22 maio 2006

Guiné 63/74 - DCCLXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (9): Fome em Campatá e Natal em Bafatá

Guiné > Zona Leste > Subsector de Galomaro > CCAÇ 2405 > 1969 > Dulombi > Na messe, os alferes milicianos Raposo (à direita) e Rijo (à esquerda); de costas, os furriéis milicianos Cândido e Magno.

© Paulo Raposo (2006)

IX parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 26-27 (1).


GALOMARO

Com este objectivo, a nossa companhia foi enviada para Galomaro, e aí abriu em estrela. Cada grupo de combate foi enviado para um local diferente para organizarmos as Tabancas em auto defesa.

Galomaro era uma terra pequena. Tinha um armazém abandonado de recolha de amendoim, que foi utilizado como caserna. Tinha também umas casas onde outrora eram recolhidos os leprosos, doença completamente irradiada, e tinha ainda uma casa comercial de um libanês, o Sr. Regala.

Ao meu grupo de combate calhou a Tabanca de Campata (2). Ali nos deixou a Companhia, por muito tempo e sem qualquer razão, sem comida. Durante cerca de uma semana, praticamente não tínhamos de comer. Dizia-me um soldado:
- Ó meu Alferes, a fome é negra!

Em face disto, fomos subtraindo galinhas e cabritos à população, que não os queriam vender por serem o único meio de subsistência que tinham.

Na falta do rádio e como não apareciam instruções da companhia, eu e outro rapaz metemo-nos à estrada de bicicleta, para pedirmos satisfações na sede da companhia.

Aquela situação trazia créditos para a Companhia pois vencíamos o valor da alimentação e nada recebíamos. Aqueles Sargentos!

Mais tarde, mandei construir um fomo, aonde o Baptista cozia o pão que nos sabia pela vida. Foi ali que comecei a sofrer com o isolamento. Nunca gostei de estar a nível do grupo de combate.

Um belo dia apareceu um heli: nele vinham o Brig Spínola, o Comandante do Sector [ de Bafatá]Ten Cor Hélio Felgas, o Capitão Almeida Bruno e o nosso Capitão [Jerónimo], vinham inspeccionar. A minha atrapalhação foi muita, perante tanta gente importante a visitar-nos. Depois de algumas perguntas, respostas e cortesias, seguiram viagem para a Tabanca seguinte.

O NATAL DE 1968


Foi em Campata que passámos o primeiro Natal na Guiné. O meu irmão, a pedido da minha mãe foi passar o Natal comigo. De avião em avião, chegou por fim a Bafatá, aonde solicitou autorização ao comando para eu passar aqueles dias com ele em Bafatá.

O Ten Cor Banazol, que comandava o Batalhão que ali estava sediado, fez deslocar uma auto metralhadora Panhard para me ir buscar. Alugámos um quarto e, entre o cinema, os passeios e a Messe, assim passámos o Natal.

Bafatá era uma cidade sem guerra, tinha piscina, mercado e algum ... comércio. E não estava cercada por arame farpado. O meu irmão não dormiu muito descansado naqueles dias. Durante esta curta estada em Bafatá, encontrei um rapaz de Fronteira que tinha sido meu recruta em Elvas.

Como na Tabanca de Campata não havia electricidade, nunca se podia beber nada fresco. E foi assim que comprei um frigorífico a petróleo por 5.000$00. Este frigorífico andou sempre comigo até ao fim da comissão, e mais tarde vendi-o, pelo mesmo valor, a um Furriel da nossa companhia, que era de Bissau, de etnia papel (3).

Para funcionar bem este frigorífico tinha de ter a torcida sempre muito bem aparada e não podia estar queimada. Era uma preocupação permanente. O meu amigo João Saldanha, que estava em Bissau na Intendência, sempre me valeu, mandando-me as torcidas para substituição. A manutenção do frigorífico e a gestão das bebidas frescas estava totalmente a cargo do meu impedido, o Figueiredo.

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 19 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste

(2) A meio caminho, do lado direito, na estrada Galomaro-Dulombi.

(3) Vd. post de 9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral

(...) "O furriel Cabral foi-nos mandado para substituir o furriel vagomestre, uns meses antes falecido em acidente de viação na estrada de Galomaro-Bafatá numa viagem de reabastecimento de viveres à nossa Companhia…

"O Cabral era uma jóia de pessoa, simpatiquíssimo, um tanto ingénuo e crédulo, sempre bem disposto e que rapidamente granjeou a estima de todos. Natural de Bissau, de etnia papel, um verdadeiro e retinto preto da Guiné…

"Estudara em Lisboa, e, incorporado no exército, fez o curso de sargentos milicianos até que foi promovido a furriel e mobilizado, em rendição individual, para a Guiné, sua terra natal…

"Calhou-lhe em sorte (ou azar…), ser destacado para a nossa Companhia numa altura em que já tinhamos cumprido um ano e meio de comissão" (...).

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