17 fevereiro 2006

Guiné 63/74 -DXLVI: Estórias cabralianas (5): o Amoroso Bando das Quatro em Missirá

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Reguladodo Cuor > Missirá > 1969 > Aqui esteve destacado, com o seu Pel Caç Nat 63, o Alf Mil Art Cabral, em 1970/71 /(1)

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006)


O Amoroso Bando das Quatro (2)

Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; hoje, advogado e professor universitário):

Nos Destacamentos em que vivi, todos eram bem recebidos, à boa maneira da gente da Guiné, cuja cativante hospitalidade foi muitas vezes confundida com subserviência ou portuguesismo.

Djilas, batoteiros profissionais, artesãos, doentes, feiticeiros, alcoviteiros, parentes dos soldados, visitavam o aquartelamento e às vezes ali permaneciam, fazendo negócios, combinando casamentos, tratando-se ou tratando, ou simplesmente descansando. Desconfio mesmo que alguns guerrilheiros terão passado férias em Missirá…

Uma regra porém, tinham todos de cumprir à chegada. Deviam apresentar-se ao Comandante, dizer quem eram e o motivo da visita. Claro que muitos mentiam, o que era irrelevante, pois o que interessava era o significado simbólico da apresentação, como expliquei muitas vezes aos que não concordavam com esta política de porta aberta.

Estávamos pois, habituados às mais estranhas personagens, mas ficámos agradavelmente surpreendidos, quando num dia de Dezembro, ao pôr-do-sol, entraram no quartel quatro trabalhadoras sexuais. Eram jeitosas fulas do Gabu que, respeitadoras da hierarquia, comigo combinaram os preços e as condições dos serviços, encarregando-me da cobrança.

Encontrando-se o Furriel Branquinho com paludismo e o cabo Morais com dor de dentes, restavam apenas sete brancos, capazes de usufruir de tão inesperada benesse. Efectuados os pagamentos, começou a actividade, que eu previa satisfatória, mas que a curto prazo foi interrompida por alta gritaria.

Primeiro, irrompeu uma, dizendo ter sido enganada, pois cabo e furriel a queriam usar, com um só pagamento. Acontecera que o cabo substituíra o furriel na função, pensando que a mulher não repararia, esquecendo-se que o Furriel tinha um braço engessado, pormenor que logo a alertou. Furiosa, acolheu-se na minha cama, juntando-se à que lá se encontrava.

Ainda nem um quarto de hora passara, logo à porta do abrigo aparece outra, queixando-se do Cabo Rocha. Dizia ela que não era como as raparigas de Lisboa, que até no sovaco… Também esta se meteu na minha cama.

De seguida, surgiu a terceira afiançando que o Básico-Cozinheiro era suma bajuda, pois sangrava, sangrava. Claro, mais uma na minha cama.

Eis-me assim feito sultão, aconchegado entre as quatro, tranquilo e em Paz. Rei e súbdito, protector e protegido, entre seios e ventres, negros e suaves, nunca dormi tão bem.
De manhã partiram.

Quem as teria mandado, passou a perguntar todos os dias o Básico-Cozinheiro, sarado já o freio e louco de desejo.

Garanti-lhe ter sido uma oferta do Movimento Nacional Feminino. Convencido, sei que lhes escreveu, implorando uma repetição. Nunca lhe responderam. E o certo é que elas não voltaram…

© Jorge Cabral (2006)

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(1) Amigos e camaradas: Deixem-me hoje ser tendencioso: Quero confessar aqui, em público, que sou fã das estórias cabralianas, o que não significa menor apreço pela produção literária dos demais tertulianos... L.G.

Jorge: Da tua janela vê-se outra Guiné, outra guerra, outro mundo, os homens e as mulheres em carne e osso… O teu sentido de humor é único… Sou fã das tuas short stories… Cuida-me bem dessa mina literária… Eu sei que é uma técnica difícil… Quanto à tua carta (que eu pressupus aberta…), ela merece o meu aplauso e a minha total concordância (3)… Amigalhão, um abraço. Luís Graça

Sobre a pessoa do Jorge Cabral, vd. post de 17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXII: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Fá, 1969/71)

(2) Vd. posts anteriores:

21 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCIII: Bendito Cabral, entre as mandingas de Fá e as balantas de Bissaque

5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...


"A mulher do Major e o castigo do Cabral


"Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso (...)


Guiné 63/74 - CDXXII: Estórias cabralianas (2): rally turra ?

"Numa tarde de tédio convenci o motorista da viatura existente em Missirá, um humilde Unimog, a dar um passeio. Pretendia visitar o Enxalé, seguindo pela estrada de Mato Cão, pela qual não passava qualquer veículo há muito tempo.

"Progredimos alguns quilómetros, e perto de S. Belchior, ouvimos tiros, pelo que retrocedemos, perdendo no regresso um jericã (...)"


6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: Estórias cabralinas (3): o básico apaixonado

"O Pel Caç Nat 63 esteve quase sempre em Destacamentos. Comigo em Fá e Missirá. Antes no Saltinho, e depois no Mato Cão.

"Para os Destacamentos eram mandados os "especialistas" que a CCS [do Batalhão sediado em Bambadinca] não queria. Assim, tive maqueiros que não podiam ver sangue, motoristas epilépticos e até um apontador de morteiros cego de um olho. Tudo boa rapaziada, aliás! (...)"

18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVIII: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos

"Dos quatro Comandantes de Bambadinca que conheci, apenas o Polidoro Monteiro me mereceu consideração. Dos outros nem vou dizer o nome, e de dois a imagem que guardo é patética (...)".

(3) Vd post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

"O Jorge era, para mim, o mais paisano dos militares que eu conheci na Guiné: alferes miliciano, foi o comandante do Pel Caç Nat 63 (...).

"Em Fá [e depois em Missirá] não se limitava a ser um heterodoxo representante do exército colonial, actor e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, amigo do PAIGC, poeta, antropólogo, feiticeiro, cherno, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais. Um verdadeiro Lawrence da Guiné. Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente cafrealizado!" (...)

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