17 maio 2006

Guiné 63/74 - DCCLXVIII: Ainda sobre os fuzilados... ou comentário ao texto do Jorge Cabral (João Tunes)

Post nº 768 (DCCLXVIII)



Guiné > Cartaz de proganda do Exército Português > Nós, os nossos e os outros... Foto: © A. Marques Lopes (2005)

Texto do João Tunes:

Camaradas Luís, Jorge e restantes tertulianos,

Só posso agradecer a oportunidade de poder ter lido o texto sereno, culto e frontal do nosso camarada Jorge Cabral.

O texto do camarada Jorge levanta umas quantas questões que me atrevo a comentar. Mais para conversar que para contrariar. E, se licença me é dada, aqui vai disto. Com toda a consideração para com o camarada Jorge, restantes tertulianos, sem meter em gaveta o meu modo próprio de pensar e que, humildemente, sujeito ao contraditório.

O camarada Jorge coloca, entre várias, uma questão interessantíssima vivida pela experiência convivial de todos nós, onde quer que tenhamos estado a cumprir o serviço militar no exército colonial. Refiro-me ao tribalismo versus consciência nacional na formação do povo da Guiné-Bissau.

Sabe-se que este processo, como demonstra ainda a experiência após-guerra, é longo por natureza, sobretudo pela altíssima concentração de etnias diferentes e muitas delas rivais num espaço delimitado pelas potências coloniais (provavelmente, se a Guiné-Bissau sobrou para Portugal, isso se deve à desvalorização que a França atribuiu àquele problemático e pobre pedaço).

Por outro lado, a potência ocupante (Portugal), acelerou o processo de unificação diferenciada (os fulas mantiveram-se na supremacia de aliados) para integrar a categoria de Província Ultramarina, evoluindo assim da anterior concepção colonial tout-court de conquista e ocupação e que gerou, na estratégia de alianças, a tradição da cooperação militar e repressiva portugueses-fulas. E o proteccionismo colonial-ultramarino sempre manifestado para com os fulas foi mitigado para retirar argumentos de mobilização, via rivalidade étnica, ao PAIGC que, enquadrado sobretudo por caboverdianos, tiveram os balantas como seu suporte principal de revolta. E um aspecto do nivelamento étnico próprio do colonialismo da fase da guerra, sobretudo exercitado por Spínola e pelos Chefes da PIDE, centrou-se na exploração do factor de máxima divisão comum, ou seja, contrapor o bom povo da Guiné, o da Guiné Melhor, ao mando caboverdiano instalado no PAIGC.

E isto, esta unificação perante um inimigo comum que ameaçava a supremacia de portugueses, fulas, balantas, mandingas, etc, julgo, foi o melhor que o colonialismo português, na fase da guerra colonial, conseguiu, incluindo o assassinato de Amílcar Cabral. Nunca mais que isto, como todos observámos nos vários chãos onde estivemos no terreno. E a estratégia militar portuguesa, evoluindo a partir da aliança exclusivista pró-fula, exprimiu-se na separação estanque entre os chãos das diversas etnias, delimitando áreas de conflito, concorrência e rivalidades. Que, do ponto de vista da ocupação militar, não foi, reconheça-se, obra pequena. O grosso do problema da construção, naquele mosaico étnico, de uma consciência nacional, sobrou sempre, para o PAIGC. Difícil, sempre a desafiar o impossível, como ainda hoje constatamos. Sobretudo problemática quando a autoridade do Estado se corrói e se gasta no cancro das suas impotências e atavismos de regressão tribalista.

Cada um de nós, na sua quadrícula, no seu chão, vivemos essa experiência de salamização da Guiné. Uns com fulas, outros com mandingas, outros com manjacos, outros com balantas, por aí fora. Talvez parecendo, na nossa percepção vivida, que os guineenses eram uma totalidade da etnia das tabancas em que servimos militarmente, a que nos calhou como companhia.

E foi nesse contacto, um contacto parcialíssimo pela natureza multi-étnica da Guiné, em que encontrámos os nossos amigos e camaradas guineenses que connosco apostaram, de vontade, à força ou por necessidade, no serviço pelo Exército Colonial, pela parte do ocupante. E, inevitável, a camaradagem do mesmo lado da barricada numa guerra, seja ela qual for, gera afectos e solidariedade. Como não entender isto?

No entanto, nada do que se reconhece, e tão respeitável que é, não diminui a base o problema: fomos ocupantes e tivemos, no terreno, colaboradores na ocupação. E muitos, quase todos, saímos da Guiné com o afecto que se reparte com os amigos. Os daqui e os de lá.

Feita a leitura simétrica, do ponto de vista do PAIGC, pode-se iludir que a leitura sobre o comportamento dos nossos amigos tivesse de ser forçosamente a oposta à nossa? Ao fim e ao cabo, não admitimos sequer que o indigno, reprovável, inaceitável, tratamento dado pelo PAIGC aos nossos amigos, sobretudo os vergonhosos fuzilamentos no após-independência, não foi assim tão diferente (terá mesmo sido pior?) do tratamento que aplicámos, quando fomos metralha e lei, durante a ocupação militar colonial, pelas nossas Forças Armadas e pela PIDE, aos capturados nas hostes do PAIGC e populações por eles controladas - ou se passavam para nós, mudando de campo, ou eram torturados, aprisionados e muitas vezes assassinados.

Porque não se lhes reconhecia causa e qualidade de militar inimigo, eles eram os turras, apenas turras, por isso marginais à aplicação da Convenção de Genebra. E todas as inflamadas celebrações que agora oiço à nossa histórica aversão e abolição da pena de morte, ao fuzilamento sem julgamento, ao acto em si de matar, faltaram, faltaram-nos, no momento talvez mais certo por ser o mais pedagógico e de legado civilizacional - terem sido feitas, essas mesmas celebrações, quando capturámos turras, lhes chegámos a roupa ao pelo ou, na maior parte das vezes, os entregámos aos esbirros da PIDE e à sua sanha assassina.

Mas, nessa altura, tínhamos o diáfano manto que nos cobria por sermos nós a autoridade. E o mando, sobretudo quando exercido por mão militar, não conjuga bem com o sentido de justiça e do património civilizacional? É mesmo. Pois é, ontem como depois. Ontem, os do PAIGC eram os outros. Hoje, continuam sendo nossos, os que de nos fizemos amigos no convívio e na camaradagem forjadas a combater os outros. E só nos pode indignar que os outros tenham sido patifes com os nossos. Ainda a diferença entre os nossos e os outros?

Emoção respeitável esta, mas emoção. A razão, ainda distante, talvez faça, um dia, o resto - o que falta para o equilíbrio da apreciação histórica, entendendo, então, porque estivemos ali e o que fizemos ali. E, sobretudo, porque nos custa tanto de lá sair, ou seja, tirar do aperto ao pescoço os nós dos laços das circunstâncias e das marcas da nossa juventude gasta lá, entre bolanhas e tabancas.

E hoje, velhos ou para lá caminhando, a saudade aperta, das terras e das gentes, sobretudo dos amigos, principalmente dos amigos distantes, ficando com a lágrima mais fácil, mas nem sempre a mais justa na sua repartição equilibrada pelos caminhos da memória. Lá chegaremos, confio eu. Senão, alguém lá irá ter (por nós).

Abraços amigos para todos os camaradas tertulianos.

João Tunes

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