Como prometido, o Pepito está cá, em Lisboa. E esteve hoje connosco, pelo menos com o Zé Neto (de manhã, na Fundação Marquês de Valle For) e comigo (à tarde, no meu local de trabalho).
Foi muita gentileza, da parte dele, ter-se deslocado só para me conhecer pessoalmente, dar-me notícias da sua terra (que ele ama com um coração muito grande), falar-me, com entusiasmo contagiante, da menina dos seus olhos - que é o Projecto Guiledje (com dj, como ele gosta que se escreva) - e, ainda, presentear-me com o livro de contos do seu pai, Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983), um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade, já aqui por nós justamente evocado (1). Noutra ocasião, farei a recensão bibliográfica de O Cativeiro dos Bichos, um colectânea de 25 contos, seleccionados pelos seus filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz), alguns dos quais escritos na prisão de Caxias, em 1966. O livro acaba de ser editado em Bissau (Fevereiro de 2006, edição de autor).
A conversa, de cerca de 1 hora, que tive com o Pepito (ninguém o conhece por Carlos Schwarz, nem quando foi ministro dos transportes num governo de transicção) só pecou por ser curta... Mas deu para, de imediato, eu fazer mais um amigo guineense...
Bem razão tinha o Zé Neto: vou cometer aqui uma inconfidência - e eventualmente sofrer as consequências da ira do autor da confidência - mas é uma homenagem aos dois, ao Zé Neto e ao Pepito. Escrevia-me há um mês atrás o nosso capitão:
" (...) Eu conheço pessoalmente o Engº Carlos Schwarz da Silva, o nosso Pepito. Passei uma tarde a conversar com ele em casa do nosso amigo comum, Engº António Estácio. Eles foram colegas de infância e condiscípulos, pois o Estácio também é guineense.
"Tenho a pretensão de conhecer o carácter dos homens ao fim de dois dedos de conversa. Não tão cientificamente como tu, profissional do ramo, mas, como dizia o outro, raramente me engano.
"E asseguro-te que o Pepito é do melhor que há. Talvez um pouco sonhador, porque abdica duma vida confortável que poderia gozar cá em Portugal, em troca das mil e uma tarefas que desenvolve na sua querida Guiné em prol do seu povo. É fácil entender que o seu espírito superior choca com certo primitivismo que grassa naquela região, mas não desiste e essa é a qualidade que faz dele um amigo que muito admiro e a quem dispenso a minha modestíssima colaboração sem reticências.
"Quando ele vier, para o mês que vem, vais confirmar o quer te digo" (...).
Só posso subscrever - inteiramente - a opinião do Zé Neto, que é um grande conhecedor da natureza humana. Foi, de facto, um privilégio conhecer, ao vivo, uma pessoa com a qualidade humana do Pepito. Espero que outros tertulianos também possam vir a conhecê-lo, de preferência na nossa querida Guiné, e na companhia do maior número possível de amigos e camaradas...
Guiné-Bissau > Guileje > 2006 > "Laranjada Convento / Mafra / Marca registada"... © AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Guiné-Bissau > Guileje > 2006 > "Composição: Sumo - Popa e óleo de laranja - Açúcar granulado - Água esterelizada / Corado artificialmente / Fabricado por Francisco Alves & Filho Lda / Venda do Pinheiro" © AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
E agora vamos a um pedido - quiçá um pouco insólito ! - que o Pepito me acabou de fazer, jà quase à despedida: ele precisa de um obus 14, para pôr no seu quartel de Guileje, agora em reconstrução... Algum de vocês sabe de um velho obus 14, para aí abandonado num qualquer ferro-velho da tropa ? Se souberem, digam-nos... Levá-lo até Guileje será outra carga de trabalhos, mas até lá folgam as costas...
O pedido justifica-se: ao que parece, Guileje foi o único quartel das NT bombardeado pelas... NT. Segundo o Pepito, o Spínola terá mandado arrasar tudo, posteriormente à retirada da CCAV 8350.
Nas limpezas e escavações que têm sido feitas, vão-se encontrando objectos do quotidiano dos tugas, alguns curiosos como garrafas de cerveja com o rótulo de papel intacto (!) ou garrafas de sumo de laranja - de um conhecido fabricante de refrigerantes de então, com sede em Venda do Pinheiro, Mafra... Publicam-se duas curiosas imagens de uma garrafa com inscrições pirogravadas... Em suma, isto já é quase arqueologia militar...
Divertidas, para o Pepito, têm sido as manifestações de humor (e de carinho) dos fulas para com os seus antigos aliados, os tugas: ele refere-se às gravações audio que estão a fazer e em que os antigas combatentes fulas, que estiveram do lado das NT, imitam descaradamente os tugas, quando estes estavam debaixo de pressão (na época ainda não se usava o termo stresse...):
- Seus c...! Seus f... da p...!
O Pepito prometeu-me depois mandar alguns excertos dessas gravações audio, reveladoras do superior sentido de humor fula... Ora quem diria! ... Eu, pessoalmente, sempre os achei inteligentes e com grande capacidade para negociar e estabelecer alianças estratégicas. O Pepito também corrobora este ponto de vista: os fulas são orientados para o poder, aliaram-se ao Spínola contra o Amílcar Cabral; e depois ao Luís Cabral, a seguir à independência, contra os balantas... Como diria o Príncipe de Salinas, protagonista do filme O Leopardo (Visconti, 1963), eles eram os leopardos, os leões, enquanto os novos vencedores - que se aliaram ao PAIGC - não passavam de chacais e de hienas... Mesmo assim, eles têm a consciência de que, presas e predadoras, têm de coexistir (mais ou menos pacificamente) naquela terra, que é a sua terra...
O Pepito mostrou-se, por outro lado, deveras impressionado com o que está a acontecer com o nosso blogue e o ritmo de produção das nossas memórias... Eu avancei com uma explicação de vulgata sociológica:
(i) a nossa geração, os machos, têm mais de ou quinze anos de esperança média de vida;
(ii) para muitos de nós, a experiência da guerra colonial terá sido porventura o acontecimento maior, talvez o amis emociante, das nossas vidas cinzentas;
(iii) tivémos a sorte de sobreviver e, ao fim de cinco anos, retomar a marcha do comboio, não contando com os que ficaram precocemente pelo caminho: os mortos, os traumatizados, os inadaptados, os desadaptados, os cacimbados;
(iv) muitos de nós já deixaram a vida activa e sentem o vazio do presente: os filhos que partiram, os netos que só se vêem nos dias festivos, as companheiras que sempre se recusaram a partilhar essa experiência, a guerra, que é uma actividade de machos;
(v) enfim, a memória selectiva do passado, a disponibilidade de tempo, a redescoberta da camaradagem, o apelo dos verdes anos...
O Pepito não dispensa a visualização diária do nosso blogue. Acha que este fenómeno (a vontade de abrir o livro, o baú da memória...) também está a acontecer na Guiné: os antigos combatentes sentem necessidade de falar do passado e passar a escrito (ou ao gravador) as suas memórias... A necessidade de falar da luta, na cidade ou nas matas, com alguém...
Grande parte da memória (escrita) de guerra de libertação, na posse do PAIGC, dos seus militantes e ex-militantes, desapareceu, foi destruída, extraviou-se ou foi parar à... Fundação Mário Soares. Há um sério risco da geração pós-independência ver amputada uma grande parte da memória do seu povo, a luta pela independência, a difícil construção da Guiné-Bissau, a revolução que devorou os seus filhos, a fabricação dos novos mitos, os ajustes de contas, o cinismo pós-revolucionário...
Daí que o Pepito e os seus colaboradores da AD - Acção para o Desenvolvimento estejam afanosamente a gravar depoimentos dos antigos combatentes e habitantes de Guileje... Começaram pelas bases, mais acessíveis e espontâneas... Numa segunda fase, esperam poder entrevistar os dirigentes, os comandantes operacionais, os comissários políticos, quando as defesas psicológicas e as pressões dos pares se começarem a quebrar...
Nós também cá temos esse problema: como diz o Jorge Cabral, há ainda muito boa gente (militar) com culpa e vergonha de ter feito (e perdido) a guerra da Guiné, a começar pelos nossos oficiais superiores... A hierarquia militar não me parece ainda disposta a dar a senha e a contra-senha de acesso aos arquivos militares da guerra colonial...
O que o Pepito e a sua ONG estão a fazer é um trabalho meritório e sobretudo patriótico, com dividendos para o futuro... Não há futuro para um povo que tenha perdido a memória e a identidade. E o tempo urge, porquanto a geração que fez a guerra colonial (ou a guerra de libertação, conforme os lados do campo ou da barricada), está a desaparecer... Mais rapidamente na Guiné, devido à menor esperança média de vida à nascença dos homens guineenses da geração da guerra(2)...
Também falámos da actual situação económica, social e política da Guiné-Bissau. Dos medos e das esperanças que os guineenses sentem em relação ao futuro. Do retorno à pertença e à identidade étnicas, na ausência de um Estado de direito que garanta a protecção e o respeito do indivíduo e da sua família... Dos terríveis acontecimentos de 1998, que levaram o Pepito e a família a refugiar-se em Cabo Verde, terra de seu pai... E do doloroso regresso a Bissau, um ano e tal depois, o retorno à casa completamente pilhada, violada, destruída... Os livros, as fotografias, as memórias de uma vida... O que é espantoso é ouvir este homem, que é um profissional do optimismo, contar isto sem ódio, sem ressentimento, sem rancor, qause sem mágoa... Tem vindo a recuperar algumas coisas, com emoção: uns negativos, umas cartas, uns livros... E isso é suficiente para lhe dar alento...
Para além das suas obrigações como deputado (independente, creio eu), o que mais lhe dá gozo é viajar de jipe - apesar dos problemas de coluna de que já sofre, em consequência dos milhares de quilómetros feitos através das picadas da Guiné... E estar no sul, em Guileje, com os seus amigos e vizinhos... A Mata do Cantanhez, o futuro Parque Transfronteiriço do Cantanhez, é um espanto, com riquíssima fora e fauna - onde se incluem elefantes ! - e, felizmente, ainda ao abrigo, devido ao seu isolamento, dos apetites vorazes da clique político-militar no poder em Bissau e em Conacri...
Last but not the least, o Pepito também gostaria de ter contactos com todas as companhias que passaram por Guileje e, se possível, ter acesso a uma resumo da sua actividade operacional na região. Não creio que isso seja difícil de conseguir... Mais difícil será desencantar o raio do obus 14!...
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Notas de L.G.
(1) pots de 16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)
"(...) Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.
"Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schultz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.
"Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu" (...).
(2) No âmbito do Projecto Guiledje, são consideradas acções prioritárias, entre outras, a recolha de documentos históricos, e nomeadamente:
(i) fazer entrevistas e tirar fotografias a testemunhas do tempo de guerra, recorrendo às rádios locais e à televisão comunitária, e pedindo o apoio a pessoas que possam identificar com facilidade testemunhas que viveram a batalha de Guileje;
(ii) criar um banco de fotografias com os marcos e as referências de guerra que ainda existam no antigo aquartelamento de Guileje;
(iii) recolher registo em suporte de papel, digital ou audivisual, com interesse documental sobre a época;
(iv) recolher canções de luta, em especial as referentes a Guileje, e editá-las para conservação em CD-ROM...
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