Selecção e comentários do A. Marques Lopes:
Também sei dos massacres da UPA no Norte de Angola, e acho que ninguém os esqueceu. O Mário Dias (1) não sabe, mas eu também sei do massacre de Mueda, em 16 de Junho de 1960, em que as autoridades coloniais mataram centenas de nativos; do massacre da Baixa do Cassange, em Janeiro de 1961, durante uma revolta dos trabalhadores da Cotonang, tendo a tropa e a aviação matado, segundo o MPLA, mais de 10.000 angolanos; ou do massacre de Wiriamu, em 1973.... e também sei de quem, em Barro, matou, duma vez, 10 elementos de população civil controlada pelo PAIGC. Preto também foi massacrado...
Este é o texto que o Luís Cabral (2) escreve no seu livro Crónica da Libertação” (Lisboa: O Jornal. 1984. 65-73) a propósito do massacre de Pidjiguiti (3). Ele fala em mais de 50 mortos. Como ele refere nem a PIDE acreditou que a greve tivesse sido espontânea. E vejam-se os nomes que ele refere como empregados da Casa Gouveia, além dele próprio. E a Casa Gouveia é que tinha a maior parte dos marinheiros amotinados, também refere.
1. Excertos de Crónica da Libertação:
A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos; o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de "civilizado». Os restantes membros da tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.
O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para mafé, quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.
Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.
Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho, se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas quanto à sua açção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.
A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido [ PAIGC ] tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.
A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné [Conacri] e seguia os preparativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.
Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.
A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pijiguiti. Os homens desembarcavam confiantes em si próprios e nas cerimónias certamente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas sacrificadas teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproximava. Os capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer que os tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.
Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens estavam estacionados no recinto do cais de Pijiguiti. Nos seus espíritos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindicações.
Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia, mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. Homens como os que se encontravam ali, no Pijiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar a luta.
As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer - mais pão, mais justiça.
No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.
A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.
Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem, voltaram de novo a recompor-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.
A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.
Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas automáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heróicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.
Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.
À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.
À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais, iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pijiguiti. Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.
Guiné-Bissau > Bissau > Cais do Pidjiguiti
© Paulo Salgado (2005)
Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais de Pijiguití e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin (4) e outros colegas. Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.
Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.
Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.
Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pêlos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.
Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides [Pereira] e o [Fernando] Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau. Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Conakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar [Cabral] que se encontrava nesse momento em Angola. No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.
Entretanto, o Aristides tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.
Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse atribuir tal responsabilidade ?
O director-geral da PIDE insistiu para que o seu representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as. informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto. O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia, no próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo —disse o director-geral — e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.»
Toda a gente sabia o que eram os interrogatórios da PIDE, em Lisboa. Quantos não foram os patriotas portugueses e africanos que sucumbiram às torturas e maus tratos da polícia fascista!
O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela policia.
Carlos saiu nesse mesmo instante à minha procura. Foi primeiro à minha casa, embora isso tivesse sido imprudente, pois se alguém o visse a entrar no fim da tarde no prédio de três andares onde eu era o único africano residente, saberia logo que ele só podia dirigir-se à minha casa; procurou-me em seguida em casa da dra. Sofia Pomba Guerra.
A noite acabava de cair bruscamente quando finalmente me encontrou na Sede do Benfica. Chuviscava um pouco, mas mesmo assim saí à rua para falarmos longe de possíveis ouvidos curiosos. Carlos estava acompanhado de um amigo, quando me pôs ao corrente da situação. Disse-lhe que fosse imediatamente esconder-se e que só se mostrasse quando eu mandasse chamá-lo. Pedi-lhe o seu impermeável, e confirmei que tudo seria tratado de forma que ele pudesse sair do país ainda naquela noite.
Tomava-se indispensável encontrar o Elysée Turpin, o homem do nosso grupo capaz de conseguir um meio de transporte. Com a ajuda do meu irmão Toi, que tinha uma motorizada, saímos à procura do Elysée que sempre considerámos o homem mais difícil de encontrar em Bissau, depois das horas de trabalho. Encontrámo-lo finalmente e, informando-o da situação, disse-lhe que tinha de conseguir um carro para pôr o Carlos na fronteira naquela mesma noite. O único indivíduo das suas relações que tinha uma camioneta era conhecido notoriamente pelas relações com a polícia, mas não tínhamos outra escolha e não havia tempo para hesitações. Ficou combinado que o Elysée pediria o carro explicando abertamente qual o objectivo da missão. Confiámos assim nas boas relações existentes entre os dois, e também porque o Carlos era um jovem com muita simpatia e respeito, em Bissau, para o que concorria, além da sua idoneidade moral, o facto de ser um excelente praticante do futebol.
Guiné-Bissau > Bissau > Planta da cidade, da época a seguir à independência.
© A. Marques Lopes (2005)
Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem. Terminados os preparativos para a sua saída imediata, precisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos. Estava muito escuro e continuava a chuviscar. Aproximava-me da casa da sua mãe, no Chão de Papel. Ia todo envolvido no seu impermeável, quando senti que um carro se aproximava muito devagar atrás de mim. Não parei. Os faróis chegaram tão perto que pareciam queimar-me. O pára-choques do carro quase bateu nas minhas pernas, quando parou.
Voltei-me então e vi que se tratava de um jipe militar cheio de homens fardados; pensei logo que a sua chegada estava relacionada com a prisão do Carlos. Os militares riam quando arrancaram de novo, continuando a sua ronda em direcção à Central Eléctrica. Confesso que, apesar do fresco da chuva, estava a transpirar dentro do impermeável de borracha. Felizmente, os homens só quiseram divertir-se à minha custa.
Voltei para trás e aproximei-me da casa do Carlos. Tive de pedir ao irmão que o fosse procurar. É que eu tinha-lhe dito que se escondesse bem, mas não ficou estabelecido onde.
O Elysée apareceu confirmando que tinha conseguido o carro. Ele seguiria pela estrada do Aeroporto e o Carlos, na sua motorizada, iria juntar-se-lhe, logo que o víssemos. Ficou ainda assente que o Elysée faria tudo para estar de regresso antes das sete da manhã, para não faltar ao trabalho, não fosse a polícia ligar a sua ausência com a fuga do seu colega de serviço.
Chegou finalmente o Carlos. Via-se que estava preocupado, apesar da sua calma aparente. Dei-lhe o dinheiro e o impermeável, abraçámo-nos, tomou a motorizada e partiu. Eram mais ou menos dez horas da noite. O seu irmão mais novo devia passar pela Gouveia à hora da abertura dos escritórios para dizer que o Carlos estava doente.
Foi só depois da partida do Carlos, quando regressava a casa na pequena motorizada conduzida pelo meu irmão, que me apercebi dos erros e imprudências que foram cometidos: ele andou à minha procura em minha casa e noutros lugares e era muito natural que nos tivessem visto juntos conversando à porta do Benfica; entretanto, na manhã seguinte, nada se sabia do Carlos em Bissau. Convenci-me de que a PIDE, a famigerada PIDE que acabava sempre por saber tudo, facilmente me identificaria como sendo uma das pessoas que intervieram directamente na fuga do Carlos.
O meu estado de excitação era, pois, bastante grande no dia seguinte. Tentava imaginar como seria interrogado pela polícia e ia formando mentalmente as respostas que daria às suas perguntas. Recorri à dra. Sofia e ela aconselhou-me a tomar um calmante que me ajudaria a controlar. Arranjou-me um medicamento a que chamou a «pastilha da felicidade». Eu precisava de facto de muita calma, no caso de ser interpelado pela PIDE...
À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7.30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda.
Antes das oito horas, já o irmão do Carlos aparecia para dizer que ele estava doente e não podia apresentar-se na Gouveia. Alguns minutos depois, chegavam os homens da PIDE. Contactaram a direcção e perguntaram pelo Carlos. Saíram imediatamente e foram à casa da sua mãe, mas o Carlos tinha desaparecido sem deixar rastos.
O Elysée, entretanto, pedira licença para sair. Ia dormir...
Logo que recebeu a comunicação sobre o massacre de Pijiguiti, o Amílcar fez-nos saber que passaria por Bissau o mais breve possível, para fazermos o balanço dos acontecimentos e definir o caminho a seguir.
Comentário do A. Marques Lopes:
Naturalmente, as consequências trágicas desta greve foram aproveitadas pelo PAIGC. Como refere o Luís Cabral, a páginas 75 e 76 do seu livro:
2.Excertos de Crónica da Libertação:
O massacre de 3 de Agosto, com todo o seu terrível conteúdo de horror e desespero, servira para acordar a consciência de muitos nacionalistas hesitantes. Veio provar a necessidade de lutar por todos os meios para destruir o colonialismo, o que exigia um trabalho longo e duro, pleno de sacrifícios.
Foto: © CaboVerdeOnline.com(2001-2006). Com a devida vénia...
Na reunião com o Amilcar (19/9/959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios domártires de Pijiguiti.
Não podíamos brincar com um inimigo que provara mais uma vez ser de uma crueldade sem limites. Quando tivéssemos de agir contra ele, tínhamos de estar preparados para todas as eventualidades e ser capazes de não nos deixarmos matar impunemente.
Não restavam dúvidas que a repressão à greve de 3 de Agosto, e a maneira pronta como ela pôde ser organizada, provaram-nos que, na capital, o inimigo era e seria sempre mais forte do que nós. Tinha o seu exército, a sua polícia, os seus carros, o seu dinheiro para comprar a consciência de muitos dos nossos compatriotas. Quase toda a população urbana dependia das autoridades e das empresas coloniais para viverem; tudo isto colocava o grupo de patriotas nacionalistas numa situação de inferioridade manifesta.
Ao contrário, nas imensas zonas rurais onde vivia a maioria esmagadora do nosso povo, o homem não dependia dos colonialistas para viver: era, ao contrário, o homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o colonialista. Era do campo que vinham o arroz, a mancarra, o coconote, as hortaliças, e grande parte do dinheiro dos impostos. A população ali, não só não dependia dos colonialistas, como ainda não se identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do tempo de escravatura ao dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários, encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era lá que encontrava as forças para resistir à poderosa influência do inimigo.
A lição mais importante tirada do massacre de Pijiguiti, dizia-nos, portanto, que seria junto da população camponesa do nosso país que teríamos de procurar as forças necessárias para combater e vencer o colonialismo. Não devíamos sacrificar os nossos homens, o capital mais precioso da nossa vida, numa confrontação desigual na cidade. Devíamos, sim, organizar a nossa gente cada vez melhor, prepará-la cuidadosamente para a grande batalha que seria desencadeada, primeiro, no campo, onde acumularia as forças necessárias para se alastrar às cidades.
Impunha-se, desde então, começar a seleccionar os jovens mais capazes que teriam de sair do país, para receberem no estrangeiro uma preparação especial com vista à realização da grande tarefa que tínhamos à nossa frente. Depois da criminosa e sangrenta repressão aos corajosos grevistas de 3 de Agosto — mártires da gloriosa libertação do nosso povo — íamo-nos preparar cuidadosamente para entrar com força irreversível numa nova fase da luta (5).
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)
"Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto) (...).
(2) Luís de Almeida Cabral, meio-irmão de Amílcar Cabral (1924-1973), nasceu a 10 de Abril de 1931, tendo sido o primeiro presidente da República da Guíné-Bissau (1973-1980). Na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal reconhece, em 10 de Setembro de 1974, de jure e de facto, a independência da sua antiga província ultramarina (colónia, até 1951).
Luís Cabral assumiu a liderança do PAIGC após o assassinato de Amílcar, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973. Foi derrubado em 1980 por um golpe militar, liderado por João Bernardo Vieira ('Nino' Vieira), que jogou a facção guineense contra a facção dita cabioverdiana do PAIGC . Após 13 meses de detenção, foi para o exílio, primeiro em Cuba e depois em Portugal. Voltou à sua terra em 1999, depois de 'Nino' Vieira ter sido, ele próprio, derrubado por um outro golpe de estado...
Luís Cabral era empregado da Casa Gouveia em 3 de Agosto de 1959.
Vd. ainda a cronobiografia de Amílcar Cabral, em formato.pdf, disponível no sítio da Fundação Mário Soares.
(3) Repare-se que na edição de O Jornal, de 1984, a grafia que é usada é Pijigutí... Opta-se por usar a mais corrente ou vulgarizada (Pidjiguiti), mesmo que não seja a mais correcta, do ponto de vista lexicográfico...
(4) Sobre este fundador do PAIGC, vd posts de:
(i) 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC
" (...) O intensificar de actividades e constantes movimentações políticas levaram a que a PIDE reforçasse as perseguições e, consequentemente, muitos activistas foram sendo aprisionados e torturados nas diferentes celas de prisões. Este facto e outros, nomeadamente os acontecimentos de Pidjiguiti em 1959, levaram à tomada de decisão do Partido de instalar a sua Direcção no país vizinho independente - Guiné Conakry" (...).
(ii) 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVIII: Memórias de Turpin e da Bissau do seu tempo
"Mais informações, pormenorizadas, sobre o Turpin, por parte do Sargento Mário Dias, dos comandos, ex-camarada do Virgínio Briote (por cujo intermédio chegou esta mensagem) (...)
(5) Hoje esta data é feriado nacional na Guiné-Bissau e no local foi construído ao monumento aos heróis do Pidjiguiti.
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