18 maio 2006

Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69 )

Guiné > Fronteira sul com a Guiné-Conacri > CCAÇ 2317 (1968/69) > Posição, no mapa de Guileje, das nossas posições em Gandembel e Ponte Balana, nas margens esquerda e direita e do Rio Balana, abandonadas em menos de um ano (Abril de 1968-Março de 1969).

Texto do Idálio Reis (ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1)

Caro Luís Graça:

Não me contive perante a catadupa de missivas que o fora-nada vai recebendo. Assim, surge esta segunda mensagem, a reiterar com o tempo.

O seu fundamento serve tão-só para também dar o singelo contributo de um ex-alferes miliciano, a quem lhe foi dado a conhecer essa Guiné profunda, e que hoje vai sendo divulgada tão bem pelos companheiros da Tertúlia.

A forma que utilizo, com anexações, torna-se-me mais fácil, pois permite colmatar falhas/gralhas na escrita.

Até breve. Um cordial abraço a todos os companheiros do blogue. Idálio Reis.

Companheiros da Tertúlia Luisiana:

Os contributos que convergem para o nosso blogue, jorram a uma cadência invulgar, tais são a frequência e a intensidade com que nos surgem, surpreendem e entusiasmam, que acaba por me impulsionar a não prorrogar em demasiado, um tempo quedado no mutismo, seguramente a postura menos atenciosa e cordial.

Já tive a oportunidade de visionar o imenso arquivo já disponível, ainda sem o atento grau de leitura que o mesmo justifica e merece, mas que me permite ter uma noção generalizada do que efectivamente ele representa, consubstanciado numa antologia de diferenciadas narrativas de acontecimentos, inúmeros, variados, vívidos, espectrais, dos que um dia alguém lhes determinou que compulsivamente demandassem rumo a uma parcela pátria do continente africano contígua ao Golfo da Guiné.

Apesar de tudo, constato com alguma nostalgia, que o conteúdo do blogue ainda apresenta uma brecha para colmatar, pois o período de comissão em que por aí (sobre)vivi, correspondente aos anos de 1968/69, não detém o acervo memorial que a Guiné teve então o triste ensejo de testemunhar.

Contudo, é-me justo salientar aqui, o papel relevante que o José Teixeira da CCAÇ 2381 vem assumindo, em que refere pormenorizadamente muito das suas vivências e que circunstancialmente apresentam uma certa forma de identificação comum à da minha Companhia, na sua contemporaneidade, nos lugares e trilhos, nas vicissitudes e anseios. Para ele, que envidou esforços para me encontrar, um carinho muito especial.

Ao assumir como lema «um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana» (1), faço-o num claro propósito de fazer incidir as estórias que me comprometi escrever, mormente sobre este local; narrar alguns factos e feitos ocorridos para que não caiam no olvido, remoçar memórias arquivadas nos recônditos do fundo de um baú pessoal muito especial, para que se sinta o que foi a disforme inequidade da guerra da Guiné profunda, tão punitiva e pesarosa para muitos de nós.

Passados tantos anos, torna-se-me particularmente difícil aceitar que os Poderes deste País em nada contribuíssem para não se deixar cair no esquecimento o que a guerra colonial representou para a nossa geração, porventura por causa da sofrida e pungente hecatombe da Guiné, a fim de eventualmente nos quedarmos no assumir de um imposto estado de condescendência, e deste conformismo nada reivindicar para nada poder alcançar.

Guiné > Bissau > Brá > 1965 > O General Schultz (à esquerda). Governador Geral da Guiné, o brigadeiro Schultz foi promovido a general em 5 de Setembro de 1965. Foi substituído por Spínola em Maio de 1968. A seu lado, o Capitão Nuno Rubim, hoje coronel.

© Virgínio Briote (2005)



No dealbar de 1968, havia já uma zona a Sul, de relativa amplitude e fronteiriça à Guiné de Sekou Touré, principal sustentáculo do PAIGC, que estava vedada ao controlo das NT. Tal não obstou a que se quisesse ousar implantar, no eixo do chamado corredor de Guileje, que até era conhecido pelo corredor da morte, e que amplamente se sabia ser uma das principais vias de passagem de víveres e de armamento das forças inimigas, um posto militar fixo com o fim de impedir ou limitar as suas acções a nível do território.

No [cerne] desta determinação, constata-se sem margem para grandes dúvidas que o acéfalo estado-maior de Arnaldo Schulz, já inteiramente grudado ao estrito reduto de Bissau, não continha minimamente qualquer plano estratégico estruturado e coerente para o acerado conflito militar que se aguçava e recrudescia com o delongar do tempo sem tempo.

O envio de tropa para uma zona de fulcral importância logística para o PAIGC, que já tinha conseguido impedir a deslocação de colunas no troço da picada entre Aldeia Formosa e Guileje, mostrar-se-ia um fracasso rotundo para as NT, desastroso, implacável, cruel, como infelizmente se viria a constatar pela perda infinda de militares, que estimo em números de uma vintena de mortos e meia centena de feridos.

Malfadada Fortuna para quem coube tão adverso e fatídico destino. Um BCAÇ (2835), passados dois meses após a sua chegada, é desmembrado e disperso pela Província, com a CCS a sediar-se em Nova Lamego e 2 Companhias a tomarem rumo ao Sul da Província. Uma permanecerá longo tempo em Guileje e a minha (a 2317) viria a ser deslocalizada para as imediações do rio Balana, mais ou menos à semi-distância entre Guileje e Aldeia Formosa, com a função de aí se radicar a fim de construir de raiz um aquartelamento [Gandembel e Ponte Balana], mesmo junto à picada de ligação.

A inserção de Gandembel/Ponte Balana obrigou a uma natural implementação das forças do PAIGC, inclusive com a permanência do bigrupo de Nino Vieira e de colaborantes cubanos. E como resultado óbvio desta movimentação, os aquartelamentos periféricos viriam a ser coagidos a tomar procedimentos de maior esforço e empenho na precaução e vigilância das suas tropas, causando-lhes um acentuado desgaste físico e moral. Atente-se à quantidade dos militares que foram raptados nesta época.

Julgo hoje que o General Spínola, que chegara em fins de Maio de 1968 e após tomar conhecimento in loco do que a Província lhe poderia dar a mostrar, apercebeu-se claramente da situação militar e social que se lhe deparava. Se as directrizes dimanadas do Poder Central eram determinadam pela manutenção a todo o custo das colónias, sem quaisquer excepções, então haveria que encetar uma estratégia diferente da que grassava, mas que paradoxalmente não poderia antever os seus resultados. Mas que resultados?

E uma das suas resoluções de maior impacto em finais desse ano, foi o de mandar fazer abandonar as posições de Gandembel e de Madina do Boé (com uma funestíssima retirada). Assim, a odisseia da minha Companhia por este rincão, que começara a 8 de Abril de 1968, finalizava a 28 de Janeiro de 1969.

Este consumptivo período de quase dez meses, que obriga a um conjunto de homens sitiados, a ter que sobrepujar todas as infindas contrariedades, em pleno palco de uma guerra de guerrilha sem tréguas, acaba por fenecer ante uma julgada impotência para contrariar o desaire.

Tantos momentos dramáticos que nos deixaram marcas profundas de sofrimento: de amargura e desalento, de raiva e dor, de mágoas e pesadelos, de medos e agonias. Tantas mazelas do corpo e da alma, para homens em florescimento, a desencadearem perturbações que nos vêm vindo a avassalar sem míngua no seu perpétuo movimento, até que o determinismo da Lei da vida nos liberte de tais sujeições.

Os tempos de Gandembel, muito em especial a sua primeira parte, são de uma violência pessoal inusitada, agressiva, estarrecedora, inumana (2):

(i) De um trabalho ingente e penoso a obrigar ter a G3 sempre à mão enquanto os braços labutavam na construção das casernas-abrigo;

(ii) corpos lassos em cima de furados colchões de campanha assentes na terra dormitando dentro de buracos desprotegidos;

(iii) alimentados por uma comida difícil de tragar, metida em marmitas saburrosas em que o arroz e os produtos desidratados preponderavam;

(iv) sem água de qualidade para nos saciar e bastante para remoção da sujidade do pó que se inculcava pela pele que se tisnava com o tempo;

(iv) sem nenhuma assistência médica;

(v) sem o apoio de qualquer população indígena;

(vi) sem qualquer iluminação exterior que visionasse uma sombra estranha no negrume das noites, e o mais odioso e duro, sem o merecimento de qualquer comiseração, fortemente estrugidos por uma quase constância dos mais variados estampidos em resultado de um ror imenso dos insidiosos ataques inimigos.

Parece-nos que só dispúnhamos de uma salvaguarda, que nos poderia acolher nos momentos mais transidos: porventura, a vinda de algum helicóptero, se para tal tivesse condições para momentaneamente aterrar.

Houve um ligeiro lenitivo nos últimos tempos, pois o modo de construção das casernas permitia-nos obter uma outra segurança, e uma maior disponibilidade da água contribuía para um melhor asseio. Contudo, tudo isto conjugado, é objectivamente muito pouco ou quase nada. Não poderei esconder que já neste período, as colunas de reabastecimento quase se quedaram, mesmo as provenientes de Aldeia Formosa.

Ficávamos à mercê de transportes por héli ou do arremesso das Dorniers em sobrevoo.
Pois do que prometia a força humana, algo sempre sobrava desta dedicação sacrificada e dolente, a fim de nos permitir resistir sem vacilações ou soçobros. É que a agudização em crescendo das agruras, compenetrava-nos para a gravidade da situação em confronto, em que reconhecíamos não haver lugar para consentir a mínima imprevidência ou tergiversação ao inimigo, pois que num qualquer instante poderia surgir a iminência de um surpreso confronto de proporções desmesuradas, que só uma indómita vontade, um acto mais corajoso ou a persistência do combate com maior denodo, os impediria de atingir alguns dos seus propósitos. Aclararei em mensagens sequentes muito destes insólitos acontecimentos.

Por isso, já comecei a identificar situações vividas e a indagar-lhes pormenores, para intentar coligir bastantes apontamentos a fim de poder escrever esta história de Gandembel/Ponte Balana, se para tanto não me faltar a requerida habilidade, e que este blogue acabe por ser um verdadeiro e real repositório do que o Luís Graça em tanto se tem empenhado.

Já que falei nessas duas datas, que representam em meu entendimento, a mais longa operação militar que se desenrolou naquele espaço de tempo, desejaria sublinhar o seguinte: de Guileje, a 8 de Abril de 1968 parte uma imensa coluna de reabastecimentos e de materiais de construção, com a protecção de uma Companhia – julgo que a própria CART 1613 - o companheiro José Neto poderá aqui dar-nos uma ajudam - , seguindo a picada em direcção a Norte, que viria já ao entardecer a estacionar junto ao corredor de Guileje [o mapa de Guileje de 1956, identifica bem o local]; a noite, passada debaixo das GMCs e dos Unimogs, foi aterrorizadora, com ataques quase contínuos de armas ligeiras e pesadas e de morteiros.

Talvez por este facto (!) e porque o acesso à água ficava relativamente longe, a coluna deslocou-se na madrugada seguinte mais para norte, sitiando-se então do lado esquerdo da picada, na margem esquerda do rio Balana e a cerca de 300/400 metros do seu leito. Estava escolhido o local para aí se construir o aquartelamento de Gandembel e depressa se abriu um caminho para diariamente se procurar água que o Balana pouco cedia na época seca.

A imagem anexa clarifica bem a localização de Gandembel e de Ponte Balana, com o caminho para o rio Balana e de ligação aos 2 postos. Ponte Balana era um pequeno fortim guardado a nível de um grupo de combate, a fim de viabilizar a defesa da ponte sobre o rio Balana, que foi necessário operacionalizar, dado que todos os pontões estavam destruídos.

Quanto ao dia 28 de Março de 1969, abandona-se um aquartelamento, deixando de pé apenas 8 casernas-abrigo e uma série de minas anti-pessoais de protecção envolvendo o arame farpado e um fortim mais junto ao rio Balana. Talvez que ainda tivessem sobrado fantasmas, as sombras que cada um à sua maneira lá deixou e que tantas vezes nos assolam.

A coluna fez-se até Aldeia Formosa sem quaisquer incidentes, nem mesmo em Changue-Iaia (um dos locais mais fatídicos desta longa odisseia).

Contudo, há um facto insólito a reter dessa noite. Já refeitos em Aldeia, em que Gandembel e Ponte Balana ficariam para sempre submergidos no breu da escuridade, ouvimos que esse desolado local fora violentamente flagelado. E nós, já longe da imprevisível consequência dos impactes, esboçámos um sorriso de pasmo e interrogámo-nos ante uma dúvida que jamais terá resposta: será que os guerrilheiros do PAIGC não quiseram saudar esta fuga, com uma salva à sua moda?!

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. post 19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)

(2) Mesmo assim, havia lugar para o humor... Nos primeiros tempos da minha comissão, em Contuboel e depois em Bambadinca (CCAÇ 12, 1969/71), Gandembel era, com Madina do Boé, um dos lugares mais míticos e fantasmagóricos do sul... O hino de Gandembel (cuha autoria se desconhece) era cantarolado por nós, como se fosse uma espécie de talismã, mezinho ou ritual de exorcismo... Fico muito sensibilizado e agradecido ao Idálio pelo este testemunho que cala fundo na caserna dos tertulianos... Não pares de escrever, camarada! Deixa fluir as tuas memórias, como se fossem águas barrentas do Rio Balana, em plena época das chuvas. Se não fores tu, se não formos nós, os fantasmas que ainda pairam por Gandembel e Ponte Balana nunca não mais terem sossego... Vd post de Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel

2 comentários:

Unknown disse...

Fui soldado de um comando de agrupamento composto por apenas 36 homens, de janeiro de 1968 a dezembro de 1969. estivemos em Bolama, Mansoa e Bissau.Nunca tive a satisfação de rever companheiros desse tempo.
deixo-vos o meu abraço de felicitações e o agradecimento pelo vosso trabalho e dedicação a todos aqueles que estiveram em Àfrica.

Unknown disse...

Fui soldado de um comando de agrupamento composto por apenas 36 homens, de janeiro de 1968 a dezembro de 1969. estivemos em Bolama, Mansoa e Bissau.Nunca tive a satisfação de rever companheiros desse tempo.
deixo-vos o meu abraço de felicitações e o agradecimento pelo vosso trabalho e dedicação a todos aqueles que estiveram em Àfrica.