16 fevereiro 2006

Guiné 63/74 - DXLIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo

Post nº 544 (DXLIV)



Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968> Bajudas da tabanca (1): a Maria, a lavadeira do nosso primeiro... Ainda recentemente mandou partir saudades ao seu amigo tuga, através do Pepito

© José Neto (2005)


XIX parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).




A Operação Bola de Fogo

A abertura da picada estava a dar pelas barbas à nossa tropa.

Era impossível jogar com o elemento surpresa porque tornava-se necessário retirar abatizes, detectar e fazer explodir fornilhos (até uma viatura GMC em tempos abandonada pelas NT foi pelos ares porque se desconfiava que estava armadilhada) e, principalmente, derrubar árvores para substituir os troncos apodrecidos que, no leito dos regatos, serviam de ponte para a passagem de viaturas.

Os turras nem precisavam de atravessar a fronteira para morteirar os lenhadores. E nós não podíamos ripostar por respeito às convenções internacionais.

Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968> Bajudas da tabanca (2)...

© José Neto (2005)


Ao fim de duas ou três semanas, com muitos ferimentos ligeiros, mas sem qualquer morto, o itinerário foi dado como praticável e ia seguir-se a segunda fase, que era a marcha da companhia para Gandembel.

Parecia-nos que, das duas, a CCAÇ 2316 era a que ia avançar, já que a CCAÇ 2317 tinha sido inicialmente designada para nos substituir em Guileje, mas afinal veio a ser a esta última, a do 1º Sargento Martins, comandada pelo Capitão Barroso de Moura, a quem coube o petisco.

Ao mesmo tempo, como manobra de pressão, iniciou-se do lado norte a abertura da picada Chamarra – Gandembel.

A valentia e pertinácia dos bravos de Gandembel devem ter impressionado o inimigo que fez deslocar para aquela zona um potencial de fogo considerável.

Pelo itinerário de Chamarra juntou-se à CAÇ 2317 a CART 1689 e, com acções pontuais dos Paraquedistas e dos Comandos e o apoio do fogo de artilharia e bombardeamentos dos Fiat da Força Aérea a posição consolidou-se, mau grado as flagelações contínuas de que era alvo.

Guiné > Guileje > 1968 > Bajudas da tabanca (3)... © José Neto (2005)

Mas o cerne da questão continuava. Como o IN precisava de manter o reabastecimento dos seus grupos que actuavam no interior do território, passou a utilizar trilhos um pouco a sul de Gandembel, perto de Paroldade, e esses trilhos cruzavam-se com as nossas colunas que também iam reabastecer o novo aquartelamento.

Nestas condições, cada reabastecimento nosso era uma autêntica operação de três, quatro dias, com fogachadas por todos os lados.

Na última das três operações desta natureza em que a minha companhia e outras unidades estiveram empenhadas, houve três mortos, sendo um nosso (o 1º Cabo José Augusto da Silva Leal), outro do Pel Caç Nat 51 (o Furriel Milº Sebastião Dionísio) e o terceiro do Pel Rec Fox 1165 (o Soldado Manuel Vieira).

Dois soldados nossos foram gravemente feridos e evacuados para Lisboa, o Júlio Rodrigues Calado e o José Alves Pereira e mais doze, de várias patentes, dos quais três do Pel Rec Fox 1165, feridos com menos gravidade e evacuados para Bissau.

O regresso ao quartel foi difícil e dramático.

O Capitão Corvacho teve de pedir fogo dos obuses de 8,8 cm dando as coordenadas dum lugar já bem do outro lado da fronteira, mas que sabia ser o ponto de onde o IN o estava a atacar com armas pesadas. O alferes comandante da força de artilharia hesitou e, ao pedir a rectificação dos elementos de tiro, fez saber que o fogo ia cair na zona da fronteira da Guiné-Conacri. Pelo rádio percebeu-se bem a irritação do Capitão que insistiu e perguntou ao alferes se desconhecia que ele era oficial de Artilharia.

Resta um pormenor que revela a grandeza dos homens quando confrontados com situações extremas. Aquando do regresso desta última operação os tempos calculados para o trajecto modificaram-se devido à forte concentração de fogo do IN, com as consequências que já descrevi, e o Capitão Corvacho tinha a certeza que, se permanecessem na mata depois do sol-posto, poucos sairiam dali com vida. As viaturas rodavam em marcha lenta porque havia que inspeccionar cada metro da picada. A certa altura veio um grito da frente da coluna:
-Mina!

O Capitão acorreu ao local e viu uma granada de morteiro intacta espetada entre dois troncos dum passadiço sobre um regato.

O tempo não chegava para efectuar todos os procedimentos e o mais rápido, destruir o engenho a tiro, estava fora de hipótese porque também se destruía a obra que dava passagem às viaturas. Chamou o Furriel Arclides Mateus, especialista de minas e armadilhas, e mandou afastar o pessoal.

Os dois deitaram-se, olharam em toda a volta do objecto e o Arclides disse ao Capitão:
-Tenho quase a certeza que a espoleta não esta armada. Estou a ver a cavilha. Saia daqui que eu vou puxá-la para cima e seja o que Deus quiser.

O Capitão Corvacho encarou o Arclides, recuou dois passos e disse:
-Vou ficar aqui atrás de si porque tenho de levar a companhia até ao quartel.

Quando o Arclides pousou o objecto no chão, inerte, um apertado abraço uniu aqueles dois corajosos combatentes.

Mais ou menos por esta altura chegou à Guiné o Brigadeiro António de Spínola, logo depois promovido a General, para substituir o General Schultz no Governo e Comando-Chefe da Província.

Notou-se perfeitamente uma alteração na cadeia de comando principalmente porque, como diziam os soldados, enquanto o primeiro nunca tinha saído do asfalto de Bissau, o segundo aparecia em todo lado sem se fazer anunciar.

Uma das suas primeiras visitas foi ao inferno de Gandembel onde quase obrigou à força o tenente piloto do helicóptero a descer. Foi-lhe fácil concluir que a posição era pouco sustentável e ordenou a retirada progressiva de modo a salvar a face das nossas tropas.

Constou, não posso garantir, mas acredito, que naquela aventura, as NT tiveram cinquenta e dois mortos e muitos feridos graves.


© José Neto (2005)

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