17 fevereiro 2006

Guiné 63/74 - DLII: Fátima, a furtiva gazela

Excertos do Diário de um tuga. 20 de Agosto de 1969 (1)

Os dias em Sare Ganà [ no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá] ainda vão sendo suportáveis, à aparte o calor, as moscas e o estado de sítio...

As noites, essas, é que são longas e penosas. O que me custa mais é não poder ler. Os meus soldados fulas estão de serviço, reforçando o sistema de autodefesa (2).

Por causa de um possível ataque da guerrilha (3), é proibido fazer lume ou foguear na tabanca. Aqui come-se cedo e deita-se cedo. Ficam os vampiros dos mosquitos. Por sorte, não apreciam lá muito o meu sangue. Deve-lhes saber a uísque.

Resta-me a companhia silenciosa e furtiva da Fátima, uma das mulheres do comandante da milícia: logo ao segundo ou terceiro dia, introduziu-se-me, lesta como uma gazela na palhota onde durmo, junto ao espaldão do morteiro. Tapou-me a boca com a mão, esboçou um sorriso cúmplice, puxou o pano de chita até à cintura, virou-se delicadamente de costas e ofereceu-me o seu esguio corpo negro, ressumando húmidos odores da floresta!...

De pé, ligeiramente curvada para a frente, enigmática como uma máscara, lasciva como a serpente bíblica, submissa como uma fula!

Não é bonita, o rosto deve-lhe ter sido marcado pela varíola, quando mais nova... Mas é sensual e ainda jovem.

Mulher africana.
Pano tradicional de Cabo Verde.

© Luís Graça (2005)


Tenho dificuldade em perceber a sua atitude e em advinhar-lhe a idade. Terá menos de trinta. Trocámos apenas olhares no primeiro dia, na linguagem mais universal dos seres humanos.... E, tal como tinha chegado, partia depois, furtivamente, pela calada da noite, sem dizer uma única palavra em português ou crioulo: a única, de resto, que até agora lhe ouvi, foi uma estranha corruptela do meu apelido.

O affaire (que palavra tão deslocada aqui no cú do mundo) foi celebrado com uma singela troca de roncos: dei-lhe a minha toalha de banho turca e fiquei-lhe com a sua pulseira de missangas vermelhas e brancas como recordação das estranhas noites de Sare Ganà.

Deveríamos ser, ali, em Sare Ganá, os dois seres mais deslocados e solitários do mundo... Nunca mais a vi, nem cheguei a saber a sua verdadeira estória.


Luís Graça (ex-furriel mil Henriques da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
_________

(1) Post já aqui reproduzido com outro título: 11 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXVIII: As estranhas noites de Sare Gana


(2) Vd. post o post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu


"(...) 15 de Agosto de 1969:

"1. Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu, no sub-sector de Geba. Estive aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa. O que não é irónico, porque a população é fula.

"Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá é uma espécie de aldeia estratégica. Aqui termina a nossa soberania territorial, a norte do Rio Geba e começa a zona de intervenção do Com-Chefe que inclui, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio.

"É aqui que vive o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, foram no mato (leia-se: aderiram à guerrilha ou fugiram das NT). Hoje o seu regulado está circunscrito ao perímetro de Sare Gana e a mais duas ou três tabancas (Sare Banda, Sinchã Satu...).

"Quase todos os dias ouvíamos os Fiats bombardearem Sinchã Jobel (...)".


(3) Vd. post de A. Marques Lopes, de 28 de Maio de 1969 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968)

Sem comentários: