real significado das palavras. Muitas vezes acontecia que eram os velhinhos, para alardear a sua sabedoria perante os maçaricos ou periquitos que os iniciavam no conhecimento da língua. O resultado foi que, sendo muitos desses ensinamentos errados, assim permaneceram e se divulgaram criando-se uma variante de crioulo que poderemos chamar crioulo de caserna. Para quem o utiliza, está correcto atendendo a que sabem exactamente o que pretendem dizer; mas, para outros, fora dos meandros desta variante soa estranhamente. Aqui está um tema interessante para estudo dos filólogos. Alguns exemplos:


(i) O José Teixeira, o Pastilhas da CCAÇ 2381, no seu diário que não perco e tanto me encanta - e, por que não confessar?, me comove (parabéns Teixeira, um especial abraço para ti) - usa frequentemente a expressão manga de chocolate. Julgo que ele pretende dizer manga de sakalata que significa muita confusão, muitos sarilhos ou dificuldades. A expressão sakalata é muito utilizada quando se pretende indicar que existe confusão, problemas ou discussão conflituosa. Dessa palavra deriva sakalatado que se aplica a uma coisa esquisita ou insólita.

(ii) Mais exemplos da adulteração do criôlo de caserna: a palavra máfè. E aqui abro um parentesis para dizer que tanto ouvi pronunciar máfe, tónica em e sílaba aberta, como mafé com a tónica em . E porquê? Porque a pronúncia das palavras, tal como acontece em Portugal, varia de região para região. Por exemplo, tchora (chorar) se dita por um manjaco soa com um “x” bem carregado; se for um papel, ouviremos “sora”. Regressando a máfe, que já vi no blogue traduzida como peixe, refere-se a qualquer acompanhamento do arroz (quando cozido toma o nome de bianda). É, comparativamente, aquilo que em Portugal chamamos conduto ou presigo. Claro que, por contingência, a maior parte das vezes o máfé era peixe, sobretudo peixe seco a que chamam kasseké. Quando o arroz cozinhado não tem máfé, diz-se rôz kuntango ou simplesmente kuntango.

(iii) Também é frequente a expressão partir mantenha com o sentido de cumprimentar. Começarei por esclarecer que no crioulo não existe o “r” final no infinito dos verbos. Deve dizer-se parte (dar ou oferecer). Parti´m (dá - me). Partíbu (dou-te). A confusão deve-se, suponho, à tentativa de adaptar a maneira como se fala o português ao crioulo. Claro que não funciona porque, enquanto nós dizemos dar os bons dias (daí o partir, dar) em criou não se utiliza o dar cumprimentos, mas sim falar. Desta forma, o correcto será, fala mantenha.

(iv) palavra que surge com frequência com significado errado é djubi, atribuído a menino ou rapaz. Menino diz-se minino e por vezes, de uma forma mais carinhosa, mininozinho ou rapazinho. Djubi, significa olha, vê e é também utilizado como forma de chamamento substituindo o nome da pessoa chamada. Passa-se o mesmo em português quando pretendendo chamar alguém dizemos: - Olha.

Peço desculpa por esta grande seca. A intenção é boa mas acabo por ser quezilento. Reconheço.

Chega. Tenho de ir ao baú desencantar algumas fotos em que está o Domingos Ramos para enviar brevemente com a pequena história da minha vivência com o que foi um dos primeiros e dos mais importantes chefes da guerrilha do PAIGC.

Guiné 63/74 - CDLXIV: As dificuldades e os encantos do crioulo (Mário Dias)

Guiné > S/d > Documento das NT, em português e em crioulo, incentivando os guerrilheiros do PAIGC e a população sob o seu controlo a apresentarem-se às autoridades portuguesas.

© José Teixeira (2006)


Textod o Mário Dias (ex-sargento comando, Brá, 1963/66)

Caro Luis Graça, caros camardas de tertúlia:

A propósito dos comentários de nosso amigo J. Mussá Biai sobre a forma correcta de escrever o crioulo (criôlo?) é bom que nos vá elucidando. Por mim, que falo razoavelmente bem o criôlo, também se depara a dificuldade de o escrever porque esse dialecto só recentemente tem sido passado à fase de escrita. Pelo menos, que eu saiba, no tempo chamado colonial não existia qualquer gramátia nem textos escritos, com excepção de pequenas frases que alguns estudiosos e pesquisadores transcreviam, cada um o fazendo segundo uma transcrição fonética das palavras tal como elas soavam aos ouvidos. Apenas havia uma tímida tentativa em Cabo Verde, por parte de alguns intelectuais e escritores, de escrever poemas e outros textos -e alguns foram publicados- mas que tinham um forte oposição do regime de então que não admitia o criôlo como língua.

O Mussa Biai que desculpe as nossas deficiências e nos vá elucidando. E aproveito para lhe pedir que me informe onde posso adquirir uma gramática ou compêndio actualizado que me esclarece sobre esta matéria. Sei que recentemente foi publicado um dicionário de português-criolo de Cabo Verde (versão da ilha de Santiago). Iniciativa de louvar, mas que não adianta muito a quem pretende o criôlo (crioulo?) da Guiné, tão diferentes são.

Eu saí da Guiné em 1966. Desde essa altura, muita água correu pelo Pidjiguiti e, sendo as línguas, todas elas, dinâmicas e por isso sujeitas a constantes alterações não só na sua pronúncia como até na semântica, pergunto-lhe se a palavra djila que diz se deve escrever guila deixou de se pronunciar gila passando a guila com o "g" na sua função de consoante gutural.

Também o significado desta palavra era, no meu tempo, tal como diz o José Teixeira, simultaneamente comerciante ambulante e contrabandista, no sentido de que comerciavam produtos que traziam sobretudo do Senegal e passavam a fronteira sem controlo alfandegário. Não havia qualquer espécie de menosprezo nesse julgamente pelo contrário: todos aproveitavamos e apreciavamos os serviços que prestavam.

Recordo-me que, em Farim, todos aguardavamos com alguma ansiedade os djilas que vinham de Kolda e até de Ziguinchor com os seus fornecimentos de artigos franceses (eu era habitual cliente da água de colónia Soir de Paris. Para lá, na volta, levavam tabaco em folha, meadas de algodão e sobretudo nozes de cola produzidas na região de Cacine. Essa actividade era de tal forma importante, que deu origem à expressão djilandade, usada para caracterizar uma acção menos séria.

Como já me alonguei muito, voltarei em breve a este tema que tanto me fascina . Mas antes de terminar atrevo-me a saudar o José Mussa Biai em mandinga, mesmo correndo o risco de não escrever correctamente mas apenas como a frase me soava e soa: Kaera sita?

Um abraço, meus amigos.
Mário Dias


Mais conversas sobre o crioulo

Continuando a divagar sobre o crioulo (criôlo), que tanto me encanta, começo por dizer que não lhe resisto sempre que para tal tenho ocasião. É frequente nas minhas deslocações a Lisboa, ao tomar o barco no Barreiro, ouvir guineenses a falar criôlo. Tenho que meter conversa. É uma surpresa para eles e também motivo de alegria para ambas as partes. E já tem acontecido, durante os nossos diálogos, serem referidas pessoas conhecidas dos participantes na cavaqueira.

O crioulo é uma língua, ou dialecto (deixo a definição para os filólogos) com uma enorme riqueza de expressões idiomáticas que, apenas quem as entenda em toda a sua plenitude e envolvência, consegue captar o seu verdadeiro significado e alcance. Isso só se consegue dominando bem a língua e, sobretudo, conhecendo os hábitos, usos, costumes e filosofia de vida dos naturais da Guiné.

Como exemplo, vou contar uma caso que se passou e que ilustra bem o quanto uma expressão dita em crioulo tem um impacto e uma graça que se perde dita em português.

Aconteceu em Bissau. Na altura, eu trabalhava na NOSOCO, cujo edifício serviu durante a guerra como sede e armazém da Manutenção Militar. Um dos meus colegas, o senhor Martins, respeitável guineense, de veneranda carapinha branca, encarregado do armazém daquela companhia, teve a infelicidade de perder um familiar. Morava no chamado Bissau Velho, próximo da fortaleza da Amura. Eu e mais alguns colegas deslocámo-nos a sua casa a fim de lhe prestarmos a nossa solidariedade. Num dos compartimentos estava a urna do defunto rodeada de muitos familiares e amigos carpindo o infausto acontecimento.

Dirigi-me a ele com as palavras usuais destas ocasiões. Como o vi bastante abatido e ansioso perguntei-lhe como se estava a sentir. Resposta pronta em crioulo que me arrancou uma escandalosa gargalhada que de imediato tentei reprimir, dadas as circunstâncias:
- Casa inchi kum. Nim kau de tira pide ká tem.- Creio que compreendem o significado que é:
- A casa está tão cheia, que nem existe um sítio onde se possa dar um peido.- Esta frase, dita em português, perde todo o impacto que o crioulo lhe dá. É como um poema traduzido para outra língua: esvazia-se grande parte do sentir que o poeta lhe deu.

A tentativa dos ex-militares que serviram na Guiné de usarem o crioulo, só demonstra o quanto foi e é grande a nossa vontade de entender aquele povo. Aliás, isso faz parte da característica dos portugueses que sempre souberem mesclar-se e tenta compreender os povos que foram conhecendo por esse mundo fora.

Essa vontade de comunicar na língua que as populações usavam maioritariamente, ou seja, o crioulo, é disso prova e o prazer que se espelha nas frases que vão partilhando com os restantes tertulianos, mesmo ao fim de todos estes mais de 30 anos (para alguns muito mais), é enternecedora.

Acontece, porém, que a grafia e o próprio significado que pretendem atribuir às palavras não é o mais correcto. Quanto à grafia, nada vou acrescentar pois, também eu, a esse respeito, sou um ignorante. As regras ortográficas, quanto julgo saber, só agora estão a ser objecto de estudo e implementação. Trabalho árduo deverá ser!

No que se refere à semântica, tanto de palavras como de expressões idiomáticas, aí já posso meter a colherada. Constatei ao longo dos anos que os nossos militares foram adulterando o crioulo não só quanto à correcta pronúncia como, até, alterando o real significado das palavras. Muitas vezes acontecia que eram os velhinhos, para alardear a sua sabedoria perante os maçaricos ou periquitos que os iniciavam no conhecimento da língua. O resultado foi que, sendo muitos desses ensinamentos errados, assim permaneceram e se divulgaram criando-se uma variante de crioulo que poderemos chamar crioulo de caserna. Para quem o utiliza, está correcto atendendo a que sabem exactamente o que pretendem dizer; mas, para outros, fora dos meandros desta variante soa estranhamente. Aqui está um tema interessante para estudo dos filólogos. Alguns exemplos:


(i) O José Teixeira, o Pastilhas da CCAÇ 2381, no seu diário que não perco e tanto me encanta - e, por que não confessar?, me comove (parabéns Teixeira, um especial abraço para ti) - usa frequentemente a expressão manga de chocolate. Julgo que ele pretende dizer manga de sakalata que significa muita confusão, muitos sarilhos ou dificuldades. A expressão sakalata é muito utilizada quando se pretende indicar que existe confusão, problemas ou discussão conflituosa. Dessa palavra deriva sakalatado que se aplica a uma coisa esquisita ou insólita.

(ii) Mais exemplos da adulteração do criôlo de caserna: a palavra máfè. E aqui abro um parentesis para dizer que tanto ouvi pronunciar máfe, tónica em e sílaba aberta, como mafé com a tónica em . E porquê? Porque a pronúncia das palavras, tal como acontece em Portugal, varia de região para região. Por exemplo, tchora (chorar) se dita por um manjaco soa com um “x” bem carregado; se for um papel, ouviremos “sora”. Regressando a máfe, que já vi no blogue traduzida como peixe, refere-se a qualquer acompanhamento do arroz (quando cozido toma o nome de bianda). É, comparativamente, aquilo que em Portugal chamamos conduto ou presigo. Claro que, por contingência, a maior parte das vezes o máfé era peixe, sobretudo peixe seco a que chamam kasseké. Quando o arroz cozinhado não tem máfé, diz-se rôz kuntango ou simplesmente kuntango.

(iii) Também é frequente a expressão partir mantenha com o sentido de cumprimentar. Começarei por esclarecer que no crioulo não existe o “r” final no infinito dos verbos. Deve dizer-se parte (dar ou oferecer). Parti´m (dá - me). Partíbu (dou-te). A confusão deve-se, suponho, à tentativa de adaptar a maneira como se fala o português ao crioulo. Claro que não funciona porque, enquanto nós dizemos dar os bons dias (daí o partir, dar) em criou não se utiliza o dar cumprimentos, mas sim falar. Desta forma, o correcto será, fala mantenha.

(iv) palavra que surge com frequência com significado errado é djubi, atribuído a menino ou rapaz. Menino diz-se minino e por vezes, de uma forma mais carinhosa, mininozinho ou rapazinho. Djubi, significa olha, vê e é também utilizado como forma de chamamento substituindo o nome da pessoa chamada. Passa-se o mesmo em português quando pretendendo chamar alguém dizemos: - Olha.

Peço desculpa por esta grande seca. A intenção é boa mas acabo por ser quezilento. Reconheço.

Chega. Tenho de ir ao baú desencantar algumas fotos em que está o Domingos Ramos para enviar brevemente com a pequena história da minha vivência com o que foi um dos primeiros e dos mais importantes chefes da guerrilha do PAIGC.

Guiné 63/74 - CDLXIII: O Rali Porto-Bissau (1): Jantar em Moreira de Cónegos


Moreira de Cónegos, Guimarães > Janeiro de 2006 > O grupo jantarista e excursionista que vai fazer o Rali Porto-Bissau, no próximo mês de Abril, confraternizando num restaurante nortenho...

© A. Marques Lopes (2006)


Texto do A. Marques Lopes

Camaradas e amigos:

Para saberem quem são estes alegres convivas:

(i) de pé, a contar da esquerda: Franscisco Allen, M. Lopes, Albano Costa, Casimiro e Hugo Costa;

(ii) assentados (nem se conseguiram levantar!), a contar da esquerda - Manuel Costa e Armindo.
Anteontem, 18 de Janeiro, este belo grupo (perdoem a modéstia) juntou-se num jantar num restaurante em Moreira de Cónegos, mesmo pegado ao estádio do valoroso clube Moreirense. Esta iniciativa, do Allen, teve como objectivo juntar os elementos que vão participar no, já anunciado, Rali Porto-Bissau, a fim de afinar alguns aspectos da sua preparação. E os participantes serão: Allen, M. Lopes, Hugo Costa (filho do Albano), Manuel Costa (primo do mesmo Albano) e Armindo.

A data da partida ficou marcada para 5 de Abril às 07H00. A ideia é chegarmos um dia antes dos participantes no Rali por via aérea, que irão a 14 de Abril (ou para podermos estar nessa data em Bissau, no caso de haver algum atraso pelo caminho), e que são:

(i) Carlos Marques dos Santos, de Coimbra,
(ii) Casimiro e Ernesto, do Porto,
(iii) António Almeida e um camarada DFA, o José Clímaco Saagum, soldado do 1.º Pelotão da Cart 2339 ferido, em 19 de Setembro de 1968 (segundo informação do Carlos Marques dos Santos).

O regresso está previsto para todos a 28 de Abril, de avião.

Foi um bonito convívio de ex-combatentes que mostraram ser um grupo coeso, na solidariedade e amor à Guiné, e à volta do pica-miolos que o Armindo encomendou. O Albano, que mostrou ser um sentimentalão, desabafou:
- Apesar de tudo, se não tivesse havido guerra na Guiné não estávamos aqui todos neste convívio... Era bom que a nossa tertúlia se juntasse um dia.

Já devem ter perguntado por aquela pretinha que aparece do lado direito. É a Kombi, uma guineense de 27 anos, que trabalha no Algarve e que decidiu vir visitar o Porto. Como é conhecida do Manuel Costa, este convidou-a para ir ao pica-miolos também.

No futuro haverá certamente mais notícias.

A. Marques Lopes

Guiné 63/74 - CDLXIII: O Rali Porto-Bissau (1): Jantar em Moreira de Cónegos


Moreira de Cónegos, Guimarães > Janeiro de 2006 > O grupo jantarista e excursionista que vai fazer o Rali Porto-Bissau, no próximo mês de Abril, confraternizando num restaurante nortenho...

© A. Marques Lopes (2006)


Texto do A. Marques Lopes

Camaradas e amigos:

Para saberem quem são estes alegres convivas:

(i) de pé, a contar da esquerda: Franscisco Allen, M. Lopes, Albano Costa, Casimiro e Hugo Costa;

(ii) assentados (nem se conseguiram levantar!), a contar da esquerda - Manuel Costa e Armindo.
Anteontem, 18 de Janeiro, este belo grupo (perdoem a modéstia) juntou-se num jantar num restaurante em Moreira de Cónegos, mesmo pegado ao estádio do valoroso clube Moreirense. Esta iniciativa, do Allen, teve como objectivo juntar os elementos que vão participar no, já anunciado, Rali Porto-Bissau, a fim de afinar alguns aspectos da sua preparação. E os participantes serão: Allen, M. Lopes, Hugo Costa (filho do Albano), Manuel Costa (primo do mesmo Albano) e Armindo.

A data da partida ficou marcada para 5 de Abril às 07H00. A ideia é chegarmos um dia antes dos participantes no Rali por via aérea, que irão a 14 de Abril (ou para podermos estar nessa data em Bissau, no caso de haver algum atraso pelo caminho), e que são:

(i) Carlos Marques dos Santos, de Coimbra,
(ii) Casimiro e Ernesto, do Porto,
(iii) António Almeida e um camarada DFA, o José Clímaco Saagum, soldado do 1.º Pelotão da Cart 2339 ferido, em 19 de Setembro de 1968 (segundo informação do Carlos Marques dos Santos).

O regresso está previsto para todos a 28 de Abril, de avião.

Foi um bonito convívio de ex-combatentes que mostraram ser um grupo coeso, na solidariedade e amor à Guiné, e à volta do pica-miolos que o Armindo encomendou. O Albano, que mostrou ser um sentimentalão, desabafou:
- Apesar de tudo, se não tivesse havido guerra na Guiné não estávamos aqui todos neste convívio... Era bom que a nossa tertúlia se juntasse um dia.

Já devem ter perguntado por aquela pretinha que aparece do lado direito. É a Kombi, uma guineense de 27 anos, que trabalha no Algarve e que decidiu vir visitar o Porto. Como é conhecida do Manuel Costa, este convidou-a para ir ao pica-miolos também.

No futuro haverá certamente mais notícias.

A. Marques Lopes

Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 2006 > A escola

© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)


Meu caro Luís:

Estou emocionado!...

Já nem deu para ler o texto do Dr. Paulo Salgado.

As fotos falam por si. Os locais por onde brinquei, onde dei alguns mergulhos... Melhor, ainda as pessoas que me viram nascer, que cuidaram de mim e com quem partilhei refeições, angústias e alegrias. Estou a referir-me aos meus irmaõs mais velhos (sim, meus irmãos de sangue) e de um primo-irmão dos quais lhe falei.

Os meus irmãos são, Fodé Biai, o primeiro a contar da direita para a esquerda e Bacar Biai, o segundo na mesma ordem e Malam Mané, o quarto, dos que estão de pé.

O Fodé e o Malam cumpriram o serviço militar em Farim e depois Bissau, sendo o Malam depois transferido para Bambadinca. O Bacar sempre esteve em Xime.

Guiné-Bissau > Região de Baftá > Xime > 2006 > Antigos combatentes que estiveram ao lado dos tugas... Entre eles, dois irmãos e um primo do José Carlos, membro da nossa tertúlia...

© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)


O curioso de tudo isso, quem tirou as fotografias é um colega meu, o Domingos Fonseca, trabalhei junto com ele na Escola do Ensino Básico Preparatório Amizade Guiné Bissau - Suécia, em Bissau. Ele leccionava a língua portuguesa e eu matemática, antes de ele ir tirar o curso de engenheiro técnico agrário na Argélia. Estive com ele no ano 2000 em São Domingos onde ele estava como responsável de AD.

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 2006 > A rua principal do Xime...

© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)


Um abraço amigo.

José C. Mussá Biai (1)
Engº Florestal
Instituto Geográfico Português (IGP)
Departamento de Conservação Cadastral (DCC)
Tel. 213819600 Ext. 310
Fax. 213819693

____________

Nota de L.G.

(1) vd posts de 9 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XV: No Xime também havia crianças felizes (1); e de 10 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVI: No Xime também havia crianças felizes (2)

Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 2006 > A escola

© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)


Meu caro Luís:

Estou emocionado!...

Já nem deu para ler o texto do Dr. Paulo Salgado.

As fotos falam por si. Os locais por onde brinquei, onde dei alguns mergulhos... Melhor, ainda as pessoas que me viram nascer, que cuidaram de mim e com quem partilhei refeições, angústias e alegrias. Estou a referir-me aos meus irmaõs mais velhos (sim, meus irmãos de sangue) e de um primo-irmão dos quais lhe falei.

Os meus irmãos são, Fodé Biai, o primeiro a contar da direita para a esquerda e Bacar Biai, o segundo na mesma ordem e Malam Mané, o quarto, dos que estão de pé.

O Fodé e o Malam cumpriram o serviço militar em Farim e depois Bissau, sendo o Malam depois transferido para Bambadinca. O Bacar sempre esteve em Xime.

Guiné-Bissau > Região de Baftá > Xime > 2006 > Antigos combatentes que estiveram ao lado dos tugas... Entre eles, dois irmãos e um primo do José Carlos, membro da nossa tertúlia...

© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)


O curioso de tudo isso, quem tirou as fotografias é um colega meu, o Domingos Fonseca, trabalhei junto com ele na Escola do Ensino Básico Preparatório Amizade Guiné Bissau - Suécia, em Bissau. Ele leccionava a língua portuguesa e eu matemática, antes de ele ir tirar o curso de engenheiro técnico agrário na Argélia. Estive com ele no ano 2000 em São Domingos onde ele estava como responsável de AD.

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 2006 > A rua principal do Xime...

© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)


Um abraço amigo.

José C. Mussá Biai (1)
Engº Florestal
Instituto Geográfico Português (IGP)
Departamento de Conservação Cadastral (DCC)
Tel. 213819600 Ext. 310
Fax. 213819693

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Nota de L.G.

(1) vd posts de 9 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XV: No Xime também havia crianças felizes (1); e de 10 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVI: No Xime também havia crianças felizes (2)

19 janeiro 2006

Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Chamarra, o guineense, menino no tempo da guerra colonial, entre o Albano (à direita) e o Camilo (à esquerda) levou-nos ao local onde era o posto avançado de Chamarra e havia esta placa guardada religiosamente: indicava Gatos Negros, CART 1612 (?)

© Albano Costa (2006)


Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Vestígios da presença dos tugas, a CART 1612 (?), "bravos e leais" ... É espantosa a emoção com que se mostram (os guineenses) e se (re)descobrem (os portugueses) estes toscos marcos da nossa passagem por terras da Guiné...

© Albano Costa (2006)


Curta mensagem do Albano Costa:

Caro Luís Graça: Lembrei-me de enviar estas fotos de Chamarra... o José Teixeira merece ver estas fotos foram tiradas num dos postos avançados da Chamarra, em Novembro de 2000. O diário dele está muito interessante.

Um abraço, Albano Costa.

__________________

Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):


Mampatá, 5 de Janeiro de 1969

Estou de volta a Mampatá, depois de uma coluna a Buba. Se todas as colunas de abastecimento fossem como esta, não me importava de fazer colunas. Estiveram cerca de 400 homens em movimento e cerca de 30 Km de marcha (60 km em dois dias) por picada e bolanha sem que o IN desse sinal de vida. Tive assim oportunidade de conhecer mais uma tabanca, ou seja Nhala, onde encontrei amigos da CCAÇ 2382.

Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.

A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).

A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (1)...


Chamarra, 10 de Janeiro de 1969

Chamarra é o meu novo habitat desde ontem. A despedida de Mampatá foi triste, chocante mesmo. Custou-me imenso deixar aquela gente que me ensinou que o Africano, sendo compreendido e ajudado, torna-se um amigo sincero. Alguns membros da comunidade foram pedir ao Chefe de Tabanca, Alferes Aliu Balde, para eu ficar. Este foi a Aldeia Formosa pedir ao Capitão, mas como o meu Pelotão segui para Buba e apenas ficou o 1º Pelotão em Chamarra, o Capitão autorizou que eu ficasse na Chamarra e viesse uma vez por semana a Mampatá dar apoio ao Enfermeiro da Milícia que me vai substituir, dado que a defesa de Mampatá ficou entregue a um Pelotão de milicia (2) A festa de despedida foi mais uma vez chocante para mim.

Chamarra é pequenina. Só meia dúzia de moranças e os habitantes parecem que também são boas pessoas.


Chamarra, 16 de Janeiro de 1969

Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN. O resultado, pelo que dizem demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.

Gadamael estava a ser atacada como nunca qualquer outra população da Guiné. Muitos homens, com as melhores armas, algumas utilizadas pela 1ª vez. Atacavam de longe ao ponto de os colegas de Gadamael pensarem que o ataque se dirigia a um sítio de ninguém, daí pediram à FA [Força Aérea] para bater a zona.

Quando os Fiat sobrevoaram o IN foram metralhados por uma quárupla antiaérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os T 6 (Bombardeiros) apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculamos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de chocolate que estourou. Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos.

Dentro de mim há uma confusão tremenda. A paz consegue-se fazendo a guerra. impondo-a até certo ponto através das armas que matam. É certo que aqueles queriam fazer guerra, estavam a atacar uma população que quer a paz, que quer ir para o seu trabalho na bolanha sem arma, sem medo que alguém lhe surja no caminho com intenções assassinas. Uma população que quer viver na sua tabanca despreocupada, sem precisar de correr a toda a hora para um abrigo e dormir debaixo de terra para não ser surpreendida, uma população que quer viver sem precisar de matar, mas haverá homens com coração de pedra que não sinta tanta morte, homens que foram levados talvez à força ou com uma dose maior de vinho de palma, como consta que acontece muita vez...

Dizem-nos que temos de fazer a guerra para impor a paz, que aqueles que morreram e os que ainda estão vivos, são um perigo para a sociedade guineense. Eu e os meus camaradas, tantos outros, já sofremos muito por sua causa. Arriscamos a nossa vida a todo o momento por causa dessas mãos assassinas, cujo prazer é matar. Um prazer cego ao ponto de verem os seus camaradas morrerem às dúzias e continuarem a luta. Será prazer, ou será a convicção da sua razão que os faz lutar ?

Porque é que estes homens querem a guerra, quando podiam viver em paz, do seu trabalho, na sua Tabanca, no seu lar com os seus filhos ? Que os faz lutar ? Que faço eu no meio disto tudo ? (3)


Chamarra, 23 de Janeiro de 1969

É tremendamente chocante ver morrer um camarada na guerra, mas custa muito mais quando se morre por acidente, por descuido e sobretudo quando a morte é causada por vingança de outrem.

Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.

Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer.


Chamarra, 25 de Janeiro de 1969

A minha Companhia está de luto. Tantas colunas de abastecimento de Aldeia Formosa para Buba e vice versa, de Aldeia para Gandembel e na última que fazia, quando se retirava para Buba, um soldado que nunca saíra para o mato por estar impedido à Secretaria morreu. Dizem que foi por descuido, pois parece que ia em cima de uma viatura quando rebentou a primeira emboscada, saltou, reagiu com os outros ao IN e saltou novamente para o matador. Alguns metros à frente rebentou uma mina e foi projectado a grande altura, morrendo segundo consta, algumas horas mais tarde no Hospital de Bissau. Fim de Janeiro triste...

Chamarra, 30 de Janeir de 1969

Já segui para Bissau, sob prisão, um soldado branco suspeito de ser o causador dos mortos em Aldeia Formosa no dia 22. Afinal o Russo, impedido à Secretaria, que foi ferido na mina anticarro que destruiu o matador, não morreu, nem ficou sem pernas. De qualquer modo segui para Bissau bastante ferido num braço. A guerra para ele acabou.


_____

Notas de L.G./J.T.

(1) Vd o resto do diário, referente à Maimuna, no post de 31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDVI: Maimuna, uma história de amor (José Teixeira) (L.G.)

(2) Soube um ano depois, após a queda de Gandembel, que a situação piorou de tal maneira que foi lá colocada um Companhia (J.T.)

(3) Que admiração tenho hoje por este povo, pobre e humilde, puramente selvagem Como eu gostava, hoje, de ser selvagem como eles. Amavam a sua terra, queriam ser donos do seu próprio destino. Lutavam. Sacrificavam-se, palmilhando quilómetros e mais quilómetros, para dizerem:
- Estamos aqui na nossa terra, ide-vos embora! -, como tantas vezes ouvi, através do troar das suas armas, que teimosamente se recusavam acertar no alvo ou mesmo nas populações ditas fiéis, nas Tabancas por onde passei.

Um dia o Raul Fodé de Empada,, meu companheiro na profissão de assistir a população em cuidados de saúde nos seus poucos conhecimentos de enfermagem colhidos no contacto com a tropa portuguesa, em Empada, pessoa culta, teólogo muçulmano, disse-me:
- Tixeira nos queremos que tu firma na Guiné. Deissa arma e vem na Tabanca.- … [Teixeira, queremos que tu fiques aqui. Deixa a tua arma e vem para a nossa tabanca]... Deixa a tua arma, abandona o teu exército!, ele que acompanhava esse mesmo exército com a sua arma igual à minha, a bolsa de Enfermeiro...

Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Chamarra, o guineense, menino no tempo da guerra colonial, entre o Albano (à direita) e o Camilo (à esquerda) levou-nos ao local onde era o posto avançado de Chamarra e havia esta placa guardada religiosamente: indicava Gatos Negros, CART 1612 (?)

© Albano Costa (2006)


Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Vestígios da presença dos tugas, a CART 1612 (?), "bravos e leais" ... É espantosa a emoção com que se mostram (os guineenses) e se (re)descobrem (os portugueses) estes toscos marcos da nossa passagem por terras da Guiné...

© Albano Costa (2006)


Curta mensagem do Albano Costa:

Caro Luís Graça: Lembrei-me de enviar estas fotos de Chamarra... o José Teixeira merece ver estas fotos foram tiradas num dos postos avançados da Chamarra, em Novembro de 2000. O diário dele está muito interessante.

Um abraço, Albano Costa.

__________________

Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):


Mampatá, 5 de Janeiro de 1969

Estou de volta a Mampatá, depois de uma coluna a Buba. Se todas as colunas de abastecimento fossem como esta, não me importava de fazer colunas. Estiveram cerca de 400 homens em movimento e cerca de 30 Km de marcha (60 km em dois dias) por picada e bolanha sem que o IN desse sinal de vida. Tive assim oportunidade de conhecer mais uma tabanca, ou seja Nhala, onde encontrei amigos da CCAÇ 2382.

Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.

A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).

A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (1)...


Chamarra, 10 de Janeiro de 1969

Chamarra é o meu novo habitat desde ontem. A despedida de Mampatá foi triste, chocante mesmo. Custou-me imenso deixar aquela gente que me ensinou que o Africano, sendo compreendido e ajudado, torna-se um amigo sincero. Alguns membros da comunidade foram pedir ao Chefe de Tabanca, Alferes Aliu Balde, para eu ficar. Este foi a Aldeia Formosa pedir ao Capitão, mas como o meu Pelotão segui para Buba e apenas ficou o 1º Pelotão em Chamarra, o Capitão autorizou que eu ficasse na Chamarra e viesse uma vez por semana a Mampatá dar apoio ao Enfermeiro da Milícia que me vai substituir, dado que a defesa de Mampatá ficou entregue a um Pelotão de milicia (2) A festa de despedida foi mais uma vez chocante para mim.

Chamarra é pequenina. Só meia dúzia de moranças e os habitantes parecem que também são boas pessoas.


Chamarra, 16 de Janeiro de 1969

Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN. O resultado, pelo que dizem demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.

Gadamael estava a ser atacada como nunca qualquer outra população da Guiné. Muitos homens, com as melhores armas, algumas utilizadas pela 1ª vez. Atacavam de longe ao ponto de os colegas de Gadamael pensarem que o ataque se dirigia a um sítio de ninguém, daí pediram à FA [Força Aérea] para bater a zona.

Quando os Fiat sobrevoaram o IN foram metralhados por uma quárupla antiaérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os T 6 (Bombardeiros) apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculamos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de chocolate que estourou. Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos.

Dentro de mim há uma confusão tremenda. A paz consegue-se fazendo a guerra. impondo-a até certo ponto através das armas que matam. É certo que aqueles queriam fazer guerra, estavam a atacar uma população que quer a paz, que quer ir para o seu trabalho na bolanha sem arma, sem medo que alguém lhe surja no caminho com intenções assassinas. Uma população que quer viver na sua tabanca despreocupada, sem precisar de correr a toda a hora para um abrigo e dormir debaixo de terra para não ser surpreendida, uma população que quer viver sem precisar de matar, mas haverá homens com coração de pedra que não sinta tanta morte, homens que foram levados talvez à força ou com uma dose maior de vinho de palma, como consta que acontece muita vez...

Dizem-nos que temos de fazer a guerra para impor a paz, que aqueles que morreram e os que ainda estão vivos, são um perigo para a sociedade guineense. Eu e os meus camaradas, tantos outros, já sofremos muito por sua causa. Arriscamos a nossa vida a todo o momento por causa dessas mãos assassinas, cujo prazer é matar. Um prazer cego ao ponto de verem os seus camaradas morrerem às dúzias e continuarem a luta. Será prazer, ou será a convicção da sua razão que os faz lutar ?

Porque é que estes homens querem a guerra, quando podiam viver em paz, do seu trabalho, na sua Tabanca, no seu lar com os seus filhos ? Que os faz lutar ? Que faço eu no meio disto tudo ? (3)


Chamarra, 23 de Janeiro de 1969

É tremendamente chocante ver morrer um camarada na guerra, mas custa muito mais quando se morre por acidente, por descuido e sobretudo quando a morte é causada por vingança de outrem.

Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.

Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer.


Chamarra, 25 de Janeiro de 1969

A minha Companhia está de luto. Tantas colunas de abastecimento de Aldeia Formosa para Buba e vice versa, de Aldeia para Gandembel e na última que fazia, quando se retirava para Buba, um soldado que nunca saíra para o mato por estar impedido à Secretaria morreu. Dizem que foi por descuido, pois parece que ia em cima de uma viatura quando rebentou a primeira emboscada, saltou, reagiu com os outros ao IN e saltou novamente para o matador. Alguns metros à frente rebentou uma mina e foi projectado a grande altura, morrendo segundo consta, algumas horas mais tarde no Hospital de Bissau. Fim de Janeiro triste...

Chamarra, 30 de Janeir de 1969

Já segui para Bissau, sob prisão, um soldado branco suspeito de ser o causador dos mortos em Aldeia Formosa no dia 22. Afinal o Russo, impedido à Secretaria, que foi ferido na mina anticarro que destruiu o matador, não morreu, nem ficou sem pernas. De qualquer modo segui para Bissau bastante ferido num braço. A guerra para ele acabou.


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Notas de L.G./J.T.

(1) Vd o resto do diário, referente à Maimuna, no post de 31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDVI: Maimuna, uma história de amor (José Teixeira) (L.G.)

(2) Soube um ano depois, após a queda de Gandembel, que a situação piorou de tal maneira que foi lá colocada um Companhia (J.T.)

(3) Que admiração tenho hoje por este povo, pobre e humilde, puramente selvagem Como eu gostava, hoje, de ser selvagem como eles. Amavam a sua terra, queriam ser donos do seu próprio destino. Lutavam. Sacrificavam-se, palmilhando quilómetros e mais quilómetros, para dizerem:
- Estamos aqui na nossa terra, ide-vos embora! -, como tantas vezes ouvi, através do troar das suas armas, que teimosamente se recusavam acertar no alvo ou mesmo nas populações ditas fiéis, nas Tabancas por onde passei.

Um dia o Raul Fodé de Empada,, meu companheiro na profissão de assistir a população em cuidados de saúde nos seus poucos conhecimentos de enfermagem colhidos no contacto com a tropa portuguesa, em Empada, pessoa culta, teólogo muçulmano, disse-me:
- Tixeira nos queremos que tu firma na Guiné. Deissa arma e vem na Tabanca.- … [Teixeira, queremos que tu fiques aqui. Deixa a tua arma e vem para a nossa tabanca]... Deixa a tua arma, abandona o teu exército!, ele que acompanhava esse mesmo exército com a sua arma igual à minha, a bolsa de Enfermeiro...

Guiné 63/74 - CDLX: A verdade foi a guerra (A. Marques Lopes)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1970 >

A CCAÇ 12 (2º Grupo de Combate) atravessando uma bolanha, perto do Rio Corubal, na região de Mina/Fiofioli (segundo o Humberto Reis) ou na de Baio/Burontoni (segundo a minha interpretação). O ex-furriel mil Humberto Reis, sem quico na cabeça (!), é o primeiro tuga dos três que se vêem na fotografia (os outros dois são cabos).

Esta é uma das espectaculares fotos recuperadas (através de digitalização) de um conjunto inicial de 100 diapositivos (de um lote de mil...), e onde se incluem fotos áreas de diversos aquartelamentos e destacamentos da zona leste. O Humberto Reis, o nosso operações especiais - diga-se, por amor da verdade, que ele tinha o seu feitio mas não os tiques de ranger -, era na época um fã da fotografia, tinha uma excelente máquina e, além disso, sabia criar e manter óptimas relações com a Força Aérea, o que lhe permitia apanhar de vez uma quando umas boleias de heli ou de DO... Os diapostivos eram revelados na Suécia (!), o que explica a qualidade das imagens agora recuperadas, ao fim de 35 anos...

HUmberto: Mais uma vez, o meu/nosso muito obrigado por este teu gesto, sem preço, de amigo e camarada de guerra e de tertúlia... Prometo continuar a publicar, com regularidade, uma selecção do teu album de fotografias que me deixou deliciado... L.G.

© Humberto Reis (2006)


Caros camaradas:

O meu grande apreço pelas palavras do Paulo Salgado ontem divulgadas no blogue (1).

As nossas, destes tertulianos, vivências de guerra são a soma das vivências de cada um e a particularidade de cada uma delas, cheias de sentimentos e visões individuais. É isso que tem dado riqueza a todas estas narrativas, é verdade, mas penso que não há que esquecer o que atrás referi.

Em Barro, entrei numa cena idêntica àquela que ele refere, com desencontros de narração e justificações diferentes, de tal modo que, já no aquartelamento, cheguei a estar com a minha G3 apontada para outro alferes, que acusei de me abandonar. Mas deu para reflectir e contive-me.

Aquela noite em que fiquei em Sinchã Jobel (1), teve como consequência, além daquela minha noitada, uma prisão disciplinar, e consequente transferência de companhia, para outro camarada. Mas a este não o acusei de nada nem contribuí pessoal e directamente para a sua prisão.

Porque estou completamente de acordo com o que diz o Paulo Salgado é que não me espalhei em narrativas muito pormenorizadas das minhas situações, daquilo que eu vivi.
Os meus parabéns ao Paulo Salgado. Faço minhas as palavras dele.

Um abraço do

A. Marques Lopes

Coronel (DFA) na situação de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968)
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Notas de L.G.

(1) vd post do Paulo Salgado, de 18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (9): História e estórias

(2) Vd. pots de A. Marques Lopes sobre Sinchã Jobel (vd. localização desta antiga tabanca, mais tarde base do PAIGC, no mapa de Bambadinca, junto ao curso do Geba Estreito, entre Bambadinca e Bafatá:

30 de Maio de 2006 > Guiné 69/71 - XXXVI: Na bolanha dá para pensar...

30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIX: Sinchã Jobel II e III

3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XL: Sinchã Jobel IV, V e VI

5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII